Autor/aÁlvaro de Almeida Leão

Nascido em Campina Grande - Paraiba; Gaúcho por adoção. Aposentado do Banrisul. Formado em Administração de Empresas e em Ciências Contábeis pela UFRGS. Autor dos livros "Ensaios" e " Humor Para o Mau Humor " Participou do Jornal RSletras , orgão oficial do Instituto Cultural Português . Faz parte de Antologias de Entidades Culturais do Estado. Sócio efetivo da Sociedade Partenon Literário e de que faz parte da sua Diretoria; Sócio do Instituto Cultural Português; da Casa do Poeta Rio-Grandense e da Casa do Artista Caponense de Capão da Canoa RS;. Acadêmico da Academia Internacional de Artes Letras e Ciências de Cruz Alta RS, da Academia de Letras do Brasil Seccional do RGSul e da Academia Luso-Brasileira de Letras do RGSUL. Honrarias: Diploma Honra ao Mérito; Medalhas; Troféu Aldo Coimbra outorgado pela Associação dos Funcionarios Aposentados do Banrisul - Escolhido pela Editora Revolução Cultural, como o Escritor Homenageado do Ano da Feira do Livro de Porto Alegre RS em 2019 ; Comendas Caldre e Fiao do Partenon Literário e Comenda Personalidade Internacional 2023 da Academia Internacional de Artes, Letras Ciências de Cruz Alta RS; Participa anualmente do Concurso Literário da FECI CAPOLAT da Confreira Marinês Bonacina. Atualmente é bi campão do Concurso FECI CAPOLAT, Ouro em 2022 e Troféu em 2023.

Um senhor cantor de tangos

U

Alvaro de Almeida Leão

Uma sociedade beneficente e recreativa social de uma pequena cidade do interior está completando dez anos de bons serviços à comunidade. Nada mais justo do que comemorar com orgulho e satisfação essa tão auspiciosa data.

Além dos convites especiais para autoridades locais constituídas, foi elaborado um boletim da programação dos festejos, produzido e assinado pelo atual secretário-geral da entidade - sempre bem-vindo por ser repleto de inteligente e fino humor - dirigido para a digna e honrada casta de associados.

Entre assuntos sérios e outros nem tanto, registramos os seguintes constantes do boletim:
– Na parte da manhã, alvorecer com salva de vinte e um tiros de canhões; como não dispomos dessas armas, vamos mesmo de revólveres, garruchas, pistolas, espingardas, bacamartes e similares, desde que funcionem;
– Apetitoso café da manhã, estilo colonial, não faltando todas as melhores iguarias, que nem vou mencionar quais, para não provocar momentos de água na boca. Local: cada um na sua casa. Por decisão unânime da nossa diretoria, será sorteada uma casa de um dos nossos associados na manhã do aniversário, para que in loco o digno secretário-geral, que este subscreve, prestigie, com sua honrada e digna presença, tão incomparável desjejum;
– Missa campal ecumênica, às 10h00, ocasião em que iremos inaugurar as novas benfeitorias realizadas na nossa sede social; atividades culturais e esportivas constantes de apresentação do nosso coral, concurso de anedotas mais ou menos de salão (atenção mais para mais do que para menos), declamações de poesias, torneio de bochas e o tradicionalíssimo GRENAL, cujo vencedor será, evidentemente, o time deste nobre secretário-geral;
– Ainda sobre o GRENAL: o gol mais bonito e o mais perdido. Importante: atletas do futebol com planos de saúde e do SUS em dia. Motivo: as seguidas contusões durante o jogo, por conta das nossas reconhecidas ruindades no trato com a bola;
– Em seguida, eleições da rainha da festa e princesas;
– Ao meio-dia, após o almoço de confraternização, haverá a entrega de troféus e medalhas aos participantes vencedores. Proibida a entrada de pessoas no trago, porém sair borracho pode;
– À tarde, chá exclusivo para senhoras e senhoritas, com desfiles de modas e sorteio de brindes. Atenção: fofocas livres, porém, não vale malhar os namorados, noivos e maridos. No salão de festas, haverá sistema eletrônico de escuta “clandestina autorizada”. Todo cuidado é pouco!... Quem avisa amigo é;
– Às 20h00, apresentação no nosso auditório de um cantor ou cantora, que estamos contratando, através de anúncios em jornais, aliando qualidade e preço, para, com o nosso conjunto regional, proporcionar momento de verdadeiro deleite musical;
– A partir das 23h00, inesquecível baile de aniversário, com música ao vivo e com hora para começar. Para terminar, como sempre, somente quando o sol estiver a pino;
– Aos felizes participantes das nossas festividades solicita-se a espontânea doação de um quilo de alimento não perecível, por pessoa, a ser distribuído às famílias carentes do nosso município (observação por oportuna: maneirar quanto à quantidade de sal ofertada, na festa anterior foi além da conta, entenderam a mensagem?);
– Atenção, atenção, muita atenção! Se chover pela manhã, as comemorações serão realizadas em conjunto com as da tarde. Porém, se chover à tarde, todas as confraternizações serão pela manhã. Entenderam a última parte dessa comunicação? Não?!... Nem eu. Mas enfim, já escrevi isso e, com a devida vênia, permito-me não voltar atrás;
– Obrigado a todos e até o próximo glorioso e inesquecível primeiro sábado do mês vindouro, ocasião em que comemoraremos nossa magna data.

