Autor/aÁlvaro de Almeida Leão

Nascido em Campina Grande - Paraiba; Gaúcho por adoção. Aposentado do Banrisul. Formado em Administração de Empresas e em Ciências Contábeis pela UFRGS. Autor dos livros "Ensaios" e " Humor Para o Mau Humor " Participou do Jornal RSletras , orgão oficial do Instituto Cultural Português . Faz parte de Antologias de Entidades Culturais do Estado. Sócio efetivo da Sociedade Partenon Literário e de que faz parte da sua Diretoria; Sócio do Instituto Cultural Português; da Casa do Poeta Rio-Grandense e da Casa do Artista Caponense de Capão da Canoa RS;. Acadêmico da Academia Internacional de Artes Letras e Ciências de Cruz Alta RS, da Academia de Letras do Brasil Seccional do RGSul e da Academia Luso-Brasileira de Letras do RGSUL. Honrarias: Diploma Honra ao Mérito; Medalhas; Troféu Aldo Coimbra outorgado pela Associação dos Funcionarios Aposentados do Banrisul - Escolhido pela Editora Revolução Cultural, como o Escritor Homenageado do Ano da Feira do Livro de Porto Alegre RS em 2019 ; Comendas Caldre e Fiao do Partenon Literário e Comenda Personalidade Internacional 2023 da Academia Internacional de Artes, Letras Ciências de Cruz Alta RS; Participa anualmente do Concurso Literário da FECI CAPOLAT da Confreira Marinês Bonacina. Atualmente é bi campão do Concurso FECI CAPOLAT, Ouro em 2022 e Troféu em 2023.

PARTICIPAÇÃO DE NAMORO

P

ALvaro de Almeida Leão

Traducido al español por José Manuel Lusilla
 

Simone, 27 anos, com curso superior em Hotelaria, trabalha na rede de hotéis da família. Namora, às escondidas, Sérgio, por culpa do pai dela, que não aceita ninguém que não seja de seu mesmo nível social.

Sérgio, 29 anos, trabalhador, honesto, de origem simples, é enfermeiro autônomo, egresso de escolas e universidades públicas.

Sérgio e Simone não gostam nem um pouco dessa situação. Amam-se muito e não merecem outro tratamento senão aplausos e consideração.

O pai de Simone, seu Horácio, viúvo, 72 anos, é avarento, ranzinza e intratável. Acha que as famílias não deveriam se misturar entre classes sociais. Para ele, o certo é rico com rico, remediado com remediado, pobre com pobre, miserável com miserável. Seu sonho é casar a filha com alguém de uma das famílias ricas da sociedade local.

Horácio também é pai de Carlos Augusto, solteiro, 26 anos, aeronauta, que trabalha como piloto de aviões de pequeno porte.

Em época de férias, Simone e Sérgio pretendem viajar juntos e combinam o dia e horário em que comunicarão seu namoro a Horácio.

Os familiares de Sérgio gostam muito de Simone e desejam êxito ao casal.

Numa tardinha, Sérgio, com a boa aparência de sempre, um pouco nervoso, porém muito feliz, chega à casa de Simone. É recebido pela namorada.

-Entra, bem!

-Oi, meu amor! Guarda minha valise? Teu pai está?

-Está. Vamos entrar.

-Sim. E podes deixar, sei muito bem o que desejo e mereço.

Sérgio é conduzido até a biblioteca, onde Horácio está assistindo ao noticiário. Simone anuncia:

-Pai, este é o Sérgio. Ele quer falar com o senhor. Vou deixá-los à vontade. Com licença.

-Sim. Mas quem é o senhor e o que quer de mim?

-Seu Horácio, muito prazer em conhecê-lo. Sou Sérgio e tenho um assunto importante para tratar com o senhor.

-Assunto importante logo no primeiro encontro? Estranho. Mas vamos lá, desembucha. Que seja rápido e rasteiro, tenho mais o que fazer.

-Acontece que, com o maior prazer, sou namorado da Simone e...

-É mesmo?! Ela sabe disso?

-Não baixemos o nível da nossa conversa. Sem ironias, por favor.

-Há quanto tempo isso acontece? Minha filha não me falou nada.

-Já faz seis meses.

-De que família tu és?

-Sou, com orgulho, de uma família de origem pobre, honesta, trabalhadora e importante, responsável pelos valores morais e sociais que formaram meu caráter.

-Mas vamos a outros assuntos: teu currículo escolar, trabalho e ganho.

-Sou formado em Enfermagem, com extensão em licenciatura plena. Exerço minha profissão como autônomo. Meu ganho mensal varia.

-Fala sobre tua posição social.

-Ainda não a dimensionei, por considerá-la menor, em importância, do que a plena realização do dever cumprido.

-Acontece que, para mim, isso é tudo. A filha é minha e sou eu quem decide seu futuro.

-Desculpe, seu Horácio, mas acho que não é bem assim.

Não é bem assim uma ova! Quer que eu diga uma coisa curta e certa?

-Não me venha com despropósitos. Eu o estou respeitando e exijo o mesmo tratamento.

-Pois olha... seu nem sei quem, sou totalmente contra esse nefasto namoro. Entendeu bem? Contra! Vai-te daqui e esquece este endereço.

-Eu não sei onde estou que não o mando para aquele lugar.

-Vai tu, tipinho de uma figa!

Sérgio começa a se retirar da casa, antes que perca as estribeiras. Encontra-se com sua amada, que, nervosa, indaga sobre o resultado do encontro com o pai.

-Então, meu amor, tudo legal para nós dois?

-Tudo legal nada! Parece até que não conheces teu pai! O que tu me disseste ao me receberes?

-Entra, bem.

-Pois foi o que aconteceu, entrei bem.

-Que desagradável.

-Bem sabes que não foi por minha culpa.

-Lógico que não. Mas o que conversaram?

-Conversamos sobre...

Diálogos interrompidos por um pedido de socorro de Horácio:

-Simone, minha filha, me acuda! Estou muito mal. Tudo está escuro. Acabou de passar na televisão: um avião da empresa de Carlos Augusto caiu. Não há sobreviventes!

-Simone, depressa, minha valise! Vamos até a biblioteca.

-Sim, Sérgio, aqui está. Oh, Deus, não permita que meu pai morra!

Na biblioteca, encontram Horácio sentado, com o corpo reclinado para trás, tentando fazer massagens no coração.

-Simone, telefona agora mesmo para os médicos do teu pai e para a emergência da SAMU.

Sérgio, ao constatar suor excessivo, palidez, dificuldade para respirar e ao obter respostas afirmativas às perguntas sobre dor no peito, formigamento no braço esquerdo, dor no estômago e náuseas, conclui ser, quase certo, um infarto do miocárdio.

-Simone, irei prestar os primeiros socorros ao teu pai, tudo bem?

-Tudo bem. Deus os ilumine!

Sérgio deita Horácio no sofá, afrouxa suas roupas e inicia massagens cardíacas e palavras de incentivo à vida. Após uma pequena melhora, Horácio piora, sofrendo duas paradas cardíacas. Sérgio realiza reanimação com massagens e respiração boca a boca, estabilizando-o.

O telefone de Simone toca. Ela atende:

-Alô?

-Oi, mana! Tudo bem? Soubeste do acidente com um avião da nossa empresa? Não estava nele. Irei voar só amanhã de manhã. Avisa o pai. Ele está bem? Posso falar com ele?

