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A caça com formigas

A

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Silvia Cristina Preissler Martinson

Faz um calor tremendo. É pleno verão e o final de agosto. Caem as primeiras chuvas depois de muitas semanas sem cair nem uma gota de água.
E depois da chuva, quando o sol volta a aparecer, observamos que já estão saindo dos seus formigueiros as formigas aladas, que serão as próximas rainhas dos seus formigueiros e outros menores, também alados, que são os machos, chamados de alines, cujo único objetivo em suas vidas é fertilizar as rainhas. No pleno voo, fecundam as rainhas e depois caem ao chão para morrer, enquanto as fêmeas, quando descem ao solo, desprendem-se de suas asas, fazem um buraco no chão e começam a botar ovos, que depois serão as operárias do novo formigueiro.

Eu aprendi com Juan de Dios, um padeiro vizinho meu que era marido da prima Eulalia, a quem todos chamávamos de Olaya, a capturar as formigas antes que voassem, justamente quando se preparavam para realizar seu voo nupcial.

O sinal para cavar nas entradas dos formigueiros era a queda das primeiras chuvas.

Quando apareciam as formigas aladas, nós as colocávamos diretamente, ao capturá-las, nas piteiras, uma garrafa de vidro, para evitar que pudessem escalar e escapar voando.

Juan de Dios as usava como isca viva na pesca e nas bestas ou costelas, para capturar pássaros na temporada de pássaros de verão, que desciam das serras e voavam em direção ao sul, fugindo da queda das temperaturas.

Depois, eu desenhei meu próprio viveiro para manter vivas minhas formigas aladas pelo maior tempo possível, o que podia chegar a durar vários meses.

Colocava em uma caixa de madeira, camadas de areia com canas ocas, cortadas nos canaviais das hortas do Tio Torres, na margem do rio Manzanares. Depois, fazia bolas de papel de jornal e as intercalava com terra por cima.

Punha na parte de cima tampas metálicas de potes de conserva, com água que mantinha o grau de umidade. Em cima, colocava uma tampa de madeira e sobre a tampa de madeira uma lona que amarrava, para que as formigas não pudessem sair e escapar.

As pobres formigas aladas haviam passado de aspirar a serem rainhas nos seus formigueiros a serem iscas vivas para capturar pássaros.

As bestas, cepos ou costelas, que por esses três nomes eram conhecidas, consistiam em mecanismos com molas, cujo semicírculo superior abria sobre a parte inferior ou base, e se sustentava aberto com a ponta da haste presa no orifício onde se fixa a isca.

O orifício tem duas pequenas pontas de aço, opostas, que ao apertá-las, aumentam o círculo central onde introduzimos a parte traseira do corpo da formiga até o seu estreitamento e, uma vez dentro, soltamos as pontas e a formiga fica presa, mas sem apertar e com certa liberdade de movimento.

Quando a presa picava a formiga, a haste de fixação escapava e a parte superior, ou morte, golpeava com força, por efeito das molas, sobre a base. A diferença entre as bestas ou costelas e os cepos é que as primeiras têm uma tábua de madeira sobre a qual está presa a parte metálica, e os cepos não.

Era muito importante a escolha dos locais estratégicos onde colocar as armadilhas, como, por exemplo, as pequenas elevações, próximas a uma cerca de arame, onde os pássaros costumavam pousar.

Raspava-se o chão, arrancando as pequenas ervas que por acaso houvessem no lugar onde pretendíamos assentar a besta, formando uma pequena clareira que se destacava do seu entorno.

Depois se orientava, de modo que as asas da formiga brilhassem ao sol e, para evitar que o pássaro picasse a isca por trás, colocava-se nela um torrão ou tufos de erva que havíamos tirado antes, que tornasse mais fácil picar a isca pela frente e disparar o mecanismo, como explicava antes.

Eu também costumava amarrar um cordão na besta e prendê-lo a algum objeto pesado, ou a algum arbusto, para que, se acontecesse de que picasse algum animal de maior tamanho e força, não fugisse e escapasse arrastando a armadilha. E é que, em algumas ocasiões, acontecia de ser um lagarto ou uma lagartixa que mordia a formiga, já que tinham grande apetite por esse inseto e acabavam capturados pela besta.

Atualmente, tudo isso que eu conto pode parecer uma barbaridade. De fato, hoje em dia as bestas estão proibidas, e seu uso é punido com multas consideráveis, e o mesmo ocorre com a utilização de iscas vivas, mas há 60 anos, os passarinhos eram consumidos nos lares humildes e, inclusive, nos bares eram vendidos como aperitivos, uma vez temperados e fritos.

Espero e desejo que essa história da minha infância os distraia por um tempo e até gostem

Um dia nefasto na minha vida

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Silvia Cristina Preissler

Os antigos romanos dividiam os dias classificando-os como fastos ou nefastos. Eles levavam isso para a vida cotidiana, tendo muito cuidado para não iniciar negócios em um dia nefasto, pois acreditavam firmemente que fracassariam. Em contrapartida, empreendiam nos dias considerados fastos, acreditando que teriam sucesso garantido.

No dia 23 de julho de 2024, exatamente um mês atrás, eu tinha planejado viajar para Palma de Maiorca, às 19 horas, pois tinha uma consulta com meu dermatologista.

Naquela manhã, depois de tomar banho e fazer a barba, tomei café com leite e biscoitos no café da manhã. Depois escovei os dentes e, depois de pentear o cabelo e me vestir, saí para a rua e me dirigi, como fazia todas as manhãs, à Biblioteca Pública Pedro Salinas, onde pegava um exemplar do jornal gratuito "20 Minutos".

Depois de pegar o jornal, subi pela rua Toledo até a padaria Corteza y Miga, comprei um pão de trigo e de lá fui à loja de Vinhos e Licores na rua de Calatrava, esquina com La Paloma, onde comprei uma garrafa de Anisette Marie Brizard. Quando saí daquela loja, após pagar os 12 euros que custava a garrafa, atravessei a pequena praça de Isabel Tintero, e ao chegar na escadinha de 5 ou 6 degraus de granito, que desce até a calçada da Gran Vía de San Francisco, percebi que o semáforo aberto para os pedestres estava prestes a mudar e fechar.

Inconscientemente comecei a correr e, de repente, sem saber como, me vi tropeçando nos degraus até cair de bruços, grande que sou, estendido no chão, sobre as pedras de granito da calçada. O jornal e o pão que eu carregava na mão esquerda, assim como a garrafa de Anisette Marie Brizard que eu carregava na direita, me impediram de apoiar as mãos adequadamente para amortecer minha queda. Meus óculos apareceram no chão com uma das hastes dobrada quase a noventa graus em relação ao resto.
A barra de pão saiu do saco de papel, da minha mão esquerda, e ultrapassou o jornal que também havia sido projetado para frente. E à minha direita, a garrafa de Anisette se despedaçou, derramando seu conteúdo e eu observei com horror que os cacos de vidro ficaram quase encostando no meu rosto, após a queda. Quando cheguei ao chão, ouvi um barulho seco que minha cabeça fez ao bater no chão com o lado direito do meu queixo.

