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O dereito de ser diferente

O

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson
 
Ontem eu li um artigo de Álvaro J. San Juan, sobre um livro que ele escreveu intitulado "Grandes maricas de la historia", e ele revelou algo que eu não sabia. Ele se declara homossexual e também fala das grandes figuras da ciência, das artes, da literatura e da história, e explica a condição homossexual desses homens do passado, que eu desconhecia, exceto no caso de alguns deles, por exemplo, Alexandre o Grande. Eu não sabia que Michelangelo Buonarotti, Leonardo da Vinci, William Shakespeare, Isaac Newton, Hans Christian Andersen, Botticelli, Miguel de Cervantes, George Washington, Tchaikovsky, eram homossexuais.
 
Eles tinham que disfarçar sua homossexualidade, porque as sociedades onde viviam não toleravam diferentes, e porque para a intelectualidade cristã era "normal" ser heterossexual.
 
Ele diz que talvez hajam crianças ou jovens que um dia lerão seu livro e verão que não estão sozinhos. Se ele, quando era apenas uma criança, soubesse de que todos esses grandes homens eram como ele era, e ainda é, isto é, homossexuais, ele se sentiria acompanhado, muito melhor do que como  se sentia.
 
Vou falar-lhes de uma experiência que tive quando tinha trinta anos. Foi por volta de 79, talvez 80, em um bairro de Salamanca chamado Tejares. Tínhamos acabado de pesar um caminhão Pegaso de quatro eixos na ponte-báscula pública, que tínhamos carregado com mercadorias destinadas a uma fábrica na periferia de Madri. Eram cerca de onze horas da noite e entramos para tomar algumas cervejas no Bar Esteban, antes de voltarmos para casa para jantar. Quando entramos, notei que três rapazes de cerca de 20 anos estavam assediando e insultando outro rapaz mais ou menos da mesma idade. Interessei-me pelo assunto e perguntei-lhes o que estava acontecendo. Os assediadores me disseram que estavam se metendo com ele porque ele era um maricas e o chamavam de Marijose, embora seu nome fosse José. 
 
Eu então intervim e lhes disse que eles não tinham direito, porque isso não era motivo para maltratar o jovem. Então um desses três assediadores gritou comigo que eu provavelmente era outro bicha também, e por isso eu o estava defendendo.
 
O que aconteceu depois não posso dizer aqui, só posso dizer que Esteban, que era o dono do bar, interveio e me implorou para parar a luta.
 
Eu o fiz e ele, por sua vez, jogou os três assediadores para fora do bar. O cara gay me agradeceu com muito sentimento, e me deu um abraço de agradecimento antes de sair para casa.
 
Aqueles eram os dias em que as mudanças relacionadas às liberdades começaram a ser notadas em todas as áreas da Espanha e, felizmente, hoje estão enraizadas em nossa sociedade, mas o mundo é muito grande e tem muitas partes onde aqueles que são diferentes ainda estão subjugados.
 
Há uma grande revolução em andamento no Irã em prol das liberdades das mulheres.  No Qatar, onde foi a Copa do Mundo, os homossexuais ainda estão sendo executados por serem considerados mentalmente doentes.
 
Que passa a nós  seres humanos que não somos capazes de respeitar ao outro só porque é diferente de nós? 
 
Todos têm o direito de ser diferentes, isso sim, respeitando por sua vez aos demais.
Viver e dexar viver é um lema que tenho praticado durante toda minha vida e que faz parte de meus princípios básicos.

O tumulo

O

Silvia C.S.P. Martinson

Fui visitar aquele túmulo quando estive em Gaurama antiga província de Erechim no estado do Rio Grande do Sul-Brasil.
 
Era simples, porém bem conservado. Estava situado bem no início do cemitério e se compunha de um cercado de ferro torneado e uma cruz aonde estavam escritos em uma placa de metal os nomes das pessoas ali enterradas.
 
Não havia lápide o tumulo, era de terra que todavia estava coberta por flores do campo de várias cores e uma roseira com rosas vermelhas. Ali havia paz e solidão ao mesmo tempo.
 
A impressão que dava o local é que ali há muito tempo não chegava ninguém. Então naquele momento voltou-me à memória as histórias que eu havia ouvido tantas vezes quando era criança.
 
Ali estavam, enterrados, um casal. Ouvira-lhes contar, de outrem, sua história.
Ele era, segundo me disseram, russo. Era engenheiro agrícola. Penso que por seu sobrenome tratava-se de um judeu, pois que este nome não se parecia ao idioma russo.
Chamava-se Carlos, Carlos Martinson.
 
Trabalhava no palácio do Czar como engenheiro chefe, encarregado de administrar os jardins e plantações do mesmo. Foi-me contado que este Czar era louco e que em pleno inverno, onde tudo se quedava coberto de gelo, ele, exigia que os jardins estivessem cobertos de flores quando ali passasse de carruagem. Seu nome Nicolau II.
 
Carlos devido à sua habilidade e conhecimento agrícola criava roseiras em estufas e tinha então, para satisfazer àquele déspota, rosas que eram colocadas nos canteiros aguardando a passagem do todo poderoso Czar e que ao fim desta, eram retiradas já mortas e ressequidas pelo frio.
 
Carlos era casado. Sua esposa era procedente da Lituania, filha de uma família de origem da nobreza e cujo nome era Von Rohnes ou Rhouness. Seu nome, Cristina. Nesta família, como em toda sua descendência, a filha primogênita leva o nome de Cristina, seja como primeiro ou segundo apelido.
 
Ela era enfermeira alto padrão, ou seja, especialmente qualificada para fazer parte, inclusive, de cirurgias. Era uma mulher muito culta, habilidosa e elegante. Sabia inclusive fazer perfumes.
 
Bem, continuemos com a história dos dois.
 
Conheceram-se, em algum ponto da Europa, não sabemos aonde. Casaram-se e foram morar em São Petersburgo, localizada esta cidade no mar Báltico, um porto que foi por dois séculos a capital imperial da Russia e onde Carlos exercia suas funções no palácio do Czar.
 