Simone corre para contar ao pai:

-Pai, é o Carlos Augusto! Ele está vivo! Graças a Deus!

Horácio, de mãos postas, olha para o alto e lágrimas de alegria rolam sobre seu rosto.

Chega a SAMU. O atendimento de Sérgio é elogiado. Os paramédicos medicam o paciente e o preparam para o hospital. Um paramédico pergunta:

-Quem são os familiares?

-Eu sou Simone, filha de Horácio. Este é Sérgio, meu namorado.

Outro paramédico intervém:

-Seu Horácio, sabia que nasceu hoje de novo? Se não fosse Sérgio estar aqui bem na hora, não sei se estaríamos proseando.

Horácio pede para falar com Sérgio:

-Sérgio, estive no time dos quase mortos. Sou um renascido. Minha “caixa de entrada” do meu modo de ser zerou. A partir de agora, só armazenarei o bem. Prometo!

-Muito bem, seu Horácio. Folgo em sabê-lo.

-Agora, tenho um pedido solene: aceita este “recém-nascido” como teu sogro?

-Não poderia ouvir melhor pedido. É claro que aceito!

-Ótimo! Chama Simone, quero chorar abraçado à minha família... à minha nova família.

Ao calor dos abraços e beijos, a vontade que logo chegue o amanhã, quando então, com toda certeza, os anseios da querida filha Simone e do Sergio estarão integralmente aos seus alcances. E isso é tudo, é divino.

Dá pra acreditar?

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Alvaro de Almeida Leão

 

Decisão de um torneio estadual de futebol de campo. Time local, Tamoio Futebol Clube, jogando pelo empate contra o time visitante, Tupi Futebol Clube. Juiz e bandeirinhas contratados de fora do Estado. Casa cheia. Vinte e três mil espectadores, dos quais três mil torcedores do time visitante.

Aproximando-se o final da partida, e o jogo estando com o placar de zero a zero, é mais que normal ouvir-se da torcida local: ...Acabou!... Acabou!... É campeão!... É campeão!... É campeão!...

Aos quarenta e quatro minutos da etapa final, surge uma desgraça. E que desgraça!... O juiz marca um pênalti contra o time da casa. Faltava só o atacante passar pelo último zagueiro, quando, na pequena área, este lhe dá um chutão que o levanta com bola e tudo. Pênalti claro, legítimo. Aceitar, é que são elas. Por vezes o interesse próprio não permite o adequado uso da razão.

Poucos alegres da vida e a grande maioria pedindo pra morrer. No campo, safanões, ofensas de parte a parte, cobra o pênalti, não cobra, o empurra-empurra, o esconder da bola e jogo, que é bom, nada. Os bandeirinhas, solidários com a decisão do juiz, protegem-no. O policiamento matreiramente fazendo “vistas grossas” quando das ações de interesse do time local.

O presidente do time da casa vai até o juiz, já desabotoando acintosamente sua camisa de maneira que aparecesse o seu “trintão e oitão” de cabo prateado e o “ofende feio” aos gritos:

- Ó seu cagalhão bunda mole, quando eu morava no chiqueiro da tua cidade, a qualquer hora do dia ou da noite, era só querer e eu transava com a tua mãe.

O juiz nem tomou conhecimento. Colocação, mais ou menos idêntica, já ouvira em outras ocasiões e sabia sua intenção: causar-lhe reações que o deixariam em maus lençóis.
O delegado da cidade, já dentro do campo, vai logo avisando, melhor dizendo, coagindo:

-Ó vagabundo bagunceiro, não tinha nada que marcar pênalti faltando pouco tempo pra terminar a peleja. Te manca!... Muda tua decisão enquanto é tempo!...

-Aqui, cometeu-se pênalti, a minha obrigação é marcá-lo. Doa a quem doer.

-Conheces o ditado “quem semeia vento, colhe tempestade”? Criaste um problemão, pois que o resolvas. Sai dessa se fores bem macho.
O juiz e os auxiliares num só objetivo: cumprir, e bem, suas obrigações.

Transcorridos “longos e intermináveis” dez minutos de paralisação, o centroavante do time visitante, (seu capitão e batedor oficial de pênalti), vai até o goleiro do time local:
Pois é goleiro, se nenhuma das partes ceder, não chegaremos a lugar algum.
É, não tá fácil...
-Tenho, lá na minha cidade, logo mais, um casamento e de maneira alguma gostaria de me atrasar, pois sou o padrinho dos noivos.
-E o que tenho a ver com isso?
-Particularmente, acho... Acho não, tenho certeza de que houve rigor na marcação do pênalti. Então, gostaria de te fazer uma proposta.
-Proposta?!... Pensa bem o que vais propor. Poderás te dar mal. Muito mal mesmo!
-Calma!... Calma!... Proponho que convenças o capitão do teu time a permitir que o pênalti seja cobrado. Aí então...
-Teu time ganhará o campeonato.
-Não, não é nada disso. Aí então, eu que sou o batedor do pênalti, vou chutar pra fora, resgatando, assim, a injustiça cometida.
-Tu garantes?
Pode crer. Bem sabes que somos homens de palavra.
-Dá pra acreditar?
-Certamente. Nem fiques nervoso na hora. Vou bater a uns dois metros por cima da goleira.

O goleiro mal podia acreditar no que estava ouvindo. A situação mudou, assim como da noite para o dia. Foi falar com o capitão do seu time:
-Capitão, preciso falar contigo, algo importante. Vamos até ali, a conversa é reservada.
-“Tá”, mas que sejas breve. Preciso estar com o nosso time, levantando o seu moral.

O centroavante do outro time, que é o batedor oficial de pênalti, há poucos instantes me prometeu que se deixarmos o pênalti ser cobrado, irá chutá-lo pra fora. Ele tem um compromisso logo mais “apadrinhar” um casamento. Precisa voltar o quanto antes.
-Mas, o que é que tu achas? Sentiste firmeza?
-É um risco, é verdade, mas penso que será como ele está propondo. É pagar pra ver... Ele até ressaltou o fato de sermos homens de palavra.
-Acho que é uma... Porém, fico pensando, o pai, há pouco, foi tão veemente defendendo nossos interesses junto ao juiz. Eu contrariá-lo agora não vai ser uma boa.
-O fato de, além de capitão do nosso time, seres o filho do delegado, pesa, é verdade, porém acho que a conquista do título para o nosso time está em primeiro lugar.
-Também acho. Então, goleiro, vou falar com o juiz.
-Não seria melhor comunicar primeiro ao presidente do nosso time?
-Não. Quanto menos pessoas envolvidas, melhor.
-Bem lembrado.

O capitão do time local vai ao encontro do juiz:

-Seu juiz, eu, capitão do meu time, decido que o pênalti, que acho não ocorreu coisíssima nenhuma, seja cobrado. Erraste feio ao marcá-lo, mas, como não queres voltar atrás, paciência... Tua carreira de juiz já era. Erro técnico desse porte é inconcebível.

O presidente do time local, ao ouvir tamanho disparate, vai à loucura. Possesso parte para cima do desaforado capitão do seu time e só não foi “à via de fato” porque o seguraram.

A torcida local atônita presencia o presidente do clube pedir briga com o seu capitão.

O delegado, após refazer-se da surpresa, foi falar com o seu filho:

-Que fizeste, meu filho?!... Estás louco?!... Tens real noção da responsabilidade que estás assumindo?