Imediatamente ouvi várias pessoas me perguntando se eu estava bem e se conseguia me levantar. Naquele momento, eu estava checando meu corpo e percebi que, pelo menos, conseguia me levantar, o que equivalia a dizer que os ossos mais importantes dos meus braços e pernas estavam inteiros. Minhas mãos doíam e observei que sangrava abundantemente por um corte que tinha no queixo, assim como pela unha do dedo médio da minha mão esquerda, que estava levantada e separada da ponta do dedo, cuja primeira falange estava fraturada. A mão direita também tinha danos, que hoje, 23 de agosto, ainda doem, mas aparentemente não havia fraturas. Minha bochecha direita e a área ao redor dela bateram no chão, e mais tarde pude observar em casa que estava avermelhada. A parte externa do meu joelho direito também estava coberta de arranhões.

As vozes que se interessavam por mim, quando eu estava caído de bruços nas pedras, pertenciam a duas mulheres, muito boas pessoas, que se preocuparam em me ajudar naqueles primeiros momentos. Uma delas era uma senhora, ou senhorita, romena. A outra era uma mulher hispano-americana, não me recordo se era da Colômbia ou da Venezuela, mas me lembro que ela atravessou o bar em frente e comprou uma garrafa de água, com a qual ela lavou minhas mãos e meu rosto, para limpá-los de sangue.

Imediatamente chamaram uma ambulância, que chegou em poucos minutos e pertencia ao Samur. Que Deus abençoe essas duas boas mulheres, e também outras quatro pessoas que pararam no caminho para me ajudar. Dois jovens que, pela aparência física, me pareceram hispano-americanos. E, por último, um casal de aproximadamente 60 anos que também parou para me socorrer.

Agradeço por poder verificar, mais uma vez, que ainda existe humanidade no comportamento de muitas pessoas.

Liguei para minha esposa pelo celular, que estava em nossa casa, a 3 minutos de distância, e que, a princípio, ficou alarmada, mas eu a tranquilizei e pedi que viesse.
Ela chegou imediatamente com o carro e, quando chegou, os paramédicos do Samur estavam me atendendo dentro da ambulância. Desinfetaram minhas feridas, examinaram meus ossos para verificar seu estado e me disseram que eu deveria ir a um hospital para que pudessem dar pontos no corte do meu queixo, que se aprofundava até o maxilar e precisava ser costurado. Também precisaria que fizessem um raio-X.

Fui muito bem atendido pelos paramédicos e eles me ofereceram ir a algum hospital da Segurança Social, avisando-me que poderia ter que esperar o dia todo para ser atendido.
Como acontece que há muitos anos, além da SS, sou associado da ADESLAS (Seguro Médico Privado), e que precisava estar no aeroporto Adolfo Suárez, de Madrid-Barajas, uma hora antes do meu voo, ou seja, às 18 horas, pedi à Estrella, minha esposa, que me levasse ao Hospital Madrid, na praça do Conde do Valle de Suchil, e ela me levou, e fui muito bem atendido por uma médica traumatologista, cubana de nascimento e descendente de galegos.

Minha esposa acreditava que teriam que arrancar minha unha, mas a médica me informou que não costumavam mais fazer isso. Devo dizer que, hoje em dia, as duas unhas danificadas estão praticamente normais. Uma delas, a da mão esquerda, ainda tem uma mancha roxa na ponta, mas que calculo que desaparecerá em um mês.

Quando chegamos em casa e minha esposa colocou a comida nos pratos para nós dois, ao tentar comer, percebi que não conseguia mastigar, e descobri que tinha quebrado o dente do siso inferior direito, bem como outro dente superior do lado esquerdo. Então fiquei, vários dias me alimentando de caldos, iogurtes, etc. Atualmente já como todos os tipos de alimentos, embora as bebidas frias eu deva beber pelo lado esquerdo da boca, se não quiser sentir dor no lado direito.


Na minha volta de Palma de Maiorca, marquei uma consulta com o dentista, mas a solução proposta pela médica que me atendeu, que era substituta do meu dentista habitual, que estava de férias, que consistia em extrair o dente do siso, não me convenceu. Então cancelei a consulta para a extração e decidi esperar até que meu dentista habitual voltasse.

Minha esposa opinava, e certamente tinha razão, que as consequências da minha queda poderiam ter sido muito mais graves. Então, além disso, tenho motivos para ficar feliz.

Às 17:30, minha esposa me levou ao aeroporto, e lá eu saí do carro com minha mala, e ela voltou para Madri. Eu estava com o corpo dolorido e os dedos enfaixados. No queixo, me deram três pontos, que a médica recomendou que eu não molhasse por alguns dias, para ajudar na cicatrização da ferida.

Quando cheguei ao controle de bagagens, onde os detectores buscam armas ou bombas, graças ao presente que os terroristas nos deram, às pessoas normais, o agente responsável por me revistar disse que eu deveria tirar o cinto e os suspensórios e também deveria esvaziar meus bolsos. Eu respondi que sentia muito, mas que tinha um dedo quebrado na mão esquerda e a mão direita completamente inchada e dolorida, como ele poderia ver pelos meus curativos. E também informei a ele que tenho 6 pinos de titânio na minha coluna vertebral, assim como uma prótese de quadril, no lugar onde antes estava o meu quadril esquerdo original.

Aquele agente deve ter entendido e me ordenou que passasse pelo detector até onde ele estava, e lá me revistou sem encontrar nenhum objeto que pudesse parecer suspeito.
Quando cheguei aos monitores luminosos onde os voos são descritos, procurei o meu voo UX-6097 da companhia AIR EUROPA, que tinha previsão de embarque às 18h15, saída de Madri às 19h00, com destino ao Aeroporto de Maiorca e chegada às 20h20.

A única informação era que o voo estava atrasado.
Desde as 18h, quando cheguei à área de embarque, até as 19h40, quando entrei no avião, os sofridos clientes da AIR EUROPA tiveram que suportar a total falta de informações da companhia aérea.
A principal causa do atraso era que eles tinham apenas um avião para fazer os percursos de ida e volta, e qualquer atraso causado se acumulava ao longo do dia.

O sofrimento ainda não acabou, porque às 20h09, todos os passageiros já estavam dentro do avião há quase meia hora, com um calor horrível, quando começaram a nos explicar o protocolo de segurança, e naquele momento, alguns passageiros, já nervosos com os atrasos, começaram a gritar pedindo que ligassem o ar-condicionado.