De sua união resultaram 10 filhos.
 
O povo estava faminto e descontente com o Czar por sua gestão desastrosa na condução da vida de seu povo, que se encontrava na miséria enquanto ele, sua família e seus súditos mais chegados viviam no maior luxo e opulência.
A revolução comunista e o descontentamento geral se fazia já sentir pelas ruas da cidade.
 
Carlos tinha um irmão que era comunista. Este lhe alertou do que iria acontecer à família real e a todos que lhe estivessem ao derredor, inclusive serviçais. Todos seriam mortos, presos e fuzilados de preferência a fim de que o novo sistema governamental se implantasse sem maiores resistências.
 
Ante tal conhecimento Carlos habilmente deixou o palácio com sua família. Atravessou a Europa e após algum tempo embarcou em um navio rumo às Américas. Seu irmão fez o mesmo, porém por outro caminho. Atravessou a Sibéria a pé e foi parar no Canadá onde se estabeleceu.
 
Carlos chegou a América do Sul, mais precisamente ao Brasil, onde primeiramente se estabeleceu na cidade de Campinas onde foi trabalhar nas plantações.
 
Em Campinas ele e sua mulher tiveram mais duas filhas, as únicas brasileiras. Uma chamava-se Natalia, a mais velha, a outra mais nova, Maria.
 
Todavia, não ficaram muito tempo ali. Ele queria ter seu próprio espaço, ser dono de sua vida e de sua propriedade, ou seja, deixar de ser empregado.
 
E assim, de acordo com Cristina, sua mulher, compraram terras no sul do país, mais precisamente em um lugarejo chamado a época de Gaurama nome que até hoje detém.
 
No entanto, para chegar ali somente se o fazia em lombo de burros e carretas que eram conduzidas com as famílias de imigrantes até àquelas terras inóspitas. Existiam nas terras, leões baios, macacos e serpentes de todos os tipos.
 
Construíram sua casa que adornaram com os objetos que haviam trazido da Russia, tais como aparelhos para fazer os perfumes que Cristina tão bem os sabia elaborar juntamente com as filhas mais velhas e também um candelabro de 7 velas e um samovar para a feitura do chá.
 
Os habitantes daquela região, tão poucos, eram mais simples e de pouca educação e cultura e por isso olhavam esta família com certo desdém e ao mesmo tempo com disfarçada inveja.
 
As filhas menores foram batizadas na religião católica ortodoxa.
 
As árvores neste lugar eram tão velhas e grandes que os doze filhos juntos não conseguiam abraçar seus troncos.
 
A rigidez do clima, dos costumes, das dificuldades inerentes ao lugar, fizeram com que uma das filhas morresse quando ocorreu a tão famosa gripe espanhola, que dizimou grandes populações e tirou do convívio de muitas famílias seus seres queridos.
Infelizmente para os filhos os pais Carlos e Cristina viveram pouco ali.
 
Ele morreu em decorrência da queda de um cavalo sobre si mesmo quando atravessava um rio.
 
Ela algum tempo depois faleceu em virtude de uma pneumonia mal curada em um lugar onde nem médico ou remédios havia.
 
Os filhos mais velhos se dispersaram em busca de novas terras e oportunidades. Restou ali, somente, um irmão casado que criou a filha mais nova Maria e que até muitos anos atrás, ela também já casada e com netos nesta cidade ainda vivia. Hoje não se tem mais notícias deles.
 
Já Natalia foi levada para ser criada por outra irmã que, também casada, conduziu-a a sua casa e juntamente com seu marido ali a teve e pouca educação lhe proporcionou, tendo-a mais como uma empregada doméstica.
 
Todavia Natalia apesar de todas as dificuldades e ficando órfã aos quatro anos, cresceu e aprendeu uma profissão e como praticamente autodidata possuiu toda sua vida grande amor pelos livros, sendo uma leitora voraz e também amante da boa música que, quando podia, ia assistir aos concertos que se davam aos domingos na cidade, onde depois de casada, foi morar.
 
Natalia foi minha mãe adorada.
 
Carlos e Cristina foram os avós que infelizmente não conheci e de que a cujo tumulo prestei minhas homenagens póstumas.

Chiquinha

C

Silvia C.S.P. Martinson

Hoje estão brancos. Brancos e soltos ao vento, tão lindos, como a neve que cai.
 
Já foram negros há muito tempo atrás. Seus cabelos são a testemunha das várias experiências vividas.
 
Agora caminho ao seu lado, pela mão me sujeita. Nós dois de tanto tempo cúmplices, pelas ruas, lentamente andamos. Eu, sempre ao seu lado.
 
Sou sua e como não ser?
 
Sim, sou sua fiel companheira.
 
O tempo urge para nós dois.
 
A mim me pesa mais ainda. Tenho certeza que em breve partirei.
 
Ele me acaricia, fala comigo e me afaga e me mima.
 
Como me sinto feliz nestas horas de convívio mais próximo.
 
Caminhando lado a lado, ele vai pelas ruas me orientando.
 
Somos velhos e quando ninguém nos vê conta-me em voz baixa o que se passou, o que se passa em seu coração.
 
Conta-me de suas alegrias, de tristezas e de esperanças naufragadas.
 
E lhe sinto, ainda, a alma a palpitar quando de seus amores e desejos se põe a narrar.
 
¡Que maravilhosa intimidade a nossa!
 
Todo meu corpo vibra ao pressenti-lo.
Como já disse antes, o tempo urge.
 
Para mim é mais rápido.
 
Dizem que é sete por cada ano do homem. Não sei.
 
Tenho que providenciar a despedida.
 
Não quero magoá-lo nem fazê-lo sofrer.
Não merece, haja vista todo carinho que me tem e pelos sacrifícios que fez por mim.
Já sei... Como todos e todas semelhantes a mim fazem eu também o farei quando chegar a hora.
 
Sem que perceba, quando abrir a porta sairei correndo pelas ruas da cidade em busca do campo, correrei e me esconderei.
 