-Tenho, pai. Sei o que estou fazendo. Não vai haver erro.

Os jogadores do time local, indignados com tão infame decisão. O presidente do time local, de tanta raiva, está totalmente sem ação. O delegado é a personificação do desânimo.
A torcida local, ao ver os jogadores e o juiz dirigindo-se para a goleira do seu time, sente que o pênalti vai ser batido. Era só o que faltava!... Não, essa não!...

Frente a frente, o centroavante do time visitante – ciente de seu dever – e o goleiro do time local – tranquilo, pra ele promessa é promessa –.

Finalmente, o juiz autoriza a cobrança. O centroavante enche o pé com um potente chute no canto esquerdo da goleira e, ao ver a bola estufar a rede, corre “a mil” em direção ao seu vestiário.

O goleiro do time local, sem que alguém entendesse o motivo, inicia uma perseguição ao “tratante safado” para tirar o seu couro vivo.

Ao mesmo tempo em que o presidente do time local, de revólver em punho, se põe à procura do “desgranido” capitão de seu time. Este, que não é bobo, está se mandando em direção à saída do estádio. O delegado, ao perceber o perigo de vida que ronda seu filho, o protege, interpondo-se entre os dois. Nessa hora, a figura do pai sobrepõe-se à do delegado.
Em súplica, o delegado roga ao presidente do time local:

-Homem de Deus, não atira no meu filho! Já não basta tudo de ruim que está acontecendo?
Não fosse essa heróica atitude do delegado, o “bicho iria pegar feio”.

A torcida local, que pedira pra morrer, está sendo devidamente atendida.

O time visitante, “na dele”, sem aceitar provocações, vibrara com o gol e já procedera à substituição do seu centroavante. Aguarda o reinício da partida.

O time local, sem condições de toda ordem, não retorna. Então, o juiz encerra a partida e proclama na súmula o Tupi como vencedor, pelo placar de um a zero.

À noite, a festa de “casamento”, na sede do Tupi. O centroavante goleador irradia felicidade, e bota felicidade nisso! A noiva – a fiel torcida do Tupi – e o noivo – o título de campeão do torneio – todos nós sabemos, serão felizes para sempre.

Pensando melhor

P

Alvaro de Almeida Leão

O Duda, goleirão titular de um time de futebol de campo, está na gaveta, isto e: comprado pelo adversário, para fazer com que seu time perca o jogo. Com essa atitude espera sanar problema financeiro, resultado da sua condição de perdulário.

Para que tudo dê certo, é só aguardar um chute em direção ao seu gol, muito bem-vindo, por sinal, e fazer de conta que tentou defender.
O jogo auspicia-se sem favorito. O time do Duda tem no seu desempenho o seu ponto alto. No time adversário, sobressai-se a dupla de ataque Cosme e Damião.

Duda programa-se para a partida de futebol. Tomar frango não está nos seus planos, de forma alguma. A fronteira entre um frango e a gaveta é muito tênue.

Começa a partida. Primeiro tempo totalmente morno. Sem chance de gol para os dois times. Paciência. Fazer o quê? Não deu, não deu.
No intervalo do jogo, o Duda está pensando: o que estará acontecendo com a dupla Cosme e Damião? São jogadores tão eficientes. Hoje não estão jogando nada.

O Damião, por sinal, é um grande amigo do Duda. Foram criados no mesmo bairro. Companheiros de jogo de bolita, de taco e de memoráveis peladas.

Segundo tempo igual ao primeiro.

Faltando dois minutos para terminar a partida surge a dupla de atacantes com sensacionais tabelinhas. Duda sentiu que chegara seu esperado momento. Só faltava passar pelo último zagueiro. Barbada dois contra um. É fazer o gol e comemorar.

Duda posiciona-se parado com os braços estendidos pro alto e o corpo curvado para a direita, sinalizando, assim, que será para aquele lado que irá se jogar.

A bola ora com um atacante, ora com outro, e o Duda, que deveria, por esse fato, gingar, acompanhando a trajetória da bola, de um lado para o outro, não o fazia.

Ao driblar o último zagueiro, Cosme dá um passe para Damião, que vem mais atrás, e este ao divisar o boqueirão do lado direito da goleira, bem a sua feição, bate com o peito do pé a bola, só que com impulsão e força maiores que as necessárias.

O Duda encena que o lance o pegou no contrapé e o levou a cair.

Embora com a direção correta, a bola, ao ganhar uma altura proporcional ao grande impulso com que foi levantada, passa a uns dois metros acima do travessão.

Duda se desespera, pede pra morrer. Brabo da vida, cobra do Damião:
- Pô, Damião, era só bater na bola com um leve toque! Como podes perder um gol desses?
- Como não perder se eu e o Cosme estamos na gaveta para não fazer gols. Essa nossa última jogada, combinamos para alegrar um pouco a nossa torcida.
- O quê?!... Também na gaveta? Não é possível. Me ferrei. Deu para a minha bolinha. Fui.
Após o jogo pensando melhor, Duda, até que achou bom, bom não, achou excelente que não tenha participado, embora não lhe faltasse vontade, da barbaridade a que se propôs.

É imprescindível não se estar sujeito a julgamentos morais por deslizes praticados.

Arnaldo é o cara

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Alvaro de Almeida Leão

Dos doze comerciantes de uma galeria comercial, num bairro da cidade, só o Arnaldo - 63 anos bem vividos, boa saúde, abnegado trabalhador, família bem estruturada, esposa, filhos e netos - não vai bem de negócios, por mais que se esforce.

Logo após sua aposentadoria como industrial calçadista de médio porte, Arnaldo inaugurou seu tão sonhado escritório de representações com sede própria. Adivinhe quantos negócios, em três meses, Arnaldo conseguiu fechar, num parâmetro de até vinte.

Pensou? Já tem sua resposta? Sim? Pois acho que errou. Outra chance. Tem um novo palpite? Sim? Qual? Desculpe, acho que ainda não acertou. Última oportunidade. Quantos? Ainda suponho errado.

Então, só resta dizer quantos. Posso fazê-lo? Então declaro, para os devidos fins, que o Arnaldo, em três meses de trabalho, não realizou um único negócio.

Sendo assim, de que vive o Arnaldo?

De cinco apartamentos, três casas, quatro lojas num shopping center e nove vagas de garagens, todos relativamente bem alugados.

Duas aposentadorias: a do regime geral de previdência social e outra por anterior contrato de adesão particular. Aplicações em espécie em carteiras de investimentos bancários e ações em empresas de sociedades anônimas.

Daí, com esse perfil, é natural supor-se: proprietário de imóveis de uso habitual ou ocasional na cidade, serra e mar.

Bem financeiramente, porém não realizado por sua firma não deslanchar. Arnaldo sabia das dificuldades iniciais quando fundou a sua atual empresa por não ter um produto que servisse de carro-chefe nas vendas. Porém, num futuro próximo, tem certeza de que irá reverter tal situação, está fechando um contrato de representação com exclusividade para todo o estado, de um produto inédito, de uso essencial e com ampla divulgação em toda a mídia.

Cada colega comerciante nutre pelo Arnaldo sentimento de tristeza e orgulho. Tristeza por ele não efetivar os negócios que tanto almeja e orgulho por seu apurado senso de responsabilidade.