Naquele momento, a comissária-chefe se dirigiu a uma passageira que protestava pelo atraso e pelo calor e lhe disse que o ar-condicionado não podia ser ligado até que decolássemos.
A partir das 20h09, o avião ficou se deslocando dentro do aeroporto, do Terminal 2 até a pista de decolagem do Terminal 4, e só às 21h06 é que ocorreu a decolagem.

Às 22h07, pousamos no aeroporto de Son Sant Joan de Palma de Maiorca, e agora vem o clímax, de um voo que normalmente dura 50 minutos e que sofreu um atraso de 127 minutos, quando pelo alto-falante do avião a comissária-chefe nos informou que precisávamos esperar a chegada da Guarda Civil do Aeroporto, para deter a senhora que havia protestado pelo atraso e pelo calor.
A maioria dos passageiros começou a gritar que queria sair do avião, mas não nos deixaram sair até às 22h28, quando começamos a sair do avião.
Ao lado da porta da frente pela qual saímos e entrávamos no finger, estava um sargento da Guarda Civil, acompanhado de um membro do mesmo Corpo, esperando a senhora que vinha saindo atrás de mim.

Achei injusto e insuportável que detivessem aquela passageira, e me dirigi aos agentes, expressando meu desacordo, pois não havia motivos para isso, já que o único que ela fez foi protestar contra um tratamento degradante aos passageiros, por parte da companhia e de sua comissária-chefe.
Também manifestei minha vontade de testemunhar o que havia acontecido, ao que o Sargento me respondeu que ficasse tranquilo, pois não haveria consequências para aquela passageira.

Não faltou um funcionário de terra da companhia que se manifestasse em apoio à comissária-chefe, dizendo que o ar estava funcionando no aeroporto de Madri. Eu respondi que como ele poderia saber o que aconteceu em Madri, de seu posto de trabalho naquele corredor de Palma de Mallorca? Ao que ele não teve outra escolha senão ficar quieto.

Várias pessoas pararam no balcão da Air Europa para pedir o Livro de Reclamações, e disseram que não tinham ali, que deveríamos protestar por via eletrônica. A única coisa que conseguimos foi um folheto escrito em frente e verso, em inglês, com informações sobre os direitos dos passageiros aéreos na União Europeia, com o código AEA-ME-026-ANO4-R12.

O certo é que aguentamos uma situação abusiva, e que, por não querermos nos incomodar em fazer uma reclamação desses abusos, a AIR EUROPA repete o abuso uma e outra vez, porque não é a primeira vez que eu mesmo tive que suportar isso.

A cobra que roubava leite de um bebê

A

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson

Nos anos cinquenta quando eu era uma criança com poucos anos, as mamães com bebês lactantes costumavam dar-lhes de mamar em público, pois que então era considerado o mais natural.

Se, se encontravam cozendo na porta da casa junto a outras vizinhas e o bebê chorava porque tinha fome, pegavam o bebê nos braços, tiravam o peito fora de seu alojamento têxtil e punha o mamilo na boquinha para que sugasse o leite e acabasse sua fome.

Logo em seguida, dependendo de cada bebê e seu apetite podia ele saciar-se com o conteúdo de um seio ou seguia tendo fome ela guardava o seio vazio e continuava com o segundo em sua alimentação. Até que o bebê se cansasse de mamar e então a mamãe lhe limpava a boquinha e guardava a mama dentro de seu alojamento no corpinho.

Recordo que em uma ocasião estava minha querida mamãe dando de mamar a meu irmão Felix, quando eu tinha 5 anos, estava eu olhando como faziam e mamãe pegou seu mamilo entre os dedos e apertou dirigindo o jato de leite à minha cara que ficou molhada e pegajosa pelo leite projetado sobre ela. Minha mãe ria-se com força e eu também. O único que protestou foi meu irmão que havia notado como se interrompia sua comida.

É possível que a grande atração que exercem sobre mim os peitos das mulheres se encontre em meu subconsciente, que possivelmente guarda aquela recordação do seio materno, fonte natural de vida.

Porém agora queria contar-vos uma historia que nos contou a avó de meu amigo Ignacio, a ele e a mim.

Esta senhora era natural de um pequeno povoado de Toledo chamado Escalonilla e nos referiu uma historia de um menino que estavam criando em seu povoado com o leite de sua mamãe. O menino estava bonito porém nos últimos dias deixou de pegar peso e despertou o alarme a sua mãe e a sua avó.

A mamãe se sentava em um cômodo cadeirão no corredor de sua casa com o bebê nos braços dando-lhe o peito enquanto cochilava. Quando o leite se acabava em seus peitos ajudava o bebê a expulsar o ar dando-lhe umas palmadinhas nas costas e logo lhe deitava para que dormisse.

Naqueles últimos dias o menino chorava desconsoladamente depois de mamar e sua mamãe notou que não ganhava peso e comentou com sua mãe, a avó do bebê.

A avó calou quando ouviu o comentário e decidiu observar de um lugar escondido como se amamentava o bebê. O menino começou a mamar e a mamãe cochilou em seguida.

De imediato a avó observou que do olho de uma enorme fechadura que havia naquela velha porta de madeira começou a sair uma cobra bastarda que se aproximou até a boca do menino introduzindo nela a ponta de sua cola. Ao mesmo tempo que com sua boca começou a mamar na teta. Uma vez havendo terminado se retirou pelo mesmo orifício em que havia saído antes.

A avó despertou a sua filha e lhe explicou o sucedido. Esta ficou horrorizada com a explicação do que lhe estava passando.

No dia seguinte puseram um laço corrediço no olho da fechadura e quando a cobra saiu lhe capturaram e fim do problema. A levaram a grande distancia e a soltaram onde não pudesse voltar aquele corredor.

O menino voltou a recuperar seu peso e sua mamãe e sua avó sua tranquilidade e sossego.
Se a historia foi correta ou foi inventada somente para entreter-nos, a uns meninos, não tenho forma de saber, porém isso já é algo secundário. O importante é que esta história me impactou e nunca a esqueci. Por isso mesmo, agora, tenho o prazer de a dar a todos vós outros.

A pouco, alguém me contou outra historia parecida de outra serpente que mamava nos ubres de uma vaca que tinha um terneiro lactante, com tal suavidade que a vaca buscava a serpente para que lhe mamasse, até ao ponto que chegou a aborrecer a seu terneiro.

Minha pergunta é: Podia tratar-se da mesma serpente.