Entretanto, Adalberto Luvielmo (baita nome de cantor de tangos, não é mesmo?), morador de uma cidade do outro extremo do estado, toma ciência, através do jornal, do anúncio daquela sociedade beneficente e recreativa social.

Obtém maiores detalhes pelo site da sociedade: cachê de pequeno valor, em virtude das diminutas possibilidades financeiras da sociedade; o cantor ou cantora deverá chegar próximo da hora de se apresentar e voltar no mesmo dia, pois não será franqueada hospedagem; após a apresentação, será servido um PF (o conhecido prato feito) no capricho, acompanhado de uma ceva geladinha.
Mesmo sem perspectiva de boa grana, Adalberto Luvielmo nem precisou pensar duas vezes, candidatou-se afirmando com todas as letras maiúsculas ser UM SENHOR CANTOR DE TANGOS. Ganhou, digamos assim, a concorrência artística.

Também pudera, escreveu só garganteando fanfarrices (entendam-se inverdades): que se apresentou em terras portenhas como cantor de tangos; não disse que esse fato se deu no ônibus que faz a linha Brasil-Argentina com um coro de vozes de umas trinta pessoas, seus colegas de excursão; que só não mandava um CD que gravara por ter-se esgotado em uma semana; que está em negociação com gravadoras, e que, à melhor proposta que receber, fechará contrato na hora.

Para impressionar, e foi o que realmente aconteceu, afirmou que irá extasiar a seleta plateia com sua maviosa voz, ao interpretar os famosos tangos: El dia que me quieras, A media luz, Palomita Blanca, Garufa, Volver, Adios muchachos, Caminito, Por una cabeza, Aquel tapado de armiño, La cumparsita, Mano a mano, Soledad, Esta noche me emborracho, Silencio, Cuesta abajo e Mi Buenos Aires querido.

Seu preço era lá em baixo simplesmente por amor à arte. Desde jovem, Adalberto Luvielmo é vidrado em tangos. Possui filmes, jornais, revistas e livros que envolvem o tema tangos, além de todos os discos que foram lançados desde os de vinil aos posteriores CDs e DVDs dos atuais e dos mais famosos intérpretes de tangos de todos os tempos.

Adalberto Luvielmo é um cantor assumido de banheiro, nada além. Suas tentativas de ser cantor de tangos, inicialmente em programas de calouros e depois contratando professores, não deram resultados. Faltam-lhe todas as condições. Deveria aceitar que não dá para cantor.

São 18h00 do dia do aniversário da sociedade. Um dos assuntos principais até o momento era a parte jocosa do boletim da programação.

Até agora, só alegria: alvorecer, café colonial, missa campal, atividades culturais e esportivas, almoço, chá da tarde. O time de futebol do secretário-geral nem perdeu nem ganhou; o resultado do GRENAL foi quatro a quatro.

Próximo da chegada do cantor de tangos contratado, o Adalberto Luvielmo, é que mora o perigo de alguns dissabores acontecerem.
Às 18h30min desembarca na cidade no ônibus de linha, o Adalberto Luvielmo. Boa viagem, ótima recepção, reportagem da rádio local, entrevista ao jornal, fotos, tapinhas nas costas e até alguns autógrafos.

Questionado se gostaria de ensaiar antes com o conjunto, respondeu que não é necessário. Ao saber que o conjunto já está de posse da relação e ordem de apresentação dos tangos, só resta aguardar a fantástica apresentação e partir para os braços da galera.