Alguns comerciantes, mais íntimos, sentem-se à vontade para tirar sarro, no bom sentido, com todo respeito, quanto ao comércio do Arnaldo, através de questionamentos: sobre negócios versus lucratividades, como atender sozinho tantos clientes, quando abrirá uma filial, notícias sobre as futuras merecida férias, entre outros do gênero.

Ao Arnaldo, não lhe falta tenacidade na dedicação do dever. Admirador da pontualidade britânica cumpre religiosamente seu horário de trabalho, embora sua clientela teime em não se apresentar.

Numa tarde, ao sentir uma forte dor de cabeça, Arnaldo decide por algo que jamais fizera: ausentar-se do trabalho, em horário comercial. Porém era preciso comprar um remédio na farmácia bem próxima. Zeloso, por natureza, elabora um cartaz no computador e afixa na porta da sua loja com os seguintes dizeres:

DESCULPEM A AUSÊNCIA,
VOLTO EM CINCO MINUTOS

Arnaldo capricha em cumprir o que prometera. Um minuto antes de esgotar o tempo, volta e depara-se com o cartaz agora ostentando anotações escritas, através de canetas ou esferográficas, tendo por autores parte de seus colegas empresários, em letras de fôrma ou de imprensa. Agora lê-se:

DESCULPEM A AUSÊNCIA,
VOLTO EM CINCO MINUTOS

Pra quê? Não estás cansado por hoje? – Eu não voltaria. – Sem essa de pressa, não irás fazer nada mesmo. – E as férias já estão programadas? A vida não é só trabalho. – Dois clientes estiveram aqui. Voltarão amanhã, como sem falta. – Logo que saíste o telefone não parou de tocar – Ausentar-se não foi uma boa. Foi fatal.

Ao ler o texto modificado, Arnaldo um tanto quanto contrariado, é consolado pelos colegas comerciantes, que afirmam ser apenas uma brincadeira, que ele não levasse a mal. Naquele resto de tarde, tapinhas nas costas e sinceras palavras de incentivo: vai fundo, és exemplo para todos nós, parabéns pela perseverança.
Sempre firme na batalha, um mês depois o futuro próximo do Arnaldo chegou. E nem precisava ser na medida do exagero (muito bem-vindo) com que pede passagem.
Contrato firmado, as excelentes vendas do novo produto fizeram com que surgissem solicitações de indústrias consagradas no sentido de que Arnaldo as representasse. A clientela atual também é teimosa: teima em não parar de crescer.

Com o progresso, surge o dilema de onde o cliente estacionar o carro, (a galeria não dispõe de garagens). A solução foi Arnaldo adquirir o excelente terreno - 40m x 120m - na esquina da quadra de sua empresa (importante nessa hora uma reserva financeira) e transformá-lo num amplo estacionamento. Eta terrenão bom, para, quem sabe, um futuro prédio em que se constituirá o novo endereço do Arnaldo.

O tempo de progredir, jamais perde a validade. – Mas, bah. Que bonito! Alguém já disse isso? Se não, disse-o agora.

A sala própria da empresa do Arnaldo, de boa dimensão se adequou à necessidade da contratação de quatro funcionários. A empresa cresce a cada dia. O fluxo de clientes circulando na galeria comercial aumentou em cem por cento, resultando num maior faturamento de todos os demais comerciantes que, por isso, estão rindo à toa.

Todo esse sucesso repercute não só entre os comerciantes da galeria comercial, mas, por extensão, para o bairro como um todo. A dedicação do Arnaldo foi merecidamente recompensada.

No Natal, todos os comerciantes da galeria e seus familiares estão reunidos para comemorarem a magna data com o Arnaldo, num clube especialmente aberto para o festivo evento. Arnaldo é, a todo instante acarinhado por seus dedicados familiares, amigos e clientes. Comes e bebes dos mais apetitosos. Alegria geral e irrestrita.

Em dado momento, os onze colegas comerciantes anunciam que irão brindar com champanhe, conceitos, previamente escolhidos, cujas primeiras letras de cada um deles, se concebidas juntinhas, (comprovem, por favor), propiciarão o surgimento de uma frase, com que pretendem homenagear o amigo Arnaldo.

Munidos de suas taças com o precioso líquido, erguem-nas e conclamam brindes:

Ao Amor, à Razão, à Natureza, à Ação, ao Labor, ao Dever, à Ordem.
à Ética, à Oferta.
à Coragem, à Amizade, à Remissão, ao Arrojo.

Resultando, com que todos os presentes, em uníssona voz, de pé, emocionados, brindam à saúde do querido e amado Arnaldo e de toda sua honrada família.

Pedrinho e Marlene

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Alvaro de Almeida Leão

 
Pedrinho é um comerciante de porte médio em uma pequena cidade do interior, onde todo mundo conhece todo mundo.
 
Ao namorar Marlene – secretária executiva na empresa em que o pai dela é proprietário - Pedrinho encontrou o seu verdadeiro amor. Que casal simpático e promissor.
 
Para extravasar todo seu sentimento, Pedrinho passa a ostentar no vidro detrás de seu automóvel, o quanta a ama:
- ACHO QUE EU SOU A ALMA GÊMEA DA MARLENE –
 
Bela forma original de expressar tão puro amor. Marlene, envaidecida responde ao colocar dizeres em seu carro:
 
- EU NÃO ACHO. TENHO ABSOLUTA CERTEZA –
 
Em seguida, as atenções se voltaram para o Pedrinho, que, sentindo-se na obrigação de retribuir, assim se expressou:
 
- REALMENTE, ME PASSEI. NÃO TENHO DÚVIDAS, SOU A ALMA GÊMEA DA MARLENE -
 
Estabeleceu-se - ao natural - um canal de comunicação entre os dois (como um blog a céu aberto) em assuntos, desde que não de fórum íntimo, para alegria de parentes e amigos.
 
Dia desses o pedido que todos ansiosamente aguardavam:
 
- QUERIDA MARLENE, QUER CASAR COMIGO? -
 
A resposta da feliz pretendida Marlene, não tardou:
 
-SIM, SIM, SIM, SIM, SIM, SIM, SIM, SIM...MIL VEZES, SIM –
 
Passados seis meses, convites para o casamento dos dois (em textos idênticos) tanto no carro do noivo quanto da noiva.
 
Casados, daí para frente tudo nos conformes. Felicidade geral e irrestrita. Pessoas inteligentes, honestas e trabalhadoras tendem, por merecimento, a só progredirem.
 
Quase completando um ano de casados, Marlene sente os bem-vindos sintomas de enjôos, para felicidade de todos. Dizeres nos respectivos carros:
- FAMÍLIA AUMENTADA À VISTA! –
 
Após o nascimento da primogênita Ana Clara, é anunciada a próxima chegada de seu irmãozinho, o Carlos Augusto.
 
Assim, foram decorrendo os anos e a vida. Quando perguntam ao nosso casal, como estão, é imediata a orgulhosa e consciente resposta: se melhorar estraga.
 
Quando das bodas de prata, grande satisfação em anunciar seus filhos egressos das universidades, acompanhados de promissores encaminhamentos profissionais.
 