Pacha

P

Silvia C.S.P. Martinson

 
Meu tio, casado com a irmã de meu pai, era francês de nascimento, porém de família e formação alemã. Era muito culto e rico, às custas de sua inteligência e muito trabalho.
Viveu em muitos países antes e depois da 2ª guerra mundial. Casou com minha tia, irmã mais velha de meu pai e eram os únicos filhos de meus avós que nasceram no Brasil. Houveram outros mais velhos ainda, fruto do primeiro casamento de meu avô e que nasceram na Europa.
 
Vou dar a este tio, para que não seja identificado, um nome fictício, bem como a minha tia e seus dois filhos. Portanto, a partir de agora ele chamar-se-á Martin, sua mulher Ana e sus filhos André e Rosa.
 
Por certo que, com a personalidade forte e dominante de um professor, que também foi ademais de sua formação alemã, estes nomes certamente não lhe agradariam. Em sua casa, como na de meus avós, o idioma falado era somente o alemão. Meu pai escrevia e falava com perfeição este idioma, haja vista que estudara em um colégio tradicional onde além de uma excelente formação cultural, o idioma falado era o alemão.
 
Eu conheci esta escola em uma cidade que visitei e a mesma destinava-se a uma classe de pessoas mais abonadas.
 
Bem, prosseguindo com nossa história, tio Martin conduzia seus negócios e sua família com muita rigidez.
 
Tinham uma bela casa e muitíssimo conforto e modernidade para a época. Aos filhos não lhe faltava nada, inclusive belos e caros brinquedos.
 
A música era uma das prioridades da família, inclusive da minha. Os filhos estudaram e tocavam piano com maestria e a mãe era exímia em um instrumento que hoje quase poucas pessoas o conhecem, a cítara.
 
Bem continuando, voltemos a falar de Martin.
A ele encantava caçar e para tanto tinha em sua casa dois cachorros de raça, perdigueiros, os quais eram seus fiéis companheiros.
Um deles, de pelos brancos com pintas de cor marrom chamava-se Pacha. Era um cachorro muito bonito e dócil com as crianças pequenas, todavia, quando no campo, só obedecia cegamente a seu dono, fielmente cumpria com tudo a que aquele, em tom de mando, lhe ordenava. E assim se passava em todas as caçadas de tio Martin.
 
Porém um dia, tudo foi diferente. Vou lhes contar o que se passou.
 
Tio Martin com sua espingarda estava a caçar lebres no campo. Era um mato meio alto, cheio de arbustos a que não se permitia visualizar bem os entornos.
 
Porém com a precisão que lhe era peculiar, visualizou a lebre a correr entre os arbustos um pouco longe de onde se encontrava. Mirou a cabeça do animal e atirou com um único tiro de sua potente espingarda. O animal caiu entre as plantas. A seguir Martin ordenou a Pacha que fosse buscar a caça como estava este acostumado e treinado para fazer.
 
Pacha seguiu o rastro do bicho e quando chegou perto dele estancou e não o pegou na boca como sempre fazia para trazê-lo a seu dono.
 
Martin, espantado e ao mesmo tempo aborrecido, ordenou em voz alta que Pacha trouxesse a ele a caça. , Por fim o cachorro lhe obedeceu e lentamente voltou com a lebre entre os dentes.
 
Ao chegar perto de tio Martin caiu a seus pés com a caça e três picadas de cobras em seu focinho. A lebre ao ser morta havia caído sobre um ninho de jararacas e Pacha ao vê-las em princípio recuou, todavia, como era obediente e fiel a seu dono obedeceu a ordem de recolher o animal caçado. Pacha estava aos pés de Martin terrivelmente ferido e à morte.
 
Naquela época as cobras grassavam nos campos e era normal as pessoas serem picadas e morrerem por seus venenos.
 
Martin sempre que ia caçar levava entre seus pertences soro antiofídico o que já existia na época.
 
Tio Martin ao ver seu cachorro preferido naquele estado começou a chorar copiosamente. Amava aquele animal.
Mesmo desesperado aplicou o soro no cachorro, colocou-o em seu carro e voltou à cidade a toda velocidade que lhe permitiam as primitivas estradas de terra de então.
 
Pacha com os cuidados de um veterinário se salvou, não morreu, porém ficou cego até o fim de seus dias e quando pressentia a presença de seu dono, quando este chegava do trabalho à sua casa, o esperava deitado no portal abanando o rabo, ganindo e dos olhos cegos lhe caiam lágrimas.
 
E assim se passou até o final de seus dias.
 
Martin nunca mais foi caçar.

Confinada

C

Silvia C.S.P. Martinson

O prédio era alto, uns quinze andares. Moderna arquitetura. Amplas sacadas.
Portas-janelas que nas sacadas davam visão plena da rua.

Era azul e se confundia com o céu resplandecente que costuma acontece nestes pagos do Mediterrâneo, em Campello um “pueblo” de Alicante- Espanha.

Frente a ele há um grande parque arborizado e provido de muitos bancos para sentar e apreciar a placidez do ambiente.
Ali me sentava quase todos os dias para ler, pensar e observar.

Em uma manhã em que me encontrava sentada, depois de minha caminhada diária, em um banco frente a este prédio a vi...

De longe me pareceu mais ou menos jovem, cabelos castanhos, curtos, que reluziam ao sol.
Devia habitar o décimo ou décimo primeiro andar. Realmente não havia como calcular corretamente.

O que me chamou a atenção do lugar em que me encontrava na praça era que: ela entrava rapidamente por uma porta desaparecendo a seguir para sair por outra em poucos minutos depois. Isto sucessivamente, sem parar, por quase uma hora.

Voltei a caminhar pela praça nos dias seguintes como sempre fazia.

Aí, então, a curiosidade já me aguçava sobremaneira e passei diariamente, ao levantar os olhos, a observar a mesma cena. Meses a fio.

Queria saber quem era e o que fazia aquela mulher.

Dirigi-me ao prédio em que morava e falei com o porteiro que pouco soube me informar dizendo que não a conhecia e que esta nunca descia à rua.

A ele lhe parecia que era casada, todavia não tinha certeza.

O tempo passou e a cena se repetiu até que um dia não mais a vi.

Parecia-me de longe tão bonita.

Retornei ao prédio novamente e ao novo porteiro perguntei por ela.

Este era mais falador.

Contou-me então que a bela mulher vivia confinada em seu apartamento.
Que quando o marido saia trancava a porta e levava a chave com ele.

Era demasiadamente ciumento.

Um dia ao retornar a casa mais cedo encontrou em seu interior o antigo porteiro entabulando com a mulher amigável conversa.

Possuído pela desconfiança e pelo ciúme exacerbado puxou de um revólver que carregava consigo e aos dois, sem nada perguntar, matou.

Soube-se, segundo me narrava este último, que o antigo porteiro arrombara a porta, ao ouvir os gritos da mulher, para apagar um fogo que se instalara na cozinha e que logrou sucesso na empreitada.