Casa cheia, é chegado o dia “D”, a hora “H”.
Primeiro número: aquele enorme fracasso, como não poderia ser diferente. O conjunto acelerando, para chegar junto, outras ao contrário sem sucesso. Adalberto Luvielmo desafinado e fora de ritmo que dá gosto.

Os músicos meneavam suas cabeças em negativa, reprovando assim tão malfadado acontecimento. Estavam envergonhados. Após o término da primeira agonia, assim a classifiquemos, mais da metade da plateia se manda dali aos palavrões e fula da vida. Entre eles, o ecônomo da sociedade, afirmando que o PF regado a geladinha já era. O maldito que vá reclamar a quem quiser.

Adalberto Luvielmo, sentindo e estava na cara que nem um pouco agradara, vai até a presença do conjunto musical e segreda:
– Passemos para a quinta música.

Em seguida a esse novo martírio, todos se retiram menos um. Adalberto Luvielmo ainda dá um tempo, para ver se o cara também se manda e... nada.

Faz sinal para o conjunto que irá cantar (cantar?) o último número. E assim começa a mil, sem dar tempo a ele próprio e ao conjunto de respirarem direito.

Missão cumprida, Adalberto Luvielmo vai ao encontro do seu único espectador, a fim de agradecer tanta consideração.
– Eu sou o Adalberto Luvielmo, muito prazer. Com quem eu falo?
– Delegado Aldo Leão.
– Pô, seu delegado, o senhor gosta de tangos pra caramba!
– De tangos, eu realmente gosto.
– Agradeço ao senhor por ter me prestigiado, ficando até o final do recital.
– Não tem nada que agradecer. Aqui cheguei emocionado por amor à nobre arte do tango. Porém, agora, no final, permaneci por estrito dever de ofício.
– Desculpe, mas o senhor é delegado da UBC, da SBAT?
– Não.
– Da SBACEM, do INCP?
– Também não. Ainda não foi dessa vez.
– Delegado de que então?
– De polícia e, a pedido do presidente da nossa sociedade, que irá registrar uma queixa contra o senhor, convido-o para irmos nós três até o plantão policial a fim de que o senhor, que abusou de todos nós e gosta tanto de empregar siglas, assine um TC.
– TC?... O que vem a ser isso, seu delegado?
– Termo circunstanciado. Queira nos acompanhar para aprender a nunca mais tentar enganar os outros. Positivo?
– E tem outro jeito?
– Não.
– Por falta de conselhos é que não foi. Confesso: sempre fui um egocêntrico. Errei em não me utilizar da autocrítica. Fazer o quê? Não deu, não deu. Peço desculpas pelos transtornos. Aprendi a lição. Não acontecerá outra vez. Prometo.
– É louvável que o senhor tenha percebido o seu erro e até esteja pedindo desculpas. Reconhecer um erro é o princípio da evolução pessoal. Que não fique só na promessa.
– Com toda a certeza, não. E mais, como sabemos, o fato de não reconhecermos um erro nos impede de crescer e amadurecer. Não é mesmo?
– Claro que sim. Mas, está ficando tarde, vamos então?
– Antes, podemos ir até a rodoviária? Preciso comprar minha passagem de volta.
– Certamente. Posso lhe alcançar “alguns” para despesas?
– Não, muito obrigado, não preciso.
– Eu sinto, independente do que aprontou aqui, que o senhor é uma boa pessoa. Espero que de agora em diante tenha juízo o suficiente para nunca mais cair numa roubada dessas.
– Ah, quanto a isso, não tenha a menor dúvida. Errar é humano, continuar errando é burrice. Mancada igual a essa, nunca mais, nunca mais mesmo!

E DAÍ, AGORA SAI UM JOGUINHO?

E

Álvaro de Almeida Leão

 

Morlim, Oswaldo e Zecão diariamente se encontram para um carteado amigo no bar de seu Cardoso. Por lá ficam até as 23 horas. Como sempre acontece, Morlim é o primeiro a chegar e também o que mais vibra com as vitórias alcançadas. Seguidamente ganha. Ao perder fica fulo da vida.

Passado algum tempo, seu Cardoso recebe um telefonema:

- Alô, bar do Cardoso, às ordens.

- Oi, aqui é o Oswaldo. Quero falar com o Morlim, ele se encontra?

- Sim aguarde um momentinho. Morlim, telefone, é o Oswaldo.

- Alô, Oswaldo. Estão atrasados, já estou aqui há um tempão.

- Faleceu um amigo comum, meu e do Zecão. Estamos no velório e infelizmente hoje não podemos ir até aí para nossa diversão.