Nos cinquenta anos de exemplar união, questionados sobre quais aspirações gostariam satisfeitas, ncias, pediram um tempo para responderem. Dias depois as exibiam em seus automóveis:
 
- DEUS PERMITA QUE EU JAMAIS VIVA SEM O MEU PEDRINHO (Marlene) –
 
- QUERO A MARLENE SEMPRE AO MEU LADO, SEM ELA MINHA VIDA PERDERIA A RAZÃO DE SER (Pedrinho) -
 
Comoção pela triste notícia dos óbitos dos ilustres Pedrinho e Marlene, atingidos em seu automóvel, numa BR, por outro veículo que trafegava em sentido contrário.
 
Consternados, seus filhos, nora, genro e netos.
Ternas lembranças de que os últimos desejos dos diletos e inesquecíveis Pedrinho e Marlene foram integralmente realizados:
 
- UNIÃO NA VIDA, NA MORTE E POR TODA ETERNIDADE –

MAIS SONHOS, NÃO, POR FAVOR

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 Álvaro de Almeida Leão

Leonardo, o Leo, atualmente com 27 anos, há algum tempo atrás, para concluir seus estudos, aceitou o convite para morar na capital com seu tio Carlos Augusto, que é casado em segundas núpcias com Maria Clara, mãe da Daniela, a Dani, hoje com 25 anos, a quem o tio a tem como uma querida e amada filha.

      Leo, desde o início encantou-se com o excelente convívio familiar. Sempre bem nos estudos é formado em Administração de Empresas e é atualmente Gerente de Produção numa Indústria de Móveis Planejados, onde começou como auxiliar de serviços gerais. Dani, funcionária da mesma empresa, chefia o Setor de Controle de Qualidade. Faz faculdade de Arquitetura a noite.

      Ano passado, Leo adquiriu um terreno num condomínio em formação, em que há umas vinte casas habitadas, próximo do bairro do tio e ergueu nos fundos um apartamento, onde mora, até construir sua casa principal.

      Quanto à vida amorosa do Leo, algumas namoradas, nada de mais sério. Tem a Dani, como sua melhor amiga e confidente. Igual sentimento compartilha a Dani. Numa ocasião em que eles estavam sem namorar alguém, começaram a sair juntos, um dando força ao outro, daí, ao natural, passaram a se verem com outros olhos. Agora, felizes da vida, estão se namorando.  Logo o aniversário da Dani, em que o novo casal, idealiza uma comemoração especial.

      Algo incomoda o Leo: seguidamente sonha com ações do dia-a-dia envolvendo seus familiares. Sonhos que sempre se realizam.

      Nos primeiros sonhos Leo escolhia aqueles de prenúncios desagradáveis e tentava, em vão, junto aos seus familiares, ações  contrárias as que poderiam acontecer, não obtendo êxitos.

      Saber o futuro, não está com nada, pra ninguém. Muitos até adoeceriam ou morreriam antes mesmo da hora. Para nosso bem, é imprescindível ignoramos o que  acontecerá no próximo segundo.

      Leo gostaria e muito que não ocorressem mais desses sonhos. Sente-se incomodado  a ponto de, numa hora dessas  até adoecer.  Sendo assim roga aos céus: mais sonhos, não, por favor.

      Não obstante esse apelo, ocorreu, faltando dois meses para o aniversário da Dani, o mais preocupante dos sonhos: o de que não haverá comemoração do aniversário da Dani Foi um tiro no pé, Leo  simplesmente desmoronou.

       Nada disse a Dani, sobre o sonho, apenas questionou sobre a saúde dela, mesmo sabendo boa. Ainda verificou as possibilidades de acidentes quer no trabalho quer em sua casa, tudo normal. Passou a levar e buscar de carro a Dani na Faculdade.

      Apesar da realização, até agora, de todos os seus sonhos, a esperança do Leo é a do adágio popular de que toda regra há exceção.  Mas, será que há mesmo?!... Tomara, mil vezes tomara.

      Sua vida tem sido bem conturbada. Desagradável até. Não há um dia em que não pense, mas por quê isso? Emagrece a olhos vistos. Sente-se tonto, sem apetite e com insônias.

      Na sexta-feira à noite, véspera do aniversário da Dani, o Leo esteve na casa da amada, até bem tarde, tratando dos preparativos do aniversário. Dani achou-o muito tenso e nervoso, pensou ser o resultado das últimas semanas de afazeres nos preparativos do aniversário.Despede-se, afirmando que, no outro inesquecível dia, virá se encontrar com ela pelas dez horas, do dia seguinte.

      Em casa, Leo, exausto não está conciliando o sono.  Pensa quando esses malfadados sonhos irão parar? Quando meu Deus? Aguentar tudo isso não está sendo nada fácil.

      Na manhã de tão esperado dia do aniversário a Dani recebe em sua casa um buquê de flores do campo, com uma bela e singela declaração de amor eterno, do amado Leo. Dani é só felicidade.                                

      Passados trinta minutos das dez horas, Leo não aparece e não atende o telefone, então a Dani e seus pais resolvem ir até a casa dele.No condomínio se identificam e transmitem para os funcionários da portaria suas apreensões. Condôminos que se encontravam lá papeando. após caminhadas se oferecem para acompanhá-los, um deles é o médico doutor Aldo. No percurso o doutor Aldo ao passar por sua casa, pega sua valise de trabalho.  

      Chegam à casa, chamam atenção o chuveiro ligado e em particular a água fluindo pela soleira da porta. Como têm as chaves da casa, abrem-na. O tio e o médico vão na frente. Encontram o Leo caído no banheiro, com um corte e um hematoma na cabeça.

      - Oi tio, oi doutor Aldo que bom que vieram-diz o Leo. Caí quando vim tomar banho. Estou sem forças pra me levantar. Como está a aniversariante a minha amada e querida  Dani?

       Nesse instante mãe e filha em convulsivos choros chegam onde se encontra o Leo, uma se apoiando na outra, a tempo de ouvirem o que o Leo dissera.

      - Estou aqui amado meu. Tudo vai passar. Logo estarás bem, se Deus quiser.

      Leo é conduzido até o quarto. Doutor Aldo afere seus sinais vitais, administra os primeiros socorros não o permite dormir e o argui com perguntas que exigem raciocínios lógicos. Logo que o Leo melhora aconselha que ele vá para um hospital.  Doutor Aldo, faz questão de o leva em seu automóvel, junto seus tios e a Dani.

      Mais uma vez a constatação de um sonho que se realiza, não haverá comemoração do aniversário da Dani.

      Ainda no hospital, mais um sonho: a promessa de que nunca mais ocorrerão sonhos com familiares, nos moldes de antes  e o principal, que fez com que  se sentisse  um homem  plenamente realizado: casará com a Dani e a vida será só felicidade.  

      Após dez dias de intenso e dedicado tratamento hospitalar, Leo  está voltando para casa cercado de todo carinho dos tios e bem abraçadinho com a sua amada Dani. Exultante de gratidão e alegria pela dádiva de amar a Dani hoje e sempre e por toda a eternidade.

Pediu, levou

P

ALvaro de Almeida LeÃo

Estamos na madrugada de uma segunda-feira, dia 14. O Ernesto Anthunes de Barcellos Pereira está pensando ganhar uma grana alta em quaisquer das modalidades de jogos de apostas existentes.
 
Como não se considera uma pessoa sortuda, acha que só um verdadeiro milagre faria com que ficasse milionário, assim, da noite para o dia, como, por exemplo, ter em suas mãos um exemplar do jornal que será editado na segunda-feira da próxima semana – dia 21. Fonte dos resultados dos jogos,
 
Nisso, como num passe de mágica, Ernesto Anthunes vê bem a sua frente, nada mais nada menos que o jornal que desejou possuir: o da segunda-feira vindoura.
 