Segundo alguns vizinhos ainda hoje se ouvem os passos da mulher a circular de um quarto a outro, sem parar, e que da praça quem olha para aquele apartamento a vê sempre da mesma forma, caminhando. Agora ao lado do antigo porteiro.

Os dois todos os dias, por uma hora, pela manhã, faça sol ou chuva, entram por uma porta e saem pela outra, caminhando, sempre caminhando...
Incrivel! Hoje pela manhã me pareceu vê-los.

 

O pátio da minha casa

O

Pedro Rivera Jaro

Tradução para português de Silvia Cristina Preissler
 
As pessoas de fora de Madrid pensam que esta grande cidade sempre esteve constituída por enormes arranha-céus como os que existem na bela rua Gran Vía ou do Paseo de la Castellana, mas eu lembro-me desde a minha primeira infância, nas zonas dos bairros do sul de Madrid, na minha rua, que então se chamava Barrio de San José e mais tarde mudou para Calle de San Fortunato, havia uma maioria de casas térreas, em muitas delas não se dispunha dos serviços mais básicos, como água corrente ou esgotos, e as suas ruas não tinham pavimento e, quando chovia, formavam-se enormes lamaçais e grandes poças de água, onde nós, crianças, brincávamos até ficarmos salpicados de água embarrada e, quando chegávamos a casa, as nossas mães davam-nos umas boas palmadas nas nádegas.
 
A duzentos metros da minha casa, havia campos semeados com trigo ou cevada, em cujos sulcos procurávamos ninhos de cotovias, lagartos, lagartixas e cobras. Desfrutávamos dentro da grande cidade de coisas típicas do campo, como ouvir onde os grilos cantavam e descobrir o buraco onde se refugiavam ao ouvir o som dos nossos passos quando nos aproximávamos. Colocávamos uma pequena palhinha de legumes no buraco e, quando eles entravam no seu abrigo recuando, fazíamos-lhes cócegas na parte da frente e os obrigávamos a sair, momento em que nós outros aproveitávamos para os capturar. Logo os colocávamos em pequenas gaiolas feitas de telas metálicas redes mosqueteiras e lhes atirávamos folhas de alface para que comessem e nos deliciassem com o seu canto.
 
Naquilo que foi a minha casa, há hoje dois blocos de apartamentos de quatro andares, e a rua de que vos falei que era de terra está agora asfaltada, e todos aqueles campos de trigo e cevada são hoje blocos de apartamentos com todos os serviços e comodidades que a vida moderna impõe.
 
Na parte traseira da minha casa havia garagens onde o meu pai guardava o seu caminhão, com a sua bancada de trabalho, ferramentas e demais utensílios para o seu trabalho de transportador. Noutra parte havia um galinheiro, com algumas dúzias de galinhas poedeiras, um pombal na parte superior e, do lado de fora da cerca de metal do galinheiro, tínhamos três gaiolas de coelhos.
Tudo isto estava ao meu cuidado, pois tinha entre as minhas obrigações à alimentação e a limpeza de todos estes animais.
 
Um dia os contarei muitas outras coisas sobre o decorrer de minha infância, muito feliz, mas sublinho que nós, crianças, tínhamos então muitas obrigações para ajudar nas atividades familiares, ademais de estudar.
 
Na parte do meu pátio que dava para a janela da cozinha e à qual se acedia através da porta do corredor central da casa, havia uma enorme amoreira que o meu avô Pedro tinha plantado e que produzia amoras brancas muito doces, à volta de cujo tronco grosso havia sido posta uma grande mesa de madeira, onde aos domingos de verão costumávamos comer os seis membros da nossa família.
 
Quando eu fazia alguma travessura de criança e irritava a minha querida mãe, ela corria atrás de mim, de chinelo na mão, eu subia em cima da mesa e, subindo pelo tronco e ramos da árvore, escapava à fúria da minha mãe.
Tínhamos também uma figueira com figos brancos pescoço de dama, deliciosos, duas videiras para fazer sombra, uma roseira com rosas vermelhas e plantas de sândalo e hortelã, em volta de todo pátio, numa orla de terra ajardinada, e nas paredes, colocados em suportes de ferro pintados de verde, pendiam vasos de gerânios, pelargônios, cravos, etc., contra o fundo branco da cal, deslumbrando o olhar, como se estivéssemos num belo pátio andaluz.
 
E todo o resto do pátio era pavimentado com cimento, que antes esteve empedrado com pedra de apiário, onde eu pequeno tropeçava e feria os joelhos demasiadas vezes.
Na década de 1950, aproximadamente em 1955, em pleno mês de julho, tivemos um dia verdadeiramente tórrido.
Então não se falava de alterações climáticas, mas os garanto que era tão quente como é agora, com a agravante de que não termos ar condicionado.
 
O nosso frigorífico era um poço de água, com cerca de 12 metros de profundidade, em cujas águas límpidas e frescas, por meio de um balde atado a uma corda, fazendo-a deslizar por meio de um gancho de ferro se baixava uma garrafa de vinho, outra de gazosa e uma terceira de água, uns tomates e um melão.
 
Tudo isto era introduzido na água do poço e, quando chegava a hora do almoço, trazíamo-lo para cima, e o conteúdo ficava bem fresco.
Esse poço tinha sido escavado pelo meu avô Pedro, muito antes de eu ter vindo a este mundo, e ele tinha-o revestido com tijolo.
 
No cimo, a borda do poço tinha cerca de um metro de altura de todo ele estava revestido de cimento e caleado. Por cima tinha um arco metálico e na metade deste tinha soldado um gancho no qual se pendurava a garrucha.
Duas dobradiças estavam presas à borda do meio-fio com parafusos grandes, que se ligavam a um alçapão de chapa metálica que se ligava à borda circular da sua borda oposta.
 
Desta forma, fechava-se a boca do poço e evitava-se qualquer acidente que pudesse acontecer a qualquer pessoa ou animal, e que pudesse cair ao fundo do poço, como aconteceu com uma perdiz vermelha, que eu mantinha solta no meu jardim, e que, assustada pelo meu irmão Javi, caiu depois de um curto voo no fundo do poço, e tivemos de a tirar com o balde, mas, como resultado dos golpes na cabeça quando caiu, ficou cega e em poucos dias morreu. Fiquei muito triste com a sua morte, porque tinha criado este animalzinho desde que era um pintainho e lhe tinha grande de carinho.
 
Ao lado da calçada do poço havia uma pia de pedra, que desaguava no esgoto, onde a minha mãe, uma vez cheia de água do poço, lavava a roupa, enquanto cantava as canções que ouvia cantar no rádio a Lola Flores, Juanita Reina, Marifé de Triana e outras celebridades da época.
 