- Bah, amigo Oswaldo. Tô ralado e mal pago. Acostumado com o nosso jogo, nem sei o que fazer para passar esse resto de tempo.

- O mesmo está acontecendo aqui conosco. Estamos nos sentindo fora da casinha. Sabe como é, vício é vício, não é mesmo, Morlim?

- Claro, Oswaldo, eu que o diga. Estou sentindo comichões por todo o corpo. Já tomei um monte de cafezinhos. Enfim, fazer o quê? É da vida.

-- Era isso, Morlim. Até amanhã. Certo?

- Mais do que certo. Um abraço no  Zecão.

- Será dado.

 Morlim volta pra mesa em que se encontra, totalmente desnorteado. A falta que o estimado e amado joguinho está fazendo não tem no mapa. Daí para uma crise de nervos foi uma questão de minutos. Em dado momento, não se contém e apela para a bondade do Cardoso.

- Cardoso amigo, preciso que me faças um grande favor.

- Pois não, Morlim, se estiver no meu alcance, com muito prazer.

- Não queres jogar comigo? O movimento do bar está calminho.

- Não, obrigado, Morlim, não sou de jogo, nem conheço bem as cartas.

- Então, Cardoso, proponho: nós dois nos posicionamos aí atrás do balcão e jogamos quem consegue dar uma cuspida mais distante. Feito?

- Desculpe, mas não quero.

- Que achas, amanhã chove ou não chove? Escolhe. Ficarei com o contrário do que disseres. Combinado? Jogamos dessa feita?

- Não me leve a mal. Mas jogo é algo que não me atrai.

- Cardoso, me alcança um pedaço daquele queijo ali naquela prateleira do meio.

- Perdão, Morlim, o que há ali não é queijo, é sabão.

- É queijo.

- É sabão.

- E daí... agora sai um joguinho?

- Tudo bem. Me venceste pelo cansaço. Tá jogado.

- Joião. Beleza pura. Até que enfim. Eu digo que é queijo e tu dizes que é sabão.  Podes descer a mercadoria para vermos quem ganhou o jogo.

Cardoso vai até a prateleira em que se encontram os produtos de limpeza e traz a barra de sabão que o Morlim apontara como sendo queijo.

- Eis aí, proclama o vencedor.

Morlim, de posse de um naco do sabão, leva até a boca e, não se dando por vencido, -perder não é com ele –  diz com a maior cara de pau:

- Ganhei o jogo. Ganhei. Ganhei. É queijo com gosto de sabão.                                

...Perder não é com o Morlim. Não é mesmo!...

Urgente, urgente o plano CP SN

U

 Álvaro de Almeida Leão

Decisão do torneio amador de futebol de campo entre bairros de Porto Alegre. Evento oficial do calendário esportivo da cidade. A equipe do Menino Deus está tentando o tricampeonato e a do Caminho do Meio fazendo pela primeira vez a final. Juízes e bandeirinhas credenciados pela Federação Citadina de Futebol. Bom público entusiasmado e participativo.

O Menino Deus joga pelo empate, ao Caminho do Meio, só a vitória interessa. O Menino Deus é o time mais credenciado do torneio, conta com o artilheiro do campeonato, a melhor defesa e o goleiro menos vazado. É treinado pelo professor Aldo Leão e seu fiel escudeiro, o auxiliar técnico Rafael. O Caminho do Meio classificou-se na sua chave, por ser o time menos ruim. Seus únicos destaques são o goleiro Carlos Augusto, e o Richard, volante de bom drible.

Richard é o capitão do Caminho do Meio e seu líder, pouco finaliza mas, quando o consegue, quase sempre marca. No jogo anterior, foi decisiva sua atuação, marcou o gol da classificação. Quanto aos atletas do Menino Deus, são tão iguais no trato com a bola que não há uns melhores que outros. É um time coeso e solidário

Mas, jogo de futebol é jogo de futebol, nem sempre o melhor ganha.

Precavido, o professor Aldo arquitetou três planos: o A; o B e o CP, SN, este se estritamente imprescindível. Como no caso de vida ou morte. O plano CP, SN apenas o professor Aldo, os dois zagueiros e o goleiro do Menino Deus sabem de que se trata. Após cada coletivo, esses quatro permanecem em campo para treinamentos específicos do plano CP, SN..

Na preleção inicial do professor Aldo, o plano A: jogar sério, respeitar o adversário. Até agora, não ganhamos nada. E é tudo conosco. Rumo ao título.