De início não acreditou no que estava vendo. Passado o primeiro impacto, sorrateiramente começa a se aproximar do bendito jornal, e, em segundos, o tem em suas trêmulas mãos. Por instantes se lembra de agradecer o seu desejo atendido, a quem quer que seja o responsável. Faz alguns exercícios de respiração, a fim de que seu estado ofegante melhore um pouco que seja.
 
Começa a imaginar que daqui a pouco estará sabendo todo o necessário para se tornar, sem sombra de dúvidas, um novo rico. Antegoza os prazeres mil que irá desfrutar.
 
Enfim, menos tenso, inicia a leitura daquele inusitado e único jornal em toda face da terra, à mercê do seu manuseio.
 
De imediato vai à página que traz todos os resultados das diversas modalidades das loterias de números. Na principal das loterias, a de seis números, em virtude do grande número de apostas, fica sabendo que até o fechamento da presente edição, não foi apurado se houve acertadores. Ainda, consoante o resultado - cinco dos seis números em sequência - presume o jornal, com quase absoluta certeza, que o prêmio acumulado há oito semanas, assim permanecerá.
 
Ledo engano - pensa faceiro o Ernesto Anthunes. É natural já se considerar o único acertador.
 
Após a notícia de que acertou todos os jogos de que participou, pensa o Ernesto Anthunes que, por certo, será tema de reportagens no mundo inteiro. Indagações e afirmações as mais curiosas, entre outras: Força superior? Que tipo de fenômeno foi esse? O impossível aconteceu? Quem se habilita a explicar? Casas lotéricas, de agora em diante, proíbem, terminantemente, apostas do Ernesto Anthunes.
 
Sente-se entrevistado por todas as redes de rádio e televisão de todo o planeta. De certo convites para conferências. Centros científicos interessados no estudo do que, à luz da ciência, poderá ter acontecido. Capas de revistas. Enfim, a autêntica e merecida celebridade.
 
Envolto em toda essa emoção, é normal, mais e mais, nervosismo. Começa a suar frio. Sente que precisa reagir. Resolve então colocar o jornal de lado, por alguns minutos e só repousar, nada mais.
 
Enfim, mais aliviado, deixa-se levar, pelos fantasiosos pensamentos. A cada momento a sua vida modifica-se em todos os sentidos: maneira de ser, hábitos, tudo regado a prazeres e mais prazeres.
 
Descança um pouco Após sentir-se em condições, volta a ler. Na primeira página, as manchetes boas e ruins. Regozija-se pelas primeiras. Lamenta-se pelas últimas.
Em seguida encontra o noticiário político. Detém-se mais nos títulos dos assuntos. Logo às páginas das notícias internacionais, apenas toma conhecimento do que lhe chama mais atenção.  Mais adiante, depara-se com o que ocorre no mundo do crime. Choca-se com os desajustes cada vez mais insensatos. Não concebe como o mundo pode ser tão cruel. Enfim é a vida..
 
Nas páginas culturais, Inteira-se dos lançamentos dos novos livros. Nas notícias esportivas, vibra com a vitória de seu time de futebol, com um gol aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo.
 
Outra página. Chamam atenção os anúncios com letras em destaque e em negrito dos que deixaram esta vida. Resolve ver se encontra alguém que tenha sido seu conhecido. Dos primeiros nomes nunca ouviu sequer falar. Ao se fixar no penúltimo anúncio, horroriza-se, apavora-se, sente estar a um passo da loucura. Seu coração quase lhe salta pela boca. Balbuciando, com a voz trôpega, lê:
Convite para missa de 7º dia. A família do sempre lembrado ERNESTO ANTHUNES DE BARCELLOS PEREIRA agradece sensibilizada aos parentes e amigos que compareceram aos seus atos fúnebres e aos que, de uma ou outra forma, manifestaram seu pesar e convida para a missa de 7º dia em sua intenção, a ser celebrada hoje, dia 21, segunda-feira, às l8h00 na Igreja Matriz. Antecipadamente agradece pelo comparecimento.
 
Ernesto Anthunes mal acabou de ler, num lance de extrema dor e agonia, deixa escapar um estridente grito de terror, ao mesmo tempo em que a sua cabeça e seu corpo inertes pendem para o lado.

Dona Chiquinha

D

Alvaro de Almeida Leão

Ariovaldo, recém chegado a uma pequena cidade do interior, no trago, como sempre, ia passando, outro dia, por uma rua, quando uma pequena multidão dentro de uma casa, lhe chamou atenção. Curioso, indaga da primeira pessoa com quem se depara.
- Oi, qual o motivo desta festiva reúna?
- Festiva não, bem ao contrário. Estamos velando a professora dona Chiquinha, que, infelizmente, morreu.

- O quê?!...A professora dona Chiquinha, morreu. Mas, como? Não pode ser. Me nego a acreditar.

Dito isso, cai no choro com vontade, alto e com elevado sentimento. Chama a atenção de todos, tanto que familiares da falecida, penalizados com a cena, convidam-no para entrar. Este, não se faz de rogado e em instantes, começa a tentar interagir com as demais pessoas. .

Tempo de rigoroso inverno, frio de renguear cusco. Estão sendo franqueados: sanduiches, cafezinhos, conhaque, vinho, quentão e a nossa tradicional cachaça.

Ariovaldo, indagado sobre sua preferência, nem titubeia:
- Longe de mim a intenção de causar incômodo..Mas já que insistem, com todo esse frio, aceito umas cachacinhas, com todo respeito e consideração, numa boa, no capricho.
Assim se depreende, foram servidas seguidas doses da purinha e na medida em que o Ariovaldo as consumia, mais se embriagava causava pertubação..Ante tão insustentável situação, alguém diz ao Ariovaldo, ainda que não seja verdade, que a cachaça acabou. Ao ouvir tão nefasta notícia Ariovaldo desejou ir embora não sem antes se despedir da falecida.

Diante da Dona Chiquinha, aos prantos, desabafa:
-Querida e amada, dona Chiquinha! Como pode ter acontecido uma desgraça dessa com a senhora? Como, meu Deus?! Como?
Abraça-se ao caixão soluçando com tanto vigor que este está preste a se deslocar dos cavaletes.

Algumas pessoas passam a cuidar dos dois; da defunta e do Ariovaldo, para que nenhum venha a cair. O que seria um senhor vexame.
Familiares da dona Chiquinha se revezam em tentar identificar melhor, o inconsolado Ariovaldo e indagavam:
- O senhor, também, é parente de dona Chiquinha?
- Não, eu não sou parente da dona Chiquinha.
- Alguma época foi aluno da dona Chiquinha?
- Não, eu nunca fui aluno da dona Chiquinha.
- Então de certo alguma vez vizinhou com a dona Chiquinha.
- Não eu nunca vizinhei com a dona Chiquinha e pra bem da verdade eu confesso, até então, não conhecia a dona Chiquinha.
- Então, seu Ariovaldo, o senhor não sendo parente da dona Chiquinha, não tendo sido seu aluno ou vizinho e, principalmente, nem sequer a conhecendo,porquê de tanto choro?.
- Por. agora mesmo. um desmancha prazer, está me dizendo que a danada da purinha acabou. Então, sendo assim, só me resta chorar, chorar, e chorar copiosamente.
Foi a gota d’água!. Convidado a retirar-se, Ariovaldo sai seco pra beber mais e mais.
Tal situação, infelizmente é o que acontece, já há algum tempo.com o Ariovaldo, Um dia, quem sabe, uma alma nobre poderá ajudá-lo a sair dessa e que seja o quanto antes.