As primeiras máquinas de lavar automáticas ainda não tinham chegado a Espanha.
Como já disse anteriormente, nessa tarde-noite o calor se fazia insuportável e o meu pai pensou que podíamos dormir no pátio, aonde à fresca das árvores a temperatura seria um pouco mais baixa.
Por isso, pôs uns tapetes no chão e, em cima deles, colocou um colchão com alguns lençóis e deitou-se nele.
Eu achei um pouco engraçado e perguntei-lhe se podia dormir com ele, e ele riu-se e disse que sim, e, eu dormi com ele.
Na metade da noite fomos acordados por uma tremenda tempestade com trovões e muita eletricidade.
De repente, começou a chover violentamente, obrigando-nos a recolher tudo e a correr para dentro de casa.
 
São coisas que acontecem na infância e que ficam profundamente gravadas na memória sem que se possa esquecê-las com o passar dos anos.
Passaram-se 69 anos e sigo recordando os gestos carinhosos de meu querido pai.

E DAÍ, AGORA SAI UM JOGUINHO?

E

Álvaro de Almeida Leão

 

Morlim, Oswaldo e Zecão diariamente se encontram para um carteado amigo no bar de seu Cardoso. Por lá ficam até as 23 horas. Como sempre acontece, Morlim é o primeiro a chegar e também o que mais vibra com as vitórias alcançadas. Seguidamente ganha. Ao perder fica fulo da vida.

Passado algum tempo, seu Cardoso recebe um telefonema:

- Alô, bar do Cardoso, às ordens.

- Oi, aqui é o Oswaldo. Quero falar com o Morlim, ele se encontra?

- Sim aguarde um momentinho. Morlim, telefone, é o Oswaldo.

- Alô, Oswaldo. Estão atrasados, já estou aqui há um tempão.

- Faleceu um amigo comum, meu e do Zecão. Estamos no velório e infelizmente hoje não podemos ir até aí para nossa diversão.

- Bah, amigo Oswaldo. Tô ralado e mal pago. Acostumado com o nosso jogo, nem sei o que fazer para passar esse resto de tempo.

- O mesmo está acontecendo aqui conosco. Estamos nos sentindo fora da casinha. Sabe como é, vício é vício, não é mesmo, Morlim?

- Claro, Oswaldo, eu que o diga. Estou sentindo comichões por todo o corpo. Já tomei um monte de cafezinhos. Enfim, fazer o quê? É da vida.

-- Era isso, Morlim. Até amanhã. Certo?

- Mais do que certo. Um abraço no  Zecão.

- Será dado.

 Morlim volta pra mesa em que se encontra, totalmente desnorteado. A falta que o estimado e amado joguinho está fazendo não tem no mapa. Daí para uma crise de nervos foi uma questão de minutos. Em dado momento, não se contém e apela para a bondade do Cardoso.

- Cardoso amigo, preciso que me faças um grande favor.

- Pois não, Morlim, se estiver no meu alcance, com muito prazer.

- Não queres jogar comigo? O movimento do bar está calminho.

- Não, obrigado, Morlim, não sou de jogo, nem conheço bem as cartas.

- Então, Cardoso, proponho: nós dois nos posicionamos aí atrás do balcão e jogamos quem consegue dar uma cuspida mais distante. Feito?

- Desculpe, mas não quero.

- Que achas, amanhã chove ou não chove? Escolhe. Ficarei com o contrário do que disseres. Combinado? Jogamos dessa feita?

- Não me leve a mal. Mas jogo é algo que não me atrai.

- Cardoso, me alcança um pedaço daquele queijo ali naquela prateleira do meio.

- Perdão, Morlim, o que há ali não é queijo, é sabão.

- É queijo.

- É sabão.

- E daí... agora sai um joguinho?

- Tudo bem. Me venceste pelo cansaço. Tá jogado.

- Joião. Beleza pura. Até que enfim. Eu digo que é queijo e tu dizes que é sabão.  Podes descer a mercadoria para vermos quem ganhou o jogo.

Cardoso vai até a prateleira em que se encontram os produtos de limpeza e traz a barra de sabão que o Morlim apontara como sendo queijo.

- Eis aí, proclama o vencedor.

Morlim, de posse de um naco do sabão, leva até a boca e, não se dando por vencido, -perder não é com ele –  diz com a maior cara de pau:

- Ganhei o jogo. Ganhei. Ganhei. É queijo com gosto de sabão.                                

...Perder não é com o Morlim. Não é mesmo!...

A morte da avò

A

Silvia C.S.P. Martinson

Ela morreu.
 
Não deixou herança significativa, todavia escreveu somente uma carta a seu único e querido neto.
 
Viveu intensamente, alegremente cada dia. Com a alegria de alguém que recebe a dádiva da vida.
 
Sofria de dores como qualquer velho que, com o passar dos anos e o desgaste natural do corpo, as tinha.
 
Teve alguns amigos que também manteve até o fim de seus dias. Aqueles que se afastaram por razões da vida o fizeram sem alarde. Alguns deixaram lembranças amargas que com bom senso ela guardou bem escondido no escaninho da memória, no lugar das coisas perdidas.
 
E assim dia a dia, semana a semana, meses e anos se passaram sem que ela se desse conta da história registrada na eternidade que paulatinamente escrevia.
 
E agora chegando ao fim deixa a seu neto, para que conheça, a versão não contada de sua longa caminhada em uma carta somente a ele endereçada que começava assim:
Querido neto.
 
Amo-te acima de tudo. Fostes e és a lembrança mais querida que carrego comigo.
 
Eis que meu fim chega. Eu o sinto.
 
Fui alegre, fui feliz.
 
Amei e fui amada.
 
E agora te conto o que se passou em minha longa estrada.
 
Eu .......
 
A mão lhe tombou, a caneta escorregou, o sorriso aos poucos apagou-se em seus lábios, os braços lhe caíram ao longo do corpo, os olhos se lhe fecharam suavemente.
 
Não terminou a carta.
Imersa em seus sonhos e lembranças adormeceu para sempre.
 

O mesmo

O

Silvia C.S.P. Martinson

Mais um verão, todos diriam.
 
Assim começa a nossa história.
 
Todavia ela se passa a quase 50 anos atrás.
 
Sim era verão. Um verão como todos os outros.
Diferente então eram os caminhos e as situações que conduziam ao merecido descanso de um ano de trabalho árduo.
 
Meus pais trabalhavam muito para manter a casa que compraram com sacrifício e muita economia. Bem como, para proporcionar conforto e uma educação mais esmerada à suas duas filhas. Ou seja, minha irmã e eu.
Tínhamos uma vida modesta, porém cercadas de muita cultura.
 