Findo o primeiro tempo, zero a zero, creditado à excepcional atuação do goleiro do Caminho do Meio, o Carlos Augusto, que pegou todas. Ao Menino Deus, faltou competência. Inconcebível, inconcebível mesmo, tantos chutes a gol sem converter.

No intervalo para o segundo tempo, no vestiário do Menino Deus, o plano B: jogar com mais dedicação ainda. Melhorar e muito a pontaria das finalizações. Defesa com atenção redobrada. E, se nada disso der certo, jogar pelo regulamento.

Reiniciada a partida, o Menino Deus está com cuidado mais do que o desejado. O time atua mais se defendendo. Com isso, o Caminho do Meio está crescendo no jogo ao natural.
As palavras proferidas pelo professor Aldo: jogar pelo regulamento, resultaram o entendimento de mais ou menos, jogar pelo empate, ou seja, na retranca.

Trinta minutos do segundo tempo e ainda o zero a zero. A essa altura, um gol do Caminho do Meio seria um desastre. Sinal vermelho. O perigo ronda o Menino Deus. Então o professor Aldo decide substituir um atacante por um jogador de meio de campo e pede que este avise aos seus dois zagueiros e ao goleiro que coloquem urgente, urgente o plano CP, SN.

Cientes do recado, os zagueiros postam-se um em cada lado do canto da pequena área, enquanto o goleiro um pouco atrás, atento e ligado, torcendo para que o jogo logo termine como está, pois o empate o favorece.

E o Richard? Ah! O Richard está bem na partida. Faltando apenas cinco minutos para o término do jogo, ele, ao passar por todo o meio do campo adversário, dribla um dos zagueiros e em seguida o goleiro e quando, então, ia chutar a gol, o outro zagueiro do Menino Deus, na sobra, sentindo o pior, dá um chutão nas pernas do Richard que o levanta com bola e tudo, fazendo com que ele não conclua a jogada, que, certamente, resultaria em gol. O zagueiro leva a pior, tropeça e cai, com seu tórax sobre a bola. Proteção de pescoço e demais cuidados até que possa ser retirado dali.

Resoluto, o juiz marca o pênalti e aguarda que o zagueiro se recupere para expulsá-lo do jogo.
Enquanto isso, Richard não se escala para bater o pênalti, por ser um traumatizado em relação a cobranças de pênaltis. De uma feita, num outro time, desperdiçou três pênaltis em duas partidas seguidas. Na última, assim como agora, era fazer o gol e se candidatar a ganhar o campeonato.

Os times do Caminho do Meio e do Menino Deus amarelam, por motivos distintos: Menino Deus com medo de perder o campeonato e o Caminho do Meio. de ganhar. Como assim? Justificam-se, por serem times amadores.

O Richard, chateado, comprova que seus jogadores se afastam cada vez mais uns dos outros. Pensa ser pelo fato de que, se ficassem próximos, tratariam do assunto pênalti. E é tudo o que eles, possivelmente, não querem.
Uma coincidência que ninguém engoliu: os dois jogadores do Caminho do Meio que sempre são os batedores de pênaltis desmoronam no gramado. Um voltando a sentir antiga contusão na coxa e o outro, o joelho incomodando. Atitudes logo entendidas pelo Róger, técnico do Caminho do Meio, e pelo capitão Richard. Então restou solicitar um voluntário para a cobrança do pênalti.

O lateral esquerdo do Caminho do Meio, conhecido por Trapalhão, nem precisa dizer a razão do apelido – é o seu pior jogador, disparado. Joga por não existir outro na posição. Rapidamente raciocina: ao se candidatar a bater o pênalti e o converter, será considerado um herói. Todo o seu passado de perna-de-pau será esquecido. Assim convencido se escala para cobrar o pênalti
Não, não, qualquer um menos ele. Fazer o quê? Só resta rezar e rezar.

Trapalhão estava se dirigindo para a marca da cal, quando torcedores do Caminho do Meio, no alambrado, se alternam nas manifestações de suas insatisfações ante a desastrada atitude do Trapalhão em se oferecer para bater o pênalti:

-Pô, Trapalhão, te enxerga. Pede para atender ao telefone e te manda daí.
-Quem avisa amigo é: caso percas o pênalti, te capo e faço a festa dos cachorros.
-Que tu eras trapalhão eu sabia, agora louco varrido, pra mim, é novidade.
-Trapalhão, Trapalhão, olha aqui: estou no regime semiaberto, para eu apagar mais um ou menos um tanto faz. Perde o pênalti e verás o que irá te acontecer.
-Oh, seu Trapalhão, filho de uma mãe, sairás daqui hoje pelos braços da galera, de um jeito ou do outro. Se fizer o gol, consagrado.
-Se errar, de pés juntos e num envelope de madeira.