Um senhor cantor de tangos

U

Alvaro de Almeida Leão

Uma sociedade beneficente e recreativa social de uma pequena cidade do interior está completando dez anos de bons serviços à comunidade. Nada mais justo do que comemorar com orgulho e satisfação essa tão auspiciosa data.

Além dos convites especiais para autoridades locais constituídas, foi elaborado um boletim da programação dos festejos, produzido e assinado pelo atual secretário-geral da entidade - sempre bem-vindo por ser repleto de inteligente e fino humor - dirigido para a digna e honrada casta de associados.

Entre assuntos sérios e outros nem tanto, registramos os seguintes constantes do boletim:
– Na parte da manhã, alvorecer com salva de vinte e um tiros de canhões; como não dispomos dessas armas, vamos mesmo de revólveres, garruchas, pistolas, espingardas, bacamartes e similares, desde que funcionem;
– Apetitoso café da manhã, estilo colonial, não faltando todas as melhores iguarias, que nem vou mencionar quais, para não provocar momentos de água na boca. Local: cada um na sua casa. Por decisão unânime da nossa diretoria, será sorteada uma casa de um dos nossos associados na manhã do aniversário, para que in loco o digno secretário-geral, que este subscreve, prestigie, com sua honrada e digna presença, tão incomparável desjejum;
– Missa campal ecumênica, às 10h00, ocasião em que iremos inaugurar as novas benfeitorias realizadas na nossa sede social; atividades culturais e esportivas constantes de apresentação do nosso coral, concurso de anedotas mais ou menos de salão (atenção mais para mais do que para menos), declamações de poesias, torneio de bochas e o tradicionalíssimo GRENAL, cujo vencedor será, evidentemente, o time deste nobre secretário-geral;
– Ainda sobre o GRENAL: o gol mais bonito e o mais perdido. Importante: atletas do futebol com planos de saúde e do SUS em dia. Motivo: as seguidas contusões durante o jogo, por conta das nossas reconhecidas ruindades no trato com a bola;
– Em seguida, eleições da rainha da festa e princesas;
– Ao meio-dia, após o almoço de confraternização, haverá a entrega de troféus e medalhas aos participantes vencedores. Proibida a entrada de pessoas no trago, porém sair borracho pode;
– À tarde, chá exclusivo para senhoras e senhoritas, com desfiles de modas e sorteio de brindes. Atenção: fofocas livres, porém, não vale malhar os namorados, noivos e maridos. No salão de festas, haverá sistema eletrônico de escuta “clandestina autorizada”. Todo cuidado é pouco!... Quem avisa amigo é;
– Às 20h00, apresentação no nosso auditório de um cantor ou cantora, que estamos contratando, através de anúncios em jornais, aliando qualidade e preço, para, com o nosso conjunto regional, proporcionar momento de verdadeiro deleite musical;
– A partir das 23h00, inesquecível baile de aniversário, com música ao vivo e com hora para começar. Para terminar, como sempre, somente quando o sol estiver a pino;
– Aos felizes participantes das nossas festividades solicita-se a espontânea doação de um quilo de alimento não perecível, por pessoa, a ser distribuído às famílias carentes do nosso município (observação por oportuna: maneirar quanto à quantidade de sal ofertada, na festa anterior foi além da conta, entenderam a mensagem?);
– Atenção, atenção, muita atenção! Se chover pela manhã, as comemorações serão realizadas em conjunto com as da tarde. Porém, se chover à tarde, todas as confraternizações serão pela manhã. Entenderam a última parte dessa comunicação? Não?!... Nem eu. Mas enfim, já escrevi isso e, com a devida vênia, permito-me não voltar atrás;
– Obrigado a todos e até o próximo glorioso e inesquecível primeiro sábado do mês vindouro, ocasião em que comemoraremos nossa magna data.

Entretanto, Adalberto Luvielmo (baita nome de cantor de tangos, não é mesmo?), morador de uma cidade do outro extremo do estado, toma ciência, através do jornal, do anúncio daquela sociedade beneficente e recreativa social.

Obtém maiores detalhes pelo site da sociedade: cachê de pequeno valor, em virtude das diminutas possibilidades financeiras da sociedade; o cantor ou cantora deverá chegar próximo da hora de se apresentar e voltar no mesmo dia, pois não será franqueada hospedagem; após a apresentação, será servido um PF (o conhecido prato feito) no capricho, acompanhado de uma ceva geladinha.
Mesmo sem perspectiva de boa grana, Adalberto Luvielmo nem precisou pensar duas vezes, candidatou-se afirmando com todas as letras maiúsculas ser UM SENHOR CANTOR DE TANGOS. Ganhou, digamos assim, a concorrência artística.

Também pudera, escreveu só garganteando fanfarrices (entendam-se inverdades): que se apresentou em terras portenhas como cantor de tangos; não disse que esse fato se deu no ônibus que faz a linha Brasil-Argentina com um coro de vozes de umas trinta pessoas, seus colegas de excursão; que só não mandava um CD que gravara por ter-se esgotado em uma semana; que está em negociação com gravadoras, e que, à melhor proposta que receber, fechará contrato na hora.

Para impressionar, e foi o que realmente aconteceu, afirmou que irá extasiar a seleta plateia com sua maviosa voz, ao interpretar os famosos tangos: El dia que me quieras, A media luz, Palomita Blanca, Garufa, Volver, Adios muchachos, Caminito, Por una cabeza, Aquel tapado de armiño, La cumparsita, Mano a mano, Soledad, Esta noche me emborracho, Silencio, Cuesta abajo e Mi Buenos Aires querido.

Seu preço era lá em baixo simplesmente por amor à arte. Desde jovem, Adalberto Luvielmo é vidrado em tangos. Possui filmes, jornais, revistas e livros que envolvem o tema tangos, além de todos os discos que foram lançados desde os de vinil aos posteriores CDs e DVDs dos atuais e dos mais famosos intérpretes de tangos de todos os tempos.

Adalberto Luvielmo é um cantor assumido de banheiro, nada além. Suas tentativas de ser cantor de tangos, inicialmente em programas de calouros e depois contratando professores, não deram resultados. Faltam-lhe todas as condições. Deveria aceitar que não dá para cantor.

São 18h00 do dia do aniversário da sociedade. Um dos assuntos principais até o momento era a parte jocosa do boletim da programação.

Até agora, só alegria: alvorecer, café colonial, missa campal, atividades culturais e esportivas, almoço, chá da tarde. O time de futebol do secretário-geral nem perdeu nem ganhou; o resultado do GRENAL foi quatro a quatro.

Próximo da chegada do cantor de tangos contratado, o Adalberto Luvielmo, é que mora o perigo de alguns dissabores acontecerem.
Às 18h30min desembarca na cidade no ônibus de linha, o Adalberto Luvielmo. Boa viagem, ótima recepção, reportagem da rádio local, entrevista ao jornal, fotos, tapinhas nas costas e até alguns autógrafos.