A música clássica permeava nossos dias, enchendo a casa de sonoridade e beleza.
A leitura de bons livros e autores era uma constante em minha casa. Minha mãe era uma leitora insaciável.
 
Isso quando criança nos parecia um tanto aborrecido, porém com o passar dos anos vimos a entender o quanto nos ajudou, tanto em nossa vida profissional, quanto em nossas relações pessoais e interpessoais, ou seja, no convívio social.
 
E assim s passavam os dias e nós crianças fomos crescendo, aprendendo e também sendo corrigidas, às vezes severamente, quando necessário.
 
Os invernos em minha cidade, aquela época, eram rigorosos. Nos assolava o frio com fortes geadas, muita chuva e humidade.
 
Minha mãe tinha um fogão a lenha que mantinha aceso dia e noite e que nos proporcionava, feitos por ela, deliciosas comidas e calor verdadeiramente acolhedor a toda a casa.
 
Enfim, assim se passavam os dias invernais sempre na expectativa da chegada da primavera, que por consequência era o prenuncio de sempre um verão alegre e muito quente. E essa expectativa se renovava a cada ano.
 
Era a época que aguardávamos com ansiedade, isto porque, todos os anos meus pais costumavam alugar uma casa diferente sempre, na praia, em qualquer balneário onde encontrassem uma, dentro de suas possibilidades financeiras.
 
Recordo que num desses anos eles alugaram, segundo um anúncio feito no jornal domingueiro, uma casa no balneário de Cidreira no Rio Grande do Sul- Brasil.
 
Quando ali chegamos, meus pais tiveram uma enorme surpresa. A casa se localizava ao fundo de um terreno um pouco distante do mar e para maior insatisfação tratava-se de um quase galpão, ou seja, uma peça grande onde estavam todos os móveis de uma casa ali alinhados.
 
Sala, quartos e cozinha tinham uma sequência normal. O banheiro se localizava no quintal era primitivo e somente melhorou de aparência pelos trabalhos de higienização efetuados por minha mãe e meu pai. Ambos extremamente caprichosos.
 
A casa era alta do chão. Havia um enorme espaço entre o piso dela, que diga-se de passajem, era de madeira e o chão de areia do quintal.
 
Depois do almoço íamos fazer a sesta debaixo da casa. Ali meu pai colocara umas tábuas sobre as quais nos deitávamos à dormir.
 
Eu costumava ficar mirando o céu para ver nas nuvens figuras que, na minha imaginação, eu criava tais como: bichos, monstros, fadas, duendes e montanhas que faziam parte deste mundo. E com isso ao poucos adormecia devagarinho.
 
Para nós crianças foi, naquele verão, uma experiência inesquecível.
 
Até hoje recordo de tudo como se eu estivesse ali, agora, neste exato momento.

Urgente, urgente o plano CP SN

U

 Álvaro de Almeida Leão

Decisão do torneio amador de futebol de campo entre bairros de Porto Alegre. Evento oficial do calendário esportivo da cidade. A equipe do Menino Deus está tentando o tricampeonato e a do Caminho do Meio fazendo pela primeira vez a final. Juízes e bandeirinhas credenciados pela Federação Citadina de Futebol. Bom público entusiasmado e participativo.

O Menino Deus joga pelo empate, ao Caminho do Meio, só a vitória interessa. O Menino Deus é o time mais credenciado do torneio, conta com o artilheiro do campeonato, a melhor defesa e o goleiro menos vazado. É treinado pelo professor Aldo Leão e seu fiel escudeiro, o auxiliar técnico Rafael. O Caminho do Meio classificou-se na sua chave, por ser o time menos ruim. Seus únicos destaques são o goleiro Carlos Augusto, e o Richard, volante de bom drible.

Richard é o capitão do Caminho do Meio e seu líder, pouco finaliza mas, quando o consegue, quase sempre marca. No jogo anterior, foi decisiva sua atuação, marcou o gol da classificação. Quanto aos atletas do Menino Deus, são tão iguais no trato com a bola que não há uns melhores que outros. É um time coeso e solidário

Mas, jogo de futebol é jogo de futebol, nem sempre o melhor ganha.

Precavido, o professor Aldo arquitetou três planos: o A; o B e o CP, SN, este se estritamente imprescindível. Como no caso de vida ou morte. O plano CP, SN apenas o professor Aldo, os dois zagueiros e o goleiro do Menino Deus sabem de que se trata. Após cada coletivo, esses quatro permanecem em campo para treinamentos específicos do plano CP, SN..

Na preleção inicial do professor Aldo, o plano A: jogar sério, respeitar o adversário. Até agora, não ganhamos nada. E é tudo conosco. Rumo ao título.

Findo o primeiro tempo, zero a zero, creditado à excepcional atuação do goleiro do Caminho do Meio, o Carlos Augusto, que pegou todas. Ao Menino Deus, faltou competência. Inconcebível, inconcebível mesmo, tantos chutes a gol sem converter.

No intervalo para o segundo tempo, no vestiário do Menino Deus, o plano B: jogar com mais dedicação ainda. Melhorar e muito a pontaria das finalizações. Defesa com atenção redobrada. E, se nada disso der certo, jogar pelo regulamento.

Reiniciada a partida, o Menino Deus está com cuidado mais do que o desejado. O time atua mais se defendendo. Com isso, o Caminho do Meio está crescendo no jogo ao natural.
As palavras proferidas pelo professor Aldo: jogar pelo regulamento, resultaram o entendimento de mais ou menos, jogar pelo empate, ou seja, na retranca.

Trinta minutos do segundo tempo e ainda o zero a zero. A essa altura, um gol do Caminho do Meio seria um desastre. Sinal vermelho. O perigo ronda o Menino Deus. Então o professor Aldo decide substituir um atacante por um jogador de meio de campo e pede que este avise aos seus dois zagueiros e ao goleiro que coloquem urgente, urgente o plano CP, SN.

Cientes do recado, os zagueiros postam-se um em cada lado do canto da pequena área, enquanto o goleiro um pouco atrás, atento e ligado, torcendo para que o jogo logo termine como está, pois o empate o favorece.

E o Richard? Ah! O Richard está bem na partida. Faltando apenas cinco minutos para o término do jogo, ele, ao passar por todo o meio do campo adversário, dribla um dos zagueiros e em seguida o goleiro e quando, então, ia chutar a gol, o outro zagueiro do Menino Deus, na sobra, sentindo o pior, dá um chutão nas pernas do Richard que o levanta com bola e tudo, fazendo com que ele não conclua a jogada, que, certamente, resultaria em gol. O zagueiro leva a pior, tropeça e cai, com seu tórax sobre a bola. Proteção de pescoço e demais cuidados até que possa ser retirado dali.