E lá ficarei quietinha, escondida, até ela chegar. Como sempre chega a todos nós.
Estou velha. Meu pelo cai. Meus olhos já não enxergam bem. Não consigo mais defendê-lo.
 
Meu latido já quase não se ouve.
 
Não sabes ainda?
 
Eu sou Chiquinha, seu cão.
 
Estou morrendo.

Decida seu futuro

D

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Silvia C.S.P. Martinson

Qualquer pessoa sabe que não tem nenhuma chance de recuperar sua juventude. Muitos de nós sabemos que às vezes, quando somos jovens, intoxicamos nossas cabeças com ilusões e que estas ilusões, na maioria das vezes, nunca são realizadas.

Os pais de cada pessoa, com suas melhores intenções, orientam você a se preparar para o que eles pensam que lhe trará o melhor futuro possível, e mesmo que você tenha outras preferências, eles tentam fazer com que você os esqueça para que você se concentre no que eles pensam que será melhor para você. Quando eu era criança eu adorava jogar futebol, mas meu pai sempre me dizia para parar de jogar e estudar, esse seria o caminho para que eu me tornasse um homem útil no futuro.

Eu também queria estudar música quando tinha 9 anos de idade. Quando fiz o exame de admissão ao bacharelado em junho de 1959 e passei, meu pai me deu um violão com sua caixa, como prêmio. Naquele verão, nas montanhas, na aldeia de meus avós maternos, Las Rozas de Puerto Real, onde meu pai tinha construído uma pequena casa, o padre da aldeia, D. Antonio, que era uma excelente pessoa, me ensinou a tocá-lo usando o método dos números marcados nas linhas do pentagrama. Naquele verão aprendi a tocar canções como "Yo te daré", "Yo vendo unos ojos negros", "Clavelitos", e outras que eu estava muito feliz em praticar, porque eu tinha um grande amor pela música.

Quando retornamos a Madri no final do verão e retomei meus estudos no primeiro ano do ensino médio, meu professor, que era o diretor da escola, ao saber que eu estava aprendendo a tocar violão, disse a meu pai que: ou eu estudaria ou tocaria violão. Ele nem mesmo sabia distinguir entre guitarra e um violão, que grande professor que não sabia como ver que a música poderia ser uma atividade complementar às disciplinas do bacharelado.

Meu pai, que segurava o diretor Dom Francisco em um altar como se fosse um santo, levou a caixa do violão com ele dentro, e a colocou em cima do guarda-roupa em seu quarto e me disse: "Até o final do curso, não volte a tocá-lo". E eu, retendo minhas lágrimas, não ousava responder a meu pai, mas em meu eu interior e cheio de tristeza pensei: "Nunca mais vou tocá-lo". E assim foi.

Agora eu escrevo muitos poemas. Se eu tivesse me dedicado à música, provavelmente teria sido um compositor, mas isso é algo que hoje, aos 72 anos de idade, não sei se teria acontecido, pois não me foi permitido seguir esse caminho.

E o mesmo aconteceu com outras tentativas posteriores, como minha intenção de estudar medicina veterinária, que minha mãe não gostou, e me desencorajou de meu desejo porque achava que não era uma profissão muito brilhante para seu filho.

De qualquer forma, o que eu quero lhe dizer é que você não deve permitir que ninguém o desvie de seus passatempos para focalizar suas vidas. É muito importante, muito importante, dedicar-se ao que pode fazer você feliz. A vida pode nos parecer longa, mas na realidade, ela se torna muito curta e leve se a gastamos fazendo o que achamos mais satisfatório.

Ladrões no telhado

L

Pedro Rivera Jaro

 
Traduzido ao português por Sílvia C.S.P. Martinson
 
Era verão. Não me lembro exatamente do ano, mas deveria ter sido por volta de 1968. Deve ter sido por volta das 10 horas da noite. Tínhamos jantado e meus irmãozinhos Félix e Javi saíram para brincar em nosso belo pátio, enquanto meus pais, minha irmã Maribel e eu, assistíamos na cozinha de nossa casa, no televisor Werner, o programa que estava sendo transmitido pela única televisão que tínhamos na Espanha naquela época. Televisão Espanhola.
 
A cozinha era o ponto de encontro habitual em nossa casa. Sempre me lembro assim, havia o fogão a gás butano onde minha mãe cozinhava os alimentos que comíamos todos os dias, havia a pia, o armário da cozinha com muitos pratos, copos e outros objetos do dia-a-dia. Este armário tinha diferentes seções, assim como duas gavetas contendo facas, garfos, colheres, etc., e as outras continham guardanapos e toalhas de mesa para colocar sobre a mesa. A mesa era grande, para que os seis membros da família pudessem se sentar para comer juntos, e também tinha duas gavetas nas quais se mantinha a toalha de óleo impermeável que minha mãe tinha o hábito de espalhar sobre a mesa e debaixo da toalha de mesa. Havia uma grande janela, com duas faixas, que no dia do verão estavam abertas para deixar entrar o frescor do pátio.
 
Havia também um fogão a carvão na cozinha, que no inverno era todo o aquecimento que tínhamos em nossa casa e onde aquecíamos nosso pijama e os cobertores de lã em que nos envolvíamos para combater o frio dos lençóis. A casa era espaçosa, no andar térreo e tinha, além da cozinha, o quarto dos meus pais, que era o maior, o quarto da minha irmã, a sala de estar e outro quarto com duas camas, onde dormíamos os três meninos. Depois conseguimos ter um banheiro, que foi o último acréscimo a casa, depois de trazer o suprimento de água potável para a casa, que até então íamos até a fonte pública e a trazíamos em jarros, baldes, bacias, etc. E a água para irrigar o jardim vinha de um poço bastante profundo que meu avô Pedro tinha feito. A casa inteira foi atravessada por um corredor desde a porta da rua até a porta do pátio.
 
