Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

O professor

O

Silvia C.S.P. Martinson

Quando entrei nas classes do 2º Grau o conheci.
 
Era a primeira vez que frequentava aquela escola que foi à época considerada o melhor colégio público feminino. Ela funcionava em uma escola evangélica particular e masculina, uma vez que o governo do Estado lhe pagava um aluguel porque não havia, então, disponibilidade de prédio próprio que permitisse seu funcionamento. Pela manhã, ali, estudavam os alunos homens da escola evangélica. Pela tarde eram as classes ministradas às alunas mulheres da escola pública.
 
O ingresso nesta escola era bastante difícil face ao que, era submetida a candidata à vaga a um exame de conhecimentos gerais, ministrados no 1º Grau, tanto escrito quanto oral. A média de notas em cada matéria era de 8, o que fazia com que muitas aspirantes a vaga não a conseguissem alcançar.
 
O ano letivo começava em março e encerrava-se em meados de dezembro para quem fosse aprovada, após os exames escritos e orais.
Havia ainda a chamada 2ª época quando ao final de dezembro e início de janeiro eram ministrados novos exames às recalcitrantes, dando-lhes uma segunda oportunidade de aprovação. Diga-se, de passagem, que naquele tempo, era considerada uma vergonha ao aluno ficar dependendo da “2ª Época” para passar às classes do ano seguinte. Estes alunos eram considerados preguiçosos ou pouco inteligentes. A exigência de conhecimentos nestes exames era muito maior do que aqueles pedidos no final do ano letivo.
 
Havia também férias na metade do ano, mais precisamente no mês de julho, considerado este, na minha terra, o período mais frio por tratar-se do inverno. A este descanso de 30 dias dava-se então o nome de “Férias”.
 
Época esta em que se ficava em nossas casas ao abrigo das intempéries e podendo dormir até mais tarde, sem maiores compromissos.
 
Tudo isto lhes conto, em princípio, para entrar agora, em verdade, na história principal.
 
Comecemos então.
 
Aconteceu comigo nos primeiros dias do ano letivo, ou seja, março.
 
Passava eu com os meus ingênuos quase 13 anos frente a uma sala de aulas onde estudavam jovens mais velhas do que eu.
Chamou-me a atenção à maneira de como o professor se dirigia às alunas.
 
Ele era um senhor de mediana idade e bem apessoado, vestia-se elegantemente. Todavia tinha uma expressão arrogante e dirigia-se às jovens em alto e bom som o que nos permitiu ouvir o que dizia.
 
Chamava as alunas de pobres ignorantes e despreparadas para suas classes e que nunca esperassem dele uma nota 10 porque esta somente cabia a ele.
 
As alunas aterrorizadas o miravam com espanto e preocupação perante tanta soberba. Depois fiquei sabendo que ele costumava reprovar sempre ao final do curso muitas alunas a fim de que repetissem o ano. Ante tal visão à época, jurei a mim mesma que não haveria de ser sua aluna nunca.
 
Ledo engano o meu. No 4º e último ano ginasial tive a ingrata surpresa, ao voltar às aulas, de saber que aquele seria nosso professor de desenho geométrico. Ele veio então a ministrar aulas a minha turma. Não havia mudado em nada seu método agressivo e soberbo.
 
Pensava-se muito inteligente e capaz e as alunas somente serviam para serem massacradas e pisoteadas por sua personalidade egocêntrica e cruel.
 
Assim que observando a tudo isto me propus a nunca, sendo aluna dele, tirar uma nota abaixo de 10 para lhe fazer ver que não era tão competente quanto queria aparentar. E assim sendo estudei e me preparei para suas provas.
 
Na primeira tirei 10 e ele chamou-me frente a toda classe zombando de mim e dizendo que eu havia copiado de alguma maneira os resultados.
 
Argui-lhe que não. Que eu realmente merecia aquele 10 porque havia estudado e me preparado.
 
E assim se passou o ano e em todas as provas que aplicou, eu continuava a tirar 10 e ele cada vez me odiando mais por isso.
 
Ao final do ano, nas provas finais, ele me isolou das demais alunas em um canto da sala onde examinou a mesa em que me sentara para ver se ali não havia qualquer cópia de sua matéria e inclusive fez com que outras colegas verificassem se eu não portava em minhas roupas qualquer papel referente à sua matéria.
 
