A curiosidade e o aprendizado

A

Celso Gonzaga Porto

O  pai entra no quarto e percebe que o filho, mesmo com um livro aberto sobre a mesa de estudos, tem o olhar perdido ao longe. A observação é óbvia:

— "Não adianta o livro aberto na frente e o pensamento perdido nas brincadeiras."

— "Estou exatamente refletindo naquilo que estou estudando. É a Bíblia. Estou a pesquisar sobre um trabalho para as aulas de Religião."

— "Pois bem. Então continue o estudo. Não quero atrapalhar. Se eu puder ajudar..."

— "Papai. O senhor e a mamãe frequentam a Igreja há anos. Participam de todas as atividades, inclusive reuniões quinzenais em que os casais se reúnem para o estudo da Bíblia, certo?"

— "Certo. Há quase dez anos sua mãe e eu participamos destes estudos."

— "Então me ajude a entender uma coisa. A Bíblia diz que a origem da humanidade está no primeiro casal que Deus fez, criando o homem de um boneco de barro e a mulher de uma costela do homem, certo?"

— "Certo. A humanidade surge de Adão e Eva. Alguma dúvida?"

— "Pois bem, papai. Aqui diz que Adão e Eva tiveram dois filhos homens. Para que surgissem mais seres a partir deles, uma de duas coisas deveria acontecer: ou os filhos tiveram relações com a mãe ou um dos dois era hermafrodita."

— "Bem... há coisas um pouco complicadas..."

— "Tem outra complicação ainda maior. Não só a religião, como é o caso da nossa, como também a ciência, condenam a relação entre irmãos e, pior ainda, entre filho e mãe."

— "Bem... É... é... é..."

— "O pai de um coleguinha outro dia explicou que, na verdade, a Bíblia não fala, mas Adão e Eva tiveram outros filhos, inclusive mulheres. Mas o problema continua. Se na origem tivesse sido normal a relação entre irmãos, não teria razão para ser proibido mais tarde. Outro coleguinha disse que, segundo o pai dele, haveria outra comunidade de pessoas em local próximo onde vivia a família do Adão e foram essas duas comunidades que se uniram, vindo a originar a humanidade. O que meu coleguinha não soube responder-me foi quando eu levantei a questão de que, se havia outra comunidade, a origem não poderia ser atribuída apenas a Adão e Eva. Que explicação o senhor teria para isso?"

— "Bem... acho que é preciso pesquisar um pouco mais."

— "Veja, papai, há outros detalhes que estão deixando-me a pensar. Há um trecho aqui em que Jesus diz a Tomé: 'Felizes os que creem, mas não veem'. Isso também não me parece real de ter acontecido."

— "Por que?"

— "Porque Jesus, segundo consta, era um ser bastante evoluído para a época. Ele já deveria saber então o que sabemos hoje, que a dúvida é que impulsiona o conhecimento e a evolução. Penso que ele jamais deixaria para a história uma frase que contraria esse princípio elementar, ainda mais prevendo que a humanidade se basearia mais tarde nas suas palavras e nos seus conceitos. O que lhe parece?"

— "Bem... acho que preciso estudar melhor a Bíblia."

— "Ora, papai. Na verdade, ninguém estuda a Bíblia. As pessoas decoram o conteúdo escrito nela e assimilam como verdades porque têm medo de contestar e ser condenado. As religiões assustam para isso. Na verdade, para estudar literalmente alguma coisa, é necessário que se vá colocando em dúvida as coisas que nos são apresentadas, tentando sempre buscar uma explicação lógica. O que lhe parece se na conclusão do meu trabalho eu apresentasse o teor desta nossa conversa?"

— "Eu não te aconselho, filho."

— "Por que, papai?"

— "Certamente tua nota seria zero."

Sobre el autor/a

Celso Gonzaga Porto

Celso Gonzaga Porto, nasceu em Arroio dos Ratos. Tem formação em Engenharia Operacional de Produção com Pós-graduação em Design Industrial- Especialização em Projeto do Produto e Professor do Ensino Técnico Industrial. Autor de cinco livros solos, com participações em 27 coletâneas. Possui várias premiaçoes na área da Literatura. Academias a que pertence: Academia de Letras de Teófilo Otoni, Academia de Letras do Brasil.Seccional-RS e Academia Luso-Brasileira de Letras do RS. Sócio Efetivo da Sociedade Partenon Literário

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