De repente, houve uma batida barulhenta na porta da rua. Nós quatro saímos correndo e rapidamente abrimos a porta. Em voz alta Fernando, outro vizinho na rua, nos disse que tínhamos dois ladrões nos telhados e que quando atirávam pedaços de tijolos e cascalho sobre eles, que eram restos de um pequeno trabalho que tinham feito na rua, eles corriam através do telhado na direção da parte que levava ao nosso pátio e à nossa garagem. Corremos para o pátio, e lá vimos meus irmãos vindos da garagem e chegando à esquina do banheiro e do pátio.
 
Quando lhes perguntamos se tinham visto alguém descendo dos telhados, eles responderam que não tinham visto ninguém. Há ladrões nos telhados, dissemos a eles, ao mesmo tempo em que vimos no chão do pátio os projéteis que Fernando havia jogado neles, escombros e pedras. Javi permaneceu em silêncio, mas Félix, que era o mais velho dos dois, disse muito assustado: "Não há ladrão. Éramos apenas nós que queríamos pegar um ninho de pardais que as aves cresceram e estão prestes a voar para longe”. E ele olhou para meu pai que era muito sério, mas que, além da brincadeira, preferia isto, sem dúvida, a ter que enfrentar os supostos e, por outro lado, os ladrões inexistentes.
 
Meu pai os repreendeu muito e eles não foram pegos porque minha mãe sempre segurava meu pai para que ele não nos desse uma bofetada.
 
Eu estava pensando muito em como teria sido uma vergonha se Fernando tivesse atingido um dos projéteis de pedra que ele atirou neles. Depois ri alto, pensando na rapidez com que eles conseguiam descer do telhado através da grelha da janela do banheiro até o chão.
 
Anos mais tarde, todos crescidos, rimos muitas vezes falando sobre o que aconteceu, e nos divertimos muito com a diferença de caráter dos dois, um que se fez de "morto" e não confessou nada, e o outro com sua franqueza, se aproximando, confessando o que aconteceu, e demonstrando um caráter que ele ainda tem hoje, mais de cinquenta anos depois.

O professor

O

Silvia C.S.P. Martinson

Quando entrei nas classes do 2º Grau o conheci.
 
Era a primeira vez que frequentava aquela escola que foi à época considerada o melhor colégio público feminino. Ela funcionava em uma escola evangélica particular e masculina, uma vez que o governo do Estado lhe pagava um aluguel porque não havia, então, disponibilidade de prédio próprio que permitisse seu funcionamento. Pela manhã, ali, estudavam os alunos homens da escola evangélica. Pela tarde eram as classes ministradas às alunas mulheres da escola pública.
 
O ingresso nesta escola era bastante difícil face ao que, era submetida a candidata à vaga a um exame de conhecimentos gerais, ministrados no 1º Grau, tanto escrito quanto oral. A média de notas em cada matéria era de 8, o que fazia com que muitas aspirantes a vaga não a conseguissem alcançar.
 
O ano letivo começava em março e encerrava-se em meados de dezembro para quem fosse aprovada, após os exames escritos e orais.
Havia ainda a chamada 2ª época quando ao final de dezembro e início de janeiro eram ministrados novos exames às recalcitrantes, dando-lhes uma segunda oportunidade de aprovação. Diga-se, de passagem, que naquele tempo, era considerada uma vergonha ao aluno ficar dependendo da “2ª Época” para passar às classes do ano seguinte. Estes alunos eram considerados preguiçosos ou pouco inteligentes. A exigência de conhecimentos nestes exames era muito maior do que aqueles pedidos no final do ano letivo.
 
Havia também férias na metade do ano, mais precisamente no mês de julho, considerado este, na minha terra, o período mais frio por tratar-se do inverno. A este descanso de 30 dias dava-se então o nome de “Férias”.
 
Época esta em que se ficava em nossas casas ao abrigo das intempéries e podendo dormir até mais tarde, sem maiores compromissos.
 
Tudo isto lhes conto, em princípio, para entrar agora, em verdade, na história principal.
 
Comecemos então.
 
Aconteceu comigo nos primeiros dias do ano letivo, ou seja, março.
 
Passava eu com os meus ingênuos quase 13 anos frente a uma sala de aulas onde estudavam jovens mais velhas do que eu.
Chamou-me a atenção à maneira de como o professor se dirigia às alunas.
 
Ele era um senhor de mediana idade e bem apessoado, vestia-se elegantemente. Todavia tinha uma expressão arrogante e dirigia-se às jovens em alto e bom som o que nos permitiu ouvir o que dizia.
 
Chamava as alunas de pobres ignorantes e despreparadas para suas classes e que nunca esperassem dele uma nota 10 porque esta somente cabia a ele.
 
As alunas aterrorizadas o miravam com espanto e preocupação perante tanta soberba. Depois fiquei sabendo que ele costumava reprovar sempre ao final do curso muitas alunas a fim de que repetissem o ano. Ante tal visão à época, jurei a mim mesma que não haveria de ser sua aluna nunca.
 
Ledo engano o meu. No 4º e último ano ginasial tive a ingrata surpresa, ao voltar às aulas, de saber que aquele seria nosso professor de desenho geométrico. Ele veio então a ministrar aulas a minha turma. Não havia mudado em nada seu método agressivo e soberbo.
 
Pensava-se muito inteligente e capaz e as alunas somente serviam para serem massacradas e pisoteadas por sua personalidade egocêntrica e cruel.
 
Assim que observando a tudo isto me propus a nunca, sendo aluna dele, tirar uma nota abaixo de 10 para lhe fazer ver que não era tão competente quanto queria aparentar. E assim sendo estudei e me preparei para suas provas.
 
Na primeira tirei 10 e ele chamou-me frente a toda classe zombando de mim e dizendo que eu havia copiado de alguma maneira os resultados.
 
Argui-lhe que não. Que eu realmente merecia aquele 10 porque havia estudado e me preparado.
 
E assim se passou o ano e em todas as provas que aplicou, eu continuava a tirar 10 e ele cada vez me odiando mais por isso.
 
Ao final do ano, nas provas finais, ele me isolou das demais alunas em um canto da sala onde examinou a mesa em que me sentara para ver se ali não havia qualquer cópia de sua matéria e inclusive fez com que outras colegas verificassem se eu não portava em minhas roupas qualquer papel referente à sua matéria.
 