Diante de tantas amabilidades, Trapalhão foi acometido por uma forte vontade de urinar. Só deu tempo de se abaixar, fazendo de conta que irá amarrar os cadarços das chuteiras, e a todo custo se conter para deixar fluir a urina, e só a urina, nada além da urina. Não foi fácil, apenas urinar, mas enfim conseguiu. Ao voltar a caminhar, sacudiu as pernas, uma de cada vez, para que o resto da urina se esvaísse. As chuteiras ensopadas fazem com que seus pés encharcados como que se movimentem dentro delas, produzindo os conhecidos sons: ploft...ploft...ploft.

Envergonhado e humilhado sob todos os aspectos, Trapalhão dialoga com Richard.

-Capitão, eu desisto de bater o pênalti. Arruma outro. Estou sem condições morais e psicológicas. Por favor, me poupe de mais vexames.

-Tiveste coragem pra te oferecer pra bater. Agora vais bater, por bem ou por mal.

-Então eu vou bater com o pé que não é o bom, o direito, tentando enganar o goleiro.

-Faz como achares melhor. Desde que convertas o pênalti, tudo bem.

Esses diálogos, embora em vozes baixas, foram sempre captados por jogadores do Menino Deus que se encontravam por perto.
Então, um deles disse para o goleiro do Menino Deus que o Trapalhão iria bater o pênalti com pé direito.
Enfim, o juiz autorizou a cobrança.

Trapalhão, que nunca bateu pênalti na sua vida, bastante nervoso e ainda mais angustiado pelo incômodo da vontade de urinar que voltou mais forte ainda, não calculou corretamente em que distância se posicionaria e, ao correr para bater o pênalti, a sua última passada foi insuficiente para chegar junto a bola, em condição ideal para a cobrança, então, desequilibrado, só deu para tocar de leve a bola e de bico mesmo, sem força alguma, ao invés de chute forte e com o peito de pé, o que daria direção ao trajeto da bola. Resultado, a bola passa bem devagar, a mais ou menos meio metro, do lado da goleira. O goleiro vai a passo visando o canto certo e só acompanha a bola ir para fora. Se em direção ao gol, defenderia tranquilamente.

Trapalhão olha para os seus pretensos algozes e os vê costeando o alambrado para em seguida entrarem no gramado. À frente, o apenado, já exibindo o revólver engatilhado e o torcedor que afirmou que iria capá-lo, brandindo no ar uma afiada faca, seguido dos demais. Cada um mais brabo do que o outro.

Trapalhão, sentindo-se prestes a sofrer uma mutilação e, logo após, sua iminente morte, corre em direção aos policiais fardados que se encontram à beira do campo e pede socorro:
- Senhores ilustres e dignos militares, sou o assassino de dois crimes ainda não desvendados pela polícia civil, estou me entregando, me prendam, me levem para uma delegacia. Aquelas pessoas que estão vindo ali querem me matar, sem que eu saiba o porquê. Salvem minha vida, salvem minha vida, imploro, pelo amor de Deus.

A Polícia Militar conteve os agressores, serenou os ânimos e resolveu o problema. Atendendo ao pedido do Trapalhão, levaram-no, em segurança, para uma delegacia.
Nova saída para os cinco minutos finais mais seis minutos de acréscimo. O Menino Deus, reencontrando seu verdadeiro futebol, cresceu na partida e ainda conseguiu fazer dois belos gols. O tri estava mais que garantido.

Na volta olímpica, o auxiliar técnico Rafael, alegando sua condição de compadre do Aldo, não se contém e pergunta o que vem a ser o CP, SN.
O Aldo responde com uma pergunta:

-O que fez o nosso zagueiro?
-Cometeu pênalti.
-Então temos o CP. E qual é a única condição aceitável de se cometer pênalti?
-Se necessário.
-E agora o SN.
-Cometer Pênalti, Se Necessário. C P, S N. Bem bolado. Inusitado. É isso aí.
-Satisfeito? Somos tri. Somos tri, ninguém nos segura. Viva o Menino Deus. Viva nossa equipe. Viva nossa diretoria, rumo ao tetra. Vida longa pra todos nós. Mais do que merecemos. Viva, viva, mil vezes viva.

Síguenos