Questionado se gostaria de ensaiar antes com o conjunto, respondeu que não é necessário. Ao saber que o conjunto já está de posse da relação e ordem de apresentação dos tangos, só resta aguardar a fantástica apresentação e partir para os braços da galera.

Casa cheia, é chegado o dia “D”, a hora “H”.
Primeiro número: aquele enorme fracasso, como não poderia ser diferente. O conjunto acelerando, para chegar junto, outras ao contrário sem sucesso. Adalberto Luvielmo desafinado e fora de ritmo que dá gosto.

Os músicos meneavam suas cabeças em negativa, reprovando assim tão malfadado acontecimento. Estavam envergonhados. Após o término da primeira agonia, assim a classifiquemos, mais da metade da plateia se manda dali aos palavrões e fula da vida. Entre eles, o ecônomo da sociedade, afirmando que o PF regado a geladinha já era. O maldito que vá reclamar a quem quiser.

Adalberto Luvielmo, sentindo e estava na cara que nem um pouco agradara, vai até a presença do conjunto musical e segreda:
– Passemos para a quinta música.

Em seguida a esse novo martírio, todos se retiram menos um. Adalberto Luvielmo ainda dá um tempo, para ver se o cara também se manda e... nada.

Faz sinal para o conjunto que irá cantar (cantar?) o último número. E assim começa a mil, sem dar tempo a ele próprio e ao conjunto de respirarem direito.

Missão cumprida, Adalberto Luvielmo vai ao encontro do seu único espectador, a fim de agradecer tanta consideração.
– Eu sou o Adalberto Luvielmo, muito prazer. Com quem eu falo?
– Delegado Aldo Leão.
– Pô, seu delegado, o senhor gosta de tangos pra caramba!
– De tangos, eu realmente gosto.
– Agradeço ao senhor por ter me prestigiado, ficando até o final do recital.
– Não tem nada que agradecer. Aqui cheguei emocionado por amor à nobre arte do tango. Porém, agora, no final, permaneci por estrito dever de ofício.
– Desculpe, mas o senhor é delegado da UBC, da SBAT?
– Não.
– Da SBACEM, do INCP?
– Também não. Ainda não foi dessa vez.
– Delegado de que então?
– De polícia e, a pedido do presidente da nossa sociedade, que irá registrar uma queixa contra o senhor, convido-o para irmos nós três até o plantão policial a fim de que o senhor, que abusou de todos nós e gosta tanto de empregar siglas, assine um TC.
– TC?... O que vem a ser isso, seu delegado?
– Termo circunstanciado. Queira nos acompanhar para aprender a nunca mais tentar enganar os outros. Positivo?
– E tem outro jeito?
– Não.
– Por falta de conselhos é que não foi. Confesso: sempre fui um egocêntrico. Errei em não me utilizar da autocrítica. Fazer o quê? Não deu, não deu. Peço desculpas pelos transtornos. Aprendi a lição. Não acontecerá outra vez. Prometo.
– É louvável que o senhor tenha percebido o seu erro e até esteja pedindo desculpas. Reconhecer um erro é o princípio da evolução pessoal. Que não fique só na promessa.
– Com toda a certeza, não. E mais, como sabemos, o fato de não reconhecermos um erro nos impede de crescer e amadurecer. Não é mesmo?
– Claro que sim. Mas, está ficando tarde, vamos então?
– Antes, podemos ir até a rodoviária? Preciso comprar minha passagem de volta.
– Certamente. Posso lhe alcançar “alguns” para despesas?
– Não, muito obrigado, não preciso.
– Eu sinto, independente do que aprontou aqui, que o senhor é uma boa pessoa. Espero que de agora em diante tenha juízo o suficiente para nunca mais cair numa roubada dessas.
– Ah, quanto a isso, não tenha a menor dúvida. Errar é humano, continuar errando é burrice. Mancada igual a essa, nunca mais, nunca mais mesmo!

E DAÍ, AGORA SAI UM JOGUINHO?

E

Álvaro de Almeida Leão

 

Morlim, Oswaldo e Zecão diariamente se encontram para um carteado amigo no bar de seu Cardoso. Por lá ficam até as 23 horas. Como sempre acontece, Morlim é o primeiro a chegar e também o que mais vibra com as vitórias alcançadas. Seguidamente ganha. Ao perder fica fulo da vida.

Passado algum tempo, seu Cardoso recebe um telefonema:

- Alô, bar do Cardoso, às ordens.

- Oi, aqui é o Oswaldo. Quero falar com o Morlim, ele se encontra?

- Sim aguarde um momentinho. Morlim, telefone, é o Oswaldo.

- Alô, Oswaldo. Estão atrasados, já estou aqui há um tempão.

- Faleceu um amigo comum, meu e do Zecão. Estamos no velório e infelizmente hoje não podemos ir até aí para nossa diversão.

- Bah, amigo Oswaldo. Tô ralado e mal pago. Acostumado com o nosso jogo, nem sei o que fazer para passar esse resto de tempo.

- O mesmo está acontecendo aqui conosco. Estamos nos sentindo fora da casinha. Sabe como é, vício é vício, não é mesmo, Morlim?

- Claro, Oswaldo, eu que o diga. Estou sentindo comichões por todo o corpo. Já tomei um monte de cafezinhos. Enfim, fazer o quê? É da vida.

-- Era isso, Morlim. Até amanhã. Certo?

- Mais do que certo. Um abraço no  Zecão.

- Será dado.

 Morlim volta pra mesa em que se encontra, totalmente desnorteado. A falta que o estimado e amado joguinho está fazendo não tem no mapa. Daí para uma crise de nervos foi uma questão de minutos. Em dado momento, não se contém e apela para a bondade do Cardoso.

- Cardoso amigo, preciso que me faças um grande favor.

- Pois não, Morlim, se estiver no meu alcance, com muito prazer.

- Não queres jogar comigo? O movimento do bar está calminho.

- Não, obrigado, Morlim, não sou de jogo, nem conheço bem as cartas.

- Então, Cardoso, proponho: nós dois nos posicionamos aí atrás do balcão e jogamos quem consegue dar uma cuspida mais distante. Feito?

- Desculpe, mas não quero.

- Que achas, amanhã chove ou não chove? Escolhe. Ficarei com o contrário do que disseres. Combinado? Jogamos dessa feita?

- Não me leve a mal. Mas jogo é algo que não me atrai.

- Cardoso, me alcança um pedaço daquele queijo ali naquela prateleira do meio.

- Perdão, Morlim, o que há ali não é queijo, é sabão.

- É queijo.

- É sabão.

- E daí... agora sai um joguinho?

- Tudo bem. Me venceste pelo cansaço. Tá jogado.

- Joião. Beleza pura. Até que enfim. Eu digo que é queijo e tu dizes que é sabão.  Podes descer a mercadoria para vermos quem ganhou o jogo.

Cardoso vai até a prateleira em que se encontram os produtos de limpeza e traz a barra de sabão que o Morlim apontara como sendo queijo.

- Eis aí, proclama o vencedor.

Morlim, de posse de um naco do sabão, leva até a boca e, não se dando por vencido, -perder não é com ele –  diz com a maior cara de pau:

- Ganhei o jogo. Ganhei. Ganhei. É queijo com gosto de sabão.                                

...Perder não é com o Morlim. Não é mesmo!...

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