Fez ainda com que colocasse sobre a sua mesa todo meu material escolar, deixando comigo somente um lápis, uma caneta e uma borracha de apagar.
 
Iniciou a prova para todas nós, todavia ele se postou ao meu lado a controlar-me o tempo todo do exame.
 
Eu não me perturbei, tinha-lhe tanto asco que me esforcei mais ainda para responder corretamente as perguntas da prova.
 
Acabei a prova e a entreguei a ele em sua mesa.
 
Ele com olhar maldoso me dice que eu havia rodado ao que lhe contestei dizendo:
- Não senhor. Eu, para seu desgosto e lembrança de minha pessoa, a fim de que jamais se esqueça deste acontecimento, novamente tirei 10.
 
Concluí o ano com a média 10 em desenho geométrico. Fato inédito naquela escola.
 
E, verdadeiramente, assim se passou.

Um senhor cantor de tangos

U

Alvaro de Almeida Leão

Uma sociedade beneficente e recreativa social de uma pequena cidade do interior está completando dez anos de bons serviços à comunidade. Nada mais justo do que comemorar com orgulho e satisfação essa tão auspiciosa data.

Além dos convites especiais para autoridades locais constituídas, foi elaborado um boletim da programação dos festejos, produzido e assinado pelo atual secretário-geral da entidade - sempre bem-vindo por ser repleto de inteligente e fino humor - dirigido para a digna e honrada casta de associados.

Entre assuntos sérios e outros nem tanto, registramos os seguintes constantes do boletim:
– Na parte da manhã, alvorecer com salva de vinte e um tiros de canhões; como não dispomos dessas armas, vamos mesmo de revólveres, garruchas, pistolas, espingardas, bacamartes e similares, desde que funcionem;
– Apetitoso café da manhã, estilo colonial, não faltando todas as melhores iguarias, que nem vou mencionar quais, para não provocar momentos de água na boca. Local: cada um na sua casa. Por decisão unânime da nossa diretoria, será sorteada uma casa de um dos nossos associados na manhã do aniversário, para que in loco o digno secretário-geral, que este subscreve, prestigie, com sua honrada e digna presença, tão incomparável desjejum;
– Missa campal ecumênica, às 10h00, ocasião em que iremos inaugurar as novas benfeitorias realizadas na nossa sede social; atividades culturais e esportivas constantes de apresentação do nosso coral, concurso de anedotas mais ou menos de salão (atenção mais para mais do que para menos), declamações de poesias, torneio de bochas e o tradicionalíssimo GRENAL, cujo vencedor será, evidentemente, o time deste nobre secretário-geral;
– Ainda sobre o GRENAL: o gol mais bonito e o mais perdido. Importante: atletas do futebol com planos de saúde e do SUS em dia. Motivo: as seguidas contusões durante o jogo, por conta das nossas reconhecidas ruindades no trato com a bola;
– Em seguida, eleições da rainha da festa e princesas;
– Ao meio-dia, após o almoço de confraternização, haverá a entrega de troféus e medalhas aos participantes vencedores. Proibida a entrada de pessoas no trago, porém sair borracho pode;
– À tarde, chá exclusivo para senhoras e senhoritas, com desfiles de modas e sorteio de brindes. Atenção: fofocas livres, porém, não vale malhar os namorados, noivos e maridos. No salão de festas, haverá sistema eletrônico de escuta “clandestina autorizada”. Todo cuidado é pouco!... Quem avisa amigo é;
– Às 20h00, apresentação no nosso auditório de um cantor ou cantora, que estamos contratando, através de anúncios em jornais, aliando qualidade e preço, para, com o nosso conjunto regional, proporcionar momento de verdadeiro deleite musical;
– A partir das 23h00, inesquecível baile de aniversário, com música ao vivo e com hora para começar. Para terminar, como sempre, somente quando o sol estiver a pino;
– Aos felizes participantes das nossas festividades solicita-se a espontânea doação de um quilo de alimento não perecível, por pessoa, a ser distribuído às famílias carentes do nosso município (observação por oportuna: maneirar quanto à quantidade de sal ofertada, na festa anterior foi além da conta, entenderam a mensagem?);
– Atenção, atenção, muita atenção! Se chover pela manhã, as comemorações serão realizadas em conjunto com as da tarde. Porém, se chover à tarde, todas as confraternizações serão pela manhã. Entenderam a última parte dessa comunicação? Não?!... Nem eu. Mas enfim, já escrevi isso e, com a devida vênia, permito-me não voltar atrás;
– Obrigado a todos e até o próximo glorioso e inesquecível primeiro sábado do mês vindouro, ocasião em que comemoraremos nossa magna data.

Entretanto, Adalberto Luvielmo (baita nome de cantor de tangos, não é mesmo?), morador de uma cidade do outro extremo do estado, toma ciência, através do jornal, do anúncio daquela sociedade beneficente e recreativa social.

Obtém maiores detalhes pelo site da sociedade: cachê de pequeno valor, em virtude das diminutas possibilidades financeiras da sociedade; o cantor ou cantora deverá chegar próximo da hora de se apresentar e voltar no mesmo dia, pois não será franqueada hospedagem; após a apresentação, será servido um PF (o conhecido prato feito) no capricho, acompanhado de uma ceva geladinha.
Mesmo sem perspectiva de boa grana, Adalberto Luvielmo nem precisou pensar duas vezes, candidatou-se afirmando com todas as letras maiúsculas ser UM SENHOR CANTOR DE TANGOS. Ganhou, digamos assim, a concorrência artística.

Também pudera, escreveu só garganteando fanfarrices (entendam-se inverdades): que se apresentou em terras portenhas como cantor de tangos; não disse que esse fato se deu no ônibus que faz a linha Brasil-Argentina com um coro de vozes de umas trinta pessoas, seus colegas de excursão; que só não mandava um CD que gravara por ter-se esgotado em uma semana; que está em negociação com gravadoras, e que, à melhor proposta que receber, fechará contrato na hora.