Fez ainda com que colocasse sobre a sua mesa todo meu material escolar, deixando comigo somente um lápis, uma caneta e uma borracha de apagar.
 
Iniciou a prova para todas nós, todavia ele se postou ao meu lado a controlar-me o tempo todo do exame.
 
Eu não me perturbei, tinha-lhe tanto asco que me esforcei mais ainda para responder corretamente as perguntas da prova.
 
Acabei a prova e a entreguei a ele em sua mesa.
 
Ele com olhar maldoso me dice que eu havia rodado ao que lhe contestei dizendo:
- Não senhor. Eu, para seu desgosto e lembrança de minha pessoa, a fim de que jamais se esqueça deste acontecimento, novamente tirei 10.
 
Concluí o ano com a média 10 em desenho geométrico. Fato inédito naquela escola.
 
E, verdadeiramente, assim se passou.

Chico

C

Silvia Cristina Preissler Martinson

Saiu de uma ninhada de galinhas de peito duplo. Eram elas criadas por nós num galinheiro muito bem feito por meu marido, em um terreno baldio ao lado de nossa casa.
Eram lindos espécimes de uma raça criada para abate e também para gerar ovos de qualidade. Tínhamos algumas e muito poedeiras. Não dávamos conta da quantidade de ovos produzidos, assim que vendíamos ou dávamos os excedentes.

Pois um dia, uma delas em contato com o galo, que chamávamos Vermelho e que fazia parte do lote, pôs ovos galados e fez, através de seu cuidado com que eclodissem. E assim se fez.
Os ovos eclodiram e surgiu uma linda ninhada de pintinhos.

Logo dentre eles se destacou por sua força e de certa forma agressividade um macho. Este aos poucos se foi transformando e se mostrou, com o tempo, em um lindo galo branco. Demos-lhe o nome de Chico.

Chico cresceu rapidamente devido à alimentação e aos cuidados que tínhamos, tais como: limpeza, higiene e medicamentos próprios a uma boa criação.

Chico ficou lindo! Suas penas eram totalmente brancas, a crista de um vermelho vivo e com enormes esporões nos pés. Seu único defeito: o gênio.

Era profundamente ciumento e zeloso do galinheiro e das galinhas que lá viviam.
E um dia em sua inveja e ciúmes matou Vermelho, seu pai, a esporaços.
Quando conseguimos chegar perto o Vermelho já estava morto. Nada mais restava.

Este galo era tão bravo que quase não podíamos recolher os ovos. Ele simplesmente atacava e era preciso entrar no galinheiro com botas e muita proteção para poder isolá-lo em um canto e proceder a limpeza e recolhimento dos ovos.

Há um animal silvestre que gosta muito de atacar as galinhas para chupar-lhes o sangue e comer seus ovos. Chama-se popularmente Gambá.

Gambá por quê? Porque adora bebida alcoólica e se queres capturá-lo a melhor forma é colocar um recipiente cheio de cachaça e deixar em um lugar ao qual ele possa facilmente acessar. Ele se embebeda e cai em sono profundo.

Pois bem, o tal de gambá farejou as galinhas e seus ovos e em sua ânsia tentou adentrar no galinheiro escalando a cerca de arame que a protegia. Não deu outra... Chico furioso voou de encontro à cerca e com seus esporões atingiu o gambá várias vezes até que este caiu morto ao chão.

O galinheiro teve que ser demolido, o terreno onde se encontrava foi vendido.

As galinhas bem como o galo Chico doamos a um vizinho que possuía um galinheiro grande e se propôs a cuidá-los.

Após alguns dias ficamos sabendo que o Chico havia matado o galo do vizinho e tomado para si todas as galinhas e ainda que as mantinha, ciumento, sob estreita vigilância.

Ele não se recolhia a noite antes que todas as galinhas estivessem cada qual em seu ninho.
E caso alguma se atrasasse ele a tocava bruscamente com as asas para que a mesma se aninhasse.

Era um galo louco.

O senhor Jaime, assim se chamava o vizinho, foi obrigado a matá-lo. Ninguém mais conseguia adentrar ao galinheiro para colher os ovos ou alimentar as galinhas.

O Chico das penas brancas depois de morto proporcionou a nós todos um saboroso almoço, tendo como entrada um caldo soberbo e após um arroz com pedaços de frango ao molho, saladas e tudo regado a um bom vinho, que saboreamos alegremente.

Chico teve sua glória e seu fim merecido.

Letras

L

Silvia C.S.P. Martinson

 
Comi um pedaço de pão,
havia nele posto mel,
pensei: por que não tirar
também das palavras
todo o gosto de fel?
Adoçar assim a vida,
fazê-la dia após dia
mais alegre mais bonita,
pintada e colorida?
Então adornei as letras
juntando umas às outras,
buscando no sentido
dessa união, o motivo
de as tornar mais belas,
o amargor tirando delas
e que bailassem alegres
tão doces e felizes,
como o sabor do pão
todo coberto. E elas…
Com o cheiro de Mãe
e o mais puro gosto de
mel!

Pacha

P

Silvia C.S.P. Martinson

 
Meu tio, casado com a irmã de meu pai, era francês de nascimento, porém de família e formação alemã. Era muito culto e rico, às custas de sua inteligência e muito trabalho.
Viveu em muitos países antes e depois da 2ª guerra mundial. Casou com minha tia, irmã mais velha de meu pai e eram os únicos filhos de meus avós que nasceram no Brasil. Houveram outros mais velhos ainda, fruto do primeiro casamento de meu avô e que nasceram na Europa.
 
Vou dar a este tio, para que não seja identificado, um nome fictício, bem como a minha tia e seus dois filhos. Portanto, a partir de agora ele chamar-se-á Martin, sua mulher Ana e sus filhos André e Rosa.
 
Por certo que, com a personalidade forte e dominante de um professor, que também foi ademais de sua formação alemã, estes nomes certamente não lhe agradariam. Em sua casa, como na de meus avós, o idioma falado era somente o alemão. Meu pai escrevia e falava com perfeição este idioma, haja vista que estudara em um colégio tradicional onde além de uma excelente formação cultural, o idioma falado era o alemão.
 
Eu conheci esta escola em uma cidade que visitei e a mesma destinava-se a uma classe de pessoas mais abonadas.
 
Bem, prosseguindo com nossa história, tio Martin conduzia seus negócios e sua família com muita rigidez.
 
Tinham uma bela casa e muitíssimo conforto e modernidade para a época. Aos filhos não lhe faltava nada, inclusive belos e caros brinquedos.
 
A música era uma das prioridades da família, inclusive da minha. Os filhos estudaram e tocavam piano com maestria e a mãe era exímia em um instrumento que hoje quase poucas pessoas o conhecem, a cítara.
 
Bem continuando, voltemos a falar de Martin.
A ele encantava caçar e para tanto tinha em sua casa dois cachorros de raça, perdigueiros, os quais eram seus fiéis companheiros.
Um deles, de pelos brancos com pintas de cor marrom chamava-se Pacha. Era um cachorro muito bonito e dócil com as crianças pequenas, todavia, quando no campo, só obedecia cegamente a seu dono, fielmente cumpria com tudo a que aquele, em tom de mando, lhe ordenava. E assim se passava em todas as caçadas de tio Martin.
 
Porém um dia, tudo foi diferente. Vou lhes contar o que se passou.
 
Tio Martin com sua espingarda estava a caçar lebres no campo. Era um mato meio alto, cheio de arbustos a que não se permitia visualizar bem os entornos.
 
Porém com a precisão que lhe era peculiar, visualizou a lebre a correr entre os arbustos um pouco longe de onde se encontrava. Mirou a cabeça do animal e atirou com um único tiro de sua potente espingarda. O animal caiu entre as plantas. A seguir Martin ordenou a Pacha que fosse buscar a caça como estava este acostumado e treinado para fazer.
 
Pacha seguiu o rastro do bicho e quando chegou perto dele estancou e não o pegou na boca como sempre fazia para trazê-lo a seu dono.
 
Martin, espantado e ao mesmo tempo aborrecido, ordenou em voz alta que Pacha trouxesse a ele a caça. , Por fim o cachorro lhe obedeceu e lentamente voltou com a lebre entre os dentes.
 
Ao chegar perto de tio Martin caiu a seus pés com a caça e três picadas de cobras em seu focinho. A lebre ao ser morta havia caído sobre um ninho de jararacas e Pacha ao vê-las em princípio recuou, todavia, como era obediente e fiel a seu dono obedeceu a ordem de recolher o animal caçado. Pacha estava aos pés de Martin terrivelmente ferido e à morte.
 
Naquela época as cobras grassavam nos campos e era normal as pessoas serem picadas e morrerem por seus venenos.
 
Martin sempre que ia caçar levava entre seus pertences soro antiofídico o que já existia na época.
 
Tio Martin ao ver seu cachorro preferido naquele estado começou a chorar copiosamente. Amava aquele animal.
Mesmo desesperado aplicou o soro no cachorro, colocou-o em seu carro e voltou à cidade a toda velocidade que lhe permitiam as primitivas estradas de terra de então.
 
Pacha com os cuidados de um veterinário se salvou, não morreu, porém ficou cego até o fim de seus dias e quando pressentia a presença de seu dono, quando este chegava do trabalho à sua casa, o esperava deitado no portal abanando o rabo, ganindo e dos olhos cegos lhe caiam lágrimas.
 
E assim se passou até o final de seus dias.
 
Martin nunca mais foi caçar.

Confinada

C

Silvia C.S.P. Martinson

O prédio era alto, uns quinze andares. Moderna arquitetura. Amplas sacadas.
Portas-janelas que nas sacadas davam visão plena da rua.

Era azul e se confundia com o céu resplandecente que costuma acontece nestes pagos do Mediterrâneo, em Campello um “pueblo” de Alicante- Espanha.

Frente a ele há um grande parque arborizado e provido de muitos bancos para sentar e apreciar a placidez do ambiente.
Ali me sentava quase todos os dias para ler, pensar e observar.

Em uma manhã em que me encontrava sentada, depois de minha caminhada diária, em um banco frente a este prédio a vi...

De longe me pareceu mais ou menos jovem, cabelos castanhos, curtos, que reluziam ao sol.
Devia habitar o décimo ou décimo primeiro andar. Realmente não havia como calcular corretamente.

O que me chamou a atenção do lugar em que me encontrava na praça era que: ela entrava rapidamente por uma porta desaparecendo a seguir para sair por outra em poucos minutos depois. Isto sucessivamente, sem parar, por quase uma hora.

Voltei a caminhar pela praça nos dias seguintes como sempre fazia.

Aí, então, a curiosidade já me aguçava sobremaneira e passei diariamente, ao levantar os olhos, a observar a mesma cena. Meses a fio.

Queria saber quem era e o que fazia aquela mulher.

Dirigi-me ao prédio em que morava e falei com o porteiro que pouco soube me informar dizendo que não a conhecia e que esta nunca descia à rua.

A ele lhe parecia que era casada, todavia não tinha certeza.

O tempo passou e a cena se repetiu até que um dia não mais a vi.

Parecia-me de longe tão bonita.

Retornei ao prédio novamente e ao novo porteiro perguntei por ela.

Este era mais falador.

Contou-me então que a bela mulher vivia confinada em seu apartamento.
Que quando o marido saia trancava a porta e levava a chave com ele.

Era demasiadamente ciumento.

Um dia ao retornar a casa mais cedo encontrou em seu interior o antigo porteiro entabulando com a mulher amigável conversa.

Possuído pela desconfiança e pelo ciúme exacerbado puxou de um revólver que carregava consigo e aos dois, sem nada perguntar, matou.

Soube-se, segundo me narrava este último, que o antigo porteiro arrombara a porta, ao ouvir os gritos da mulher, para apagar um fogo que se instalara na cozinha e que logrou sucesso na empreitada.

Segundo alguns vizinhos ainda hoje se ouvem os passos da mulher a circular de um quarto a outro, sem parar, e que da praça quem olha para aquele apartamento a vê sempre da mesma forma, caminhando. Agora ao lado do antigo porteiro.

Os dois todos os dias, por uma hora, pela manhã, faça sol ou chuva, entram por uma porta e saem pela outra, caminhando, sempre caminhando...
Incrivel! Hoje pela manhã me pareceu vê-los.

 

A morte da avò

A

Silvia C.S.P. Martinson

Ela morreu.
 
Não deixou herança significativa, todavia escreveu somente uma carta a seu único e querido neto.
 
Viveu intensamente, alegremente cada dia. Com a alegria de alguém que recebe a dádiva da vida.
 
Sofria de dores como qualquer velho que, com o passar dos anos e o desgaste natural do corpo, as tinha.
 
Teve alguns amigos que também manteve até o fim de seus dias. Aqueles que se afastaram por razões da vida o fizeram sem alarde. Alguns deixaram lembranças amargas que com bom senso ela guardou bem escondido no escaninho da memória, no lugar das coisas perdidas.
 
E assim dia a dia, semana a semana, meses e anos se passaram sem que ela se desse conta da história registrada na eternidade que paulatinamente escrevia.
 
E agora chegando ao fim deixa a seu neto, para que conheça, a versão não contada de sua longa caminhada em uma carta somente a ele endereçada que começava assim:
Querido neto.
 
Amo-te acima de tudo. Fostes e és a lembrança mais querida que carrego comigo.
 
Eis que meu fim chega. Eu o sinto.
 
Fui alegre, fui feliz.
 
Amei e fui amada.
 
E agora te conto o que se passou em minha longa estrada.
 
Eu .......
 
A mão lhe tombou, a caneta escorregou, o sorriso aos poucos apagou-se em seus lábios, os braços lhe caíram ao longo do corpo, os olhos se lhe fecharam suavemente.
 
Não terminou a carta.
Imersa em seus sonhos e lembranças adormeceu para sempre.
 

O mesmo

O

Silvia C.S.P. Martinson

Mais um verão, todos diriam.
 
Assim começa a nossa história.
 
Todavia ela se passa a quase 50 anos atrás.
 
Sim era verão. Um verão como todos os outros.
Diferente então eram os caminhos e as situações que conduziam ao merecido descanso de um ano de trabalho árduo.
 
Meus pais trabalhavam muito para manter a casa que compraram com sacrifício e muita economia. Bem como, para proporcionar conforto e uma educação mais esmerada à suas duas filhas. Ou seja, minha irmã e eu.
Tínhamos uma vida modesta, porém cercadas de muita cultura.
 
A música clássica permeava nossos dias, enchendo a casa de sonoridade e beleza.
A leitura de bons livros e autores era uma constante em minha casa. Minha mãe era uma leitora insaciável.
 
Isso quando criança nos parecia um tanto aborrecido, porém com o passar dos anos vimos a entender o quanto nos ajudou, tanto em nossa vida profissional, quanto em nossas relações pessoais e interpessoais, ou seja, no convívio social.
 
E assim s passavam os dias e nós crianças fomos crescendo, aprendendo e também sendo corrigidas, às vezes severamente, quando necessário.
 
Os invernos em minha cidade, aquela época, eram rigorosos. Nos assolava o frio com fortes geadas, muita chuva e humidade.
 
Minha mãe tinha um fogão a lenha que mantinha aceso dia e noite e que nos proporcionava, feitos por ela, deliciosas comidas e calor verdadeiramente acolhedor a toda a casa.
 
Enfim, assim se passavam os dias invernais sempre na expectativa da chegada da primavera, que por consequência era o prenuncio de sempre um verão alegre e muito quente. E essa expectativa se renovava a cada ano.
 
Era a época que aguardávamos com ansiedade, isto porque, todos os anos meus pais costumavam alugar uma casa diferente sempre, na praia, em qualquer balneário onde encontrassem uma, dentro de suas possibilidades financeiras.
 
Recordo que num desses anos eles alugaram, segundo um anúncio feito no jornal domingueiro, uma casa no balneário de Cidreira no Rio Grande do Sul- Brasil.
 
Quando ali chegamos, meus pais tiveram uma enorme surpresa. A casa se localizava ao fundo de um terreno um pouco distante do mar e para maior insatisfação tratava-se de um quase galpão, ou seja, uma peça grande onde estavam todos os móveis de uma casa ali alinhados.
 
Sala, quartos e cozinha tinham uma sequência normal. O banheiro se localizava no quintal era primitivo e somente melhorou de aparência pelos trabalhos de higienização efetuados por minha mãe e meu pai. Ambos extremamente caprichosos.
 
A casa era alta do chão. Havia um enorme espaço entre o piso dela, que diga-se de passajem, era de madeira e o chão de areia do quintal.
 
Depois do almoço íamos fazer a sesta debaixo da casa. Ali meu pai colocara umas tábuas sobre as quais nos deitávamos à dormir.
 
Eu costumava ficar mirando o céu para ver nas nuvens figuras que, na minha imaginação, eu criava tais como: bichos, monstros, fadas, duendes e montanhas que faziam parte deste mundo. E com isso ao poucos adormecia devagarinho.
 
Para nós crianças foi, naquele verão, uma experiência inesquecível.
 
Até hoje recordo de tudo como se eu estivesse ali, agora, neste exato momento.

Uma manhã

U

Silvia C.S.P. Martinson

Quando as ondas se rompem na praia
e o mar ilumina meus olhos com sua majestade,
eu me sinto tão pequena ante tanta magnitude.
E por suposto a minha gratidão
é só e somente,
por tudo com que a vida me há presenteado:
por todas as coisas boas que há semeado,
pelas sementes que em minhas mãos há deixado,
por todas as alegrias que tive.
Elas com seus movimentos,
seus indos e vindos
recordam-me que sou como um barco
ao capricho do vento,
navegando através do tempo.
Debaixo do sol em calorosos dias.
Debaixo da lua em sua beleza pura.
Com força e coragem,
superando as dificuldades
nas noites mais escuras.

Sou muito más além de mim

S

Silvia C.S.P. Martinson

 
Sou muito mais, além de mim,
verdade... Eu sou assim!
Quando a luz do dia
morre e a noite enfim
vem toldar as esperanças,
eu ressurjo das cinzas
e me cubro com a alegria
de saber que sou eterna,
que estou somente passageira
nesta barca, que vagueia
por ondas necessárias, pequeninas,
desta transitória carne,
nesta inevitável vida.

Bairro

B

Silvia C.S.P. Martinson

 
Vivia, quando criança, em um bairro afastado do centro da cidade que era a capital do estado. Na verdade era a última rua habitada daquele bairro que se chamava Passo da Areia.
Levava este nome porque um pouco mais distante, em tempos muito antigos, ali passara um riacho de águas límpidas margeado por areias muito brancas, assim me contaram.
 
Sobre este riacho pairava uma lenda muito bonita que contava a história de uma índia que em disputa com outra havia perdido o amor de sua vida e por tanto chorar de tristeza, de suas lágrimas, resultou o riacho que ali existe até hoje. Porém por ser tão forte a correnteza e a cidade ter crescido tanto foi o mesmo encanado a fim de unir os bairros que se expandiram.
 
Resta desta lenda a escultura que mostra Ubirici, a índia, a chorar.
 
Diante da estátua se localizava um centro de saúde que atendia às necessidades daquela região e ao qual muitas vezes fui levada por meus pais. O bonde então aquela época tinha ali seu fim de linha.
 
A nós crianças era um prazer seguir até ali para então voltar à casa atravessando um parque arborizado que se encontrava em meio a um condomínio, se assim podemos denominá-lo, chamado de IAPI. Ali foram feitos vários edifícios para habitação e destinados aos assegurados Inativos Aposentados do Instituto de Previdência. Daí o seu nome IAPI.
 
Esta praça que é dedicada ao lazer e para a prática de esportes chama-se Alim Pedro, pelo que me recordo. É bonita, nela há um declive muito arborizado que permitia uma sombra agradável aqueles que queriam ali desfrutar de momentos de paz e tranquilidade e também uma boa visão do campo de futebol que se localizava mais abaixo e onde aos fins de semana sempre havia um campeonato ao qual os aficionados também compareciam para apreciar e torcer.
 
Em um edifício deste grande complexo nasceu Elis Regina, cantora desde criança que se apresentava nas matines aos domingos e que ficou famosa por sua voz e estilo inolvidáveis, em todo país e até no exterior.
 
Lindas músicas gravou e nos deixou até sua morte, infelizmente prematura, restando-nos uma saudade eterna de ouvi-la.
 
Na última rua da cidade de Porto Alegre – Rio Grande do Sul – Brasil eu nasci e me criei. Chamava-se Dr. Eduardo Chartier em homenagem a um grande médico de antanho.
Ali me eduquei junto a minha família a quem a música e o teatro e a educação eram cultivados com amor e respeito
 
Ali cresci tendo por hábito sonhar de olhos abertos - em uma casa com amplo pátio, muitas árvores de frutas diversas e flores abundantes cultivadas por minha mãe - pelo que muitas vezes fui chamada a atenção por ela que dizia:
- Silvia para de sonhar e estuda!
 
Tinha então razão, naquela época, por certo.
Estudei como queriam me tornei advogada, às minhas expensas trabalhando. Formei-me com distinção e exerci minha profissão com denodo e muito trabalho.
 
Todavia, continuo a sonhar, a imaginar e em mil ilusões a criar meus contos, poesias e personagens.
 
É por isto que admiro a Natureza, os homens em sua complexidade, a vida em sua total beleza.
Motivo pelo qual sempre escrevo com muita paixão. Talvez o faça até o fim, quem sabe...

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