Resoluto, o juiz marca o pênalti e aguarda que o zagueiro se recupere para expulsá-lo do jogo.
Enquanto isso, Richard não se escala para bater o pênalti, por ser um traumatizado em relação a cobranças de pênaltis. De uma feita, num outro time, desperdiçou três pênaltis em duas partidas seguidas. Na última, assim como agora, era fazer o gol e se candidatar a ganhar o campeonato.

Os times do Caminho do Meio e do Menino Deus amarelam, por motivos distintos: Menino Deus com medo de perder o campeonato e o Caminho do Meio. de ganhar. Como assim? Justificam-se, por serem times amadores.

O Richard, chateado, comprova que seus jogadores se afastam cada vez mais uns dos outros. Pensa ser pelo fato de que, se ficassem próximos, tratariam do assunto pênalti. E é tudo o que eles, possivelmente, não querem.
Uma coincidência que ninguém engoliu: os dois jogadores do Caminho do Meio que sempre são os batedores de pênaltis desmoronam no gramado. Um voltando a sentir antiga contusão na coxa e o outro, o joelho incomodando. Atitudes logo entendidas pelo Róger, técnico do Caminho do Meio, e pelo capitão Richard. Então restou solicitar um voluntário para a cobrança do pênalti.

O lateral esquerdo do Caminho do Meio, conhecido por Trapalhão, nem precisa dizer a razão do apelido – é o seu pior jogador, disparado. Joga por não existir outro na posição. Rapidamente raciocina: ao se candidatar a bater o pênalti e o converter, será considerado um herói. Todo o seu passado de perna-de-pau será esquecido. Assim convencido se escala para cobrar o pênalti
Não, não, qualquer um menos ele. Fazer o quê? Só resta rezar e rezar.

Trapalhão estava se dirigindo para a marca da cal, quando torcedores do Caminho do Meio, no alambrado, se alternam nas manifestações de suas insatisfações ante a desastrada atitude do Trapalhão em se oferecer para bater o pênalti:

-Pô, Trapalhão, te enxerga. Pede para atender ao telefone e te manda daí.
-Quem avisa amigo é: caso percas o pênalti, te capo e faço a festa dos cachorros.
-Que tu eras trapalhão eu sabia, agora louco varrido, pra mim, é novidade.
-Trapalhão, Trapalhão, olha aqui: estou no regime semiaberto, para eu apagar mais um ou menos um tanto faz. Perde o pênalti e verás o que irá te acontecer.
-Oh, seu Trapalhão, filho de uma mãe, sairás daqui hoje pelos braços da galera, de um jeito ou do outro. Se fizer o gol, consagrado.
-Se errar, de pés juntos e num envelope de madeira.

Diante de tantas amabilidades, Trapalhão foi acometido por uma forte vontade de urinar. Só deu tempo de se abaixar, fazendo de conta que irá amarrar os cadarços das chuteiras, e a todo custo se conter para deixar fluir a urina, e só a urina, nada além da urina. Não foi fácil, apenas urinar, mas enfim conseguiu. Ao voltar a caminhar, sacudiu as pernas, uma de cada vez, para que o resto da urina se esvaísse. As chuteiras ensopadas fazem com que seus pés encharcados como que se movimentem dentro delas, produzindo os conhecidos sons: ploft...ploft...ploft.

Envergonhado e humilhado sob todos os aspectos, Trapalhão dialoga com Richard.

-Capitão, eu desisto de bater o pênalti. Arruma outro. Estou sem condições morais e psicológicas. Por favor, me poupe de mais vexames.

-Tiveste coragem pra te oferecer pra bater. Agora vais bater, por bem ou por mal.

-Então eu vou bater com o pé que não é o bom, o direito, tentando enganar o goleiro.

-Faz como achares melhor. Desde que convertas o pênalti, tudo bem.

Esses diálogos, embora em vozes baixas, foram sempre captados por jogadores do Menino Deus que se encontravam por perto.
Então, um deles disse para o goleiro do Menino Deus que o Trapalhão iria bater o pênalti com pé direito.
Enfim, o juiz autorizou a cobrança.

Trapalhão, que nunca bateu pênalti na sua vida, bastante nervoso e ainda mais angustiado pelo incômodo da vontade de urinar que voltou mais forte ainda, não calculou corretamente em que distância se posicionaria e, ao correr para bater o pênalti, a sua última passada foi insuficiente para chegar junto a bola, em condição ideal para a cobrança, então, desequilibrado, só deu para tocar de leve a bola e de bico mesmo, sem força alguma, ao invés de chute forte e com o peito de pé, o que daria direção ao trajeto da bola. Resultado, a bola passa bem devagar, a mais ou menos meio metro, do lado da goleira. O goleiro vai a passo visando o canto certo e só acompanha a bola ir para fora. Se em direção ao gol, defenderia tranquilamente.

Trapalhão olha para os seus pretensos algozes e os vê costeando o alambrado para em seguida entrarem no gramado. À frente, o apenado, já exibindo o revólver engatilhado e o torcedor que afirmou que iria capá-lo, brandindo no ar uma afiada faca, seguido dos demais. Cada um mais brabo do que o outro.

Trapalhão, sentindo-se prestes a sofrer uma mutilação e, logo após, sua iminente morte, corre em direção aos policiais fardados que se encontram à beira do campo e pede socorro:
- Senhores ilustres e dignos militares, sou o assassino de dois crimes ainda não desvendados pela polícia civil, estou me entregando, me prendam, me levem para uma delegacia. Aquelas pessoas que estão vindo ali querem me matar, sem que eu saiba o porquê. Salvem minha vida, salvem minha vida, imploro, pelo amor de Deus.

A Polícia Militar conteve os agressores, serenou os ânimos e resolveu o problema. Atendendo ao pedido do Trapalhão, levaram-no, em segurança, para uma delegacia.
Nova saída para os cinco minutos finais mais seis minutos de acréscimo. O Menino Deus, reencontrando seu verdadeiro futebol, cresceu na partida e ainda conseguiu fazer dois belos gols. O tri estava mais que garantido.

Na volta olímpica, o auxiliar técnico Rafael, alegando sua condição de compadre do Aldo, não se contém e pergunta o que vem a ser o CP, SN.
O Aldo responde com uma pergunta:

-O que fez o nosso zagueiro?
-Cometeu pênalti.
-Então temos o CP. E qual é a única condição aceitável de se cometer pênalti?
-Se necessário.
-E agora o SN.
-Cometer Pênalti, Se Necessário. C P, S N. Bem bolado. Inusitado. É isso aí.
-Satisfeito? Somos tri. Somos tri, ninguém nos segura. Viva o Menino Deus. Viva nossa equipe. Viva nossa diretoria, rumo ao tetra. Vida longa pra todos nós. Mais do que merecemos. Viva, viva, mil vezes viva.

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