Para impressionar, e foi o que realmente aconteceu, afirmou que irá extasiar a seleta plateia com sua maviosa voz, ao interpretar os famosos tangos: El dia que me quieras, A media luz, Palomita Blanca, Garufa, Volver, Adios muchachos, Caminito, Por una cabeza, Aquel tapado de armiño, La cumparsita, Mano a mano, Soledad, Esta noche me emborracho, Silencio, Cuesta abajo e Mi Buenos Aires querido.

Seu preço era lá em baixo simplesmente por amor à arte. Desde jovem, Adalberto Luvielmo é vidrado em tangos. Possui filmes, jornais, revistas e livros que envolvem o tema tangos, além de todos os discos que foram lançados desde os de vinil aos posteriores CDs e DVDs dos atuais e dos mais famosos intérpretes de tangos de todos os tempos.

Adalberto Luvielmo é um cantor assumido de banheiro, nada além. Suas tentativas de ser cantor de tangos, inicialmente em programas de calouros e depois contratando professores, não deram resultados. Faltam-lhe todas as condições. Deveria aceitar que não dá para cantor.

São 18h00 do dia do aniversário da sociedade. Um dos assuntos principais até o momento era a parte jocosa do boletim da programação.

Até agora, só alegria: alvorecer, café colonial, missa campal, atividades culturais e esportivas, almoço, chá da tarde. O time de futebol do secretário-geral nem perdeu nem ganhou; o resultado do GRENAL foi quatro a quatro.

Próximo da chegada do cantor de tangos contratado, o Adalberto Luvielmo, é que mora o perigo de alguns dissabores acontecerem.
Às 18h30min desembarca na cidade no ônibus de linha, o Adalberto Luvielmo. Boa viagem, ótima recepção, reportagem da rádio local, entrevista ao jornal, fotos, tapinhas nas costas e até alguns autógrafos.

Questionado se gostaria de ensaiar antes com o conjunto, respondeu que não é necessário. Ao saber que o conjunto já está de posse da relação e ordem de apresentação dos tangos, só resta aguardar a fantástica apresentação e partir para os braços da galera.

Casa cheia, é chegado o dia “D”, a hora “H”.
Primeiro número: aquele enorme fracasso, como não poderia ser diferente. O conjunto acelerando, para chegar junto, outras ao contrário sem sucesso. Adalberto Luvielmo desafinado e fora de ritmo que dá gosto.

Os músicos meneavam suas cabeças em negativa, reprovando assim tão malfadado acontecimento. Estavam envergonhados. Após o término da primeira agonia, assim a classifiquemos, mais da metade da plateia se manda dali aos palavrões e fula da vida. Entre eles, o ecônomo da sociedade, afirmando que o PF regado a geladinha já era. O maldito que vá reclamar a quem quiser.

Adalberto Luvielmo, sentindo e estava na cara que nem um pouco agradara, vai até a presença do conjunto musical e segreda:
– Passemos para a quinta música.

Em seguida a esse novo martírio, todos se retiram menos um. Adalberto Luvielmo ainda dá um tempo, para ver se o cara também se manda e... nada.

Faz sinal para o conjunto que irá cantar (cantar?) o último número. E assim começa a mil, sem dar tempo a ele próprio e ao conjunto de respirarem direito.

Missão cumprida, Adalberto Luvielmo vai ao encontro do seu único espectador, a fim de agradecer tanta consideração.
– Eu sou o Adalberto Luvielmo, muito prazer. Com quem eu falo?
– Delegado Aldo Leão.
– Pô, seu delegado, o senhor gosta de tangos pra caramba!
– De tangos, eu realmente gosto.
– Agradeço ao senhor por ter me prestigiado, ficando até o final do recital.
– Não tem nada que agradecer. Aqui cheguei emocionado por amor à nobre arte do tango. Porém, agora, no final, permaneci por estrito dever de ofício.
– Desculpe, mas o senhor é delegado da UBC, da SBAT?
– Não.
– Da SBACEM, do INCP?
– Também não. Ainda não foi dessa vez.
– Delegado de que então?
– De polícia e, a pedido do presidente da nossa sociedade, que irá registrar uma queixa contra o senhor, convido-o para irmos nós três até o plantão policial a fim de que o senhor, que abusou de todos nós e gosta tanto de empregar siglas, assine um TC.
– TC?... O que vem a ser isso, seu delegado?
– Termo circunstanciado. Queira nos acompanhar para aprender a nunca mais tentar enganar os outros. Positivo?
– E tem outro jeito?
– Não.
– Por falta de conselhos é que não foi. Confesso: sempre fui um egocêntrico. Errei em não me utilizar da autocrítica. Fazer o quê? Não deu, não deu. Peço desculpas pelos transtornos. Aprendi a lição. Não acontecerá outra vez. Prometo.
– É louvável que o senhor tenha percebido o seu erro e até esteja pedindo desculpas. Reconhecer um erro é o princípio da evolução pessoal. Que não fique só na promessa.
– Com toda a certeza, não. E mais, como sabemos, o fato de não reconhecermos um erro nos impede de crescer e amadurecer. Não é mesmo?
– Claro que sim. Mas, está ficando tarde, vamos então?
– Antes, podemos ir até a rodoviária? Preciso comprar minha passagem de volta.
– Certamente. Posso lhe alcançar “alguns” para despesas?
– Não, muito obrigado, não preciso.
– Eu sinto, independente do que aprontou aqui, que o senhor é uma boa pessoa. Espero que de agora em diante tenha juízo o suficiente para nunca mais cair numa roubada dessas.
– Ah, quanto a isso, não tenha a menor dúvida. Errar é humano, continuar errando é burrice. Mancada igual a essa, nunca mais, nunca mais mesmo!

Chico

C

Silvia Cristina Preissler Martinson

Saiu de uma ninhada de galinhas de peito duplo. Eram elas criadas por nós num galinheiro muito bem feito por meu marido, em um terreno baldio ao lado de nossa casa.
Eram lindos espécimes de uma raça criada para abate e também para gerar ovos de qualidade. Tínhamos algumas e muito poedeiras. Não dávamos conta da quantidade de ovos produzidos, assim que vendíamos ou dávamos os excedentes.

Pois um dia, uma delas em contato com o galo, que chamávamos Vermelho e que fazia parte do lote, pôs ovos galados e fez, através de seu cuidado com que eclodissem. E assim se fez.
Os ovos eclodiram e surgiu uma linda ninhada de pintinhos.

Logo dentre eles se destacou por sua força e de certa forma agressividade um macho. Este aos poucos se foi transformando e se mostrou, com o tempo, em um lindo galo branco. Demos-lhe o nome de Chico.

Chico cresceu rapidamente devido à alimentação e aos cuidados que tínhamos, tais como: limpeza, higiene e medicamentos próprios a uma boa criação.

Chico ficou lindo! Suas penas eram totalmente brancas, a crista de um vermelho vivo e com enormes esporões nos pés. Seu único defeito: o gênio.

Era profundamente ciumento e zeloso do galinheiro e das galinhas que lá viviam.
E um dia em sua inveja e ciúmes matou Vermelho, seu pai, a esporaços.
Quando conseguimos chegar perto o Vermelho já estava morto. Nada mais restava.

Este galo era tão bravo que quase não podíamos recolher os ovos. Ele simplesmente atacava e era preciso entrar no galinheiro com botas e muita proteção para poder isolá-lo em um canto e proceder a limpeza e recolhimento dos ovos.

Há um animal silvestre que gosta muito de atacar as galinhas para chupar-lhes o sangue e comer seus ovos. Chama-se popularmente Gambá.

Gambá por quê? Porque adora bebida alcoólica e se queres capturá-lo a melhor forma é colocar um recipiente cheio de cachaça e deixar em um lugar ao qual ele possa facilmente acessar. Ele se embebeda e cai em sono profundo.

Pois bem, o tal de gambá farejou as galinhas e seus ovos e em sua ânsia tentou adentrar no galinheiro escalando a cerca de arame que a protegia. Não deu outra... Chico furioso voou de encontro à cerca e com seus esporões atingiu o gambá várias vezes até que este caiu morto ao chão.

O galinheiro teve que ser demolido, o terreno onde se encontrava foi vendido.

As galinhas bem como o galo Chico doamos a um vizinho que possuía um galinheiro grande e se propôs a cuidá-los.

Após alguns dias ficamos sabendo que o Chico havia matado o galo do vizinho e tomado para si todas as galinhas e ainda que as mantinha, ciumento, sob estreita vigilância.

Ele não se recolhia a noite antes que todas as galinhas estivessem cada qual em seu ninho.
E caso alguma se atrasasse ele a tocava bruscamente com as asas para que a mesma se aninhasse.

Era um galo louco.

O senhor Jaime, assim se chamava o vizinho, foi obrigado a matá-lo. Ninguém mais conseguia adentrar ao galinheiro para colher os ovos ou alimentar as galinhas.

O Chico das penas brancas depois de morto proporcionou a nós todos um saboroso almoço, tendo como entrada um caldo soberbo e após um arroz com pedaços de frango ao molho, saladas e tudo regado a um bom vinho, que saboreamos alegremente.

Chico teve sua glória e seu fim merecido.

A caça com formigas

A

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Silvia Cristina Preissler Martinson

Faz um calor tremendo. É pleno verão e o final de agosto. Caem as primeiras chuvas depois de muitas semanas sem cair nem uma gota de água.
E depois da chuva, quando o sol volta a aparecer, observamos que já estão saindo dos seus formigueiros as formigas aladas, que serão as próximas rainhas dos seus formigueiros e outros menores, também alados, que são os machos, chamados de alines, cujo único objetivo em suas vidas é fertilizar as rainhas. No pleno voo, fecundam as rainhas e depois caem ao chão para morrer, enquanto as fêmeas, quando descem ao solo, desprendem-se de suas asas, fazem um buraco no chão e começam a botar ovos, que depois serão as operárias do novo formigueiro.

Eu aprendi com Juan de Dios, um padeiro vizinho meu que era marido da prima Eulalia, a quem todos chamávamos de Olaya, a capturar as formigas antes que voassem, justamente quando se preparavam para realizar seu voo nupcial.

O sinal para cavar nas entradas dos formigueiros era a queda das primeiras chuvas.

Quando apareciam as formigas aladas, nós as colocávamos diretamente, ao capturá-las, nas piteiras, uma garrafa de vidro, para evitar que pudessem escalar e escapar voando.

Juan de Dios as usava como isca viva na pesca e nas bestas ou costelas, para capturar pássaros na temporada de pássaros de verão, que desciam das serras e voavam em direção ao sul, fugindo da queda das temperaturas.

Depois, eu desenhei meu próprio viveiro para manter vivas minhas formigas aladas pelo maior tempo possível, o que podia chegar a durar vários meses.

Colocava em uma caixa de madeira, camadas de areia com canas ocas, cortadas nos canaviais das hortas do Tio Torres, na margem do rio Manzanares. Depois, fazia bolas de papel de jornal e as intercalava com terra por cima.

Punha na parte de cima tampas metálicas de potes de conserva, com água que mantinha o grau de umidade. Em cima, colocava uma tampa de madeira e sobre a tampa de madeira uma lona que amarrava, para que as formigas não pudessem sair e escapar.

As pobres formigas aladas haviam passado de aspirar a serem rainhas nos seus formigueiros a serem iscas vivas para capturar pássaros.

As bestas, cepos ou costelas, que por esses três nomes eram conhecidas, consistiam em mecanismos com molas, cujo semicírculo superior abria sobre a parte inferior ou base, e se sustentava aberto com a ponta da haste presa no orifício onde se fixa a isca.

O orifício tem duas pequenas pontas de aço, opostas, que ao apertá-las, aumentam o círculo central onde introduzimos a parte traseira do corpo da formiga até o seu estreitamento e, uma vez dentro, soltamos as pontas e a formiga fica presa, mas sem apertar e com certa liberdade de movimento.

Quando a presa picava a formiga, a haste de fixação escapava e a parte superior, ou morte, golpeava com força, por efeito das molas, sobre a base. A diferença entre as bestas ou costelas e os cepos é que as primeiras têm uma tábua de madeira sobre a qual está presa a parte metálica, e os cepos não.

Era muito importante a escolha dos locais estratégicos onde colocar as armadilhas, como, por exemplo, as pequenas elevações, próximas a uma cerca de arame, onde os pássaros costumavam pousar.

Raspava-se o chão, arrancando as pequenas ervas que por acaso houvessem no lugar onde pretendíamos assentar a besta, formando uma pequena clareira que se destacava do seu entorno.

Depois se orientava, de modo que as asas da formiga brilhassem ao sol e, para evitar que o pássaro picasse a isca por trás, colocava-se nela um torrão ou tufos de erva que havíamos tirado antes, que tornasse mais fácil picar a isca pela frente e disparar o mecanismo, como explicava antes.

Eu também costumava amarrar um cordão na besta e prendê-lo a algum objeto pesado, ou a algum arbusto, para que, se acontecesse de que picasse algum animal de maior tamanho e força, não fugisse e escapasse arrastando a armadilha. E é que, em algumas ocasiões, acontecia de ser um lagarto ou uma lagartixa que mordia a formiga, já que tinham grande apetite por esse inseto e acabavam capturados pela besta.

Atualmente, tudo isso que eu conto pode parecer uma barbaridade. De fato, hoje em dia as bestas estão proibidas, e seu uso é punido com multas consideráveis, e o mesmo ocorre com a utilização de iscas vivas, mas há 60 anos, os passarinhos eram consumidos nos lares humildes e, inclusive, nos bares eram vendidos como aperitivos, uma vez temperados e fritos.

Espero e desejo que essa história da minha infância os distraia por um tempo e até gostem

Um dia nefasto na minha vida

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Silvia Cristina Preissler

Os antigos romanos dividiam os dias classificando-os como fastos ou nefastos. Eles levavam isso para a vida cotidiana, tendo muito cuidado para não iniciar negócios em um dia nefasto, pois acreditavam firmemente que fracassariam. Em contrapartida, empreendiam nos dias considerados fastos, acreditando que teriam sucesso garantido.

No dia 23 de julho de 2024, exatamente um mês atrás, eu tinha planejado viajar para Palma de Maiorca, às 19 horas, pois tinha uma consulta com meu dermatologista.

Naquela manhã, depois de tomar banho e fazer a barba, tomei café com leite e biscoitos no café da manhã. Depois escovei os dentes e, depois de pentear o cabelo e me vestir, saí para a rua e me dirigi, como fazia todas as manhãs, à Biblioteca Pública Pedro Salinas, onde pegava um exemplar do jornal gratuito "20 Minutos".

Depois de pegar o jornal, subi pela rua Toledo até a padaria Corteza y Miga, comprei um pão de trigo e de lá fui à loja de Vinhos e Licores na rua de Calatrava, esquina com La Paloma, onde comprei uma garrafa de Anisette Marie Brizard. Quando saí daquela loja, após pagar os 12 euros que custava a garrafa, atravessei a pequena praça de Isabel Tintero, e ao chegar na escadinha de 5 ou 6 degraus de granito, que desce até a calçada da Gran Vía de San Francisco, percebi que o semáforo aberto para os pedestres estava prestes a mudar e fechar.

Inconscientemente comecei a correr e, de repente, sem saber como, me vi tropeçando nos degraus até cair de bruços, grande que sou, estendido no chão, sobre as pedras de granito da calçada. O jornal e o pão que eu carregava na mão esquerda, assim como a garrafa de Anisette Marie Brizard que eu carregava na direita, me impediram de apoiar as mãos adequadamente para amortecer minha queda. Meus óculos apareceram no chão com uma das hastes dobrada quase a noventa graus em relação ao resto.
A barra de pão saiu do saco de papel, da minha mão esquerda, e ultrapassou o jornal que também havia sido projetado para frente. E à minha direita, a garrafa de Anisette se despedaçou, derramando seu conteúdo e eu observei com horror que os cacos de vidro ficaram quase encostando no meu rosto, após a queda. Quando cheguei ao chão, ouvi um barulho seco que minha cabeça fez ao bater no chão com o lado direito do meu queixo.

Imediatamente ouvi várias pessoas me perguntando se eu estava bem e se conseguia me levantar. Naquele momento, eu estava checando meu corpo e percebi que, pelo menos, conseguia me levantar, o que equivalia a dizer que os ossos mais importantes dos meus braços e pernas estavam inteiros. Minhas mãos doíam e observei que sangrava abundantemente por um corte que tinha no queixo, assim como pela unha do dedo médio da minha mão esquerda, que estava levantada e separada da ponta do dedo, cuja primeira falange estava fraturada. A mão direita também tinha danos, que hoje, 23 de agosto, ainda doem, mas aparentemente não havia fraturas. Minha bochecha direita e a área ao redor dela bateram no chão, e mais tarde pude observar em casa que estava avermelhada. A parte externa do meu joelho direito também estava coberta de arranhões.

As vozes que se interessavam por mim, quando eu estava caído de bruços nas pedras, pertenciam a duas mulheres, muito boas pessoas, que se preocuparam em me ajudar naqueles primeiros momentos. Uma delas era uma senhora, ou senhorita, romena. A outra era uma mulher hispano-americana, não me recordo se era da Colômbia ou da Venezuela, mas me lembro que ela atravessou o bar em frente e comprou uma garrafa de água, com a qual ela lavou minhas mãos e meu rosto, para limpá-los de sangue.

Imediatamente chamaram uma ambulância, que chegou em poucos minutos e pertencia ao Samur. Que Deus abençoe essas duas boas mulheres, e também outras quatro pessoas que pararam no caminho para me ajudar. Dois jovens que, pela aparência física, me pareceram hispano-americanos. E, por último, um casal de aproximadamente 60 anos que também parou para me socorrer.

Agradeço por poder verificar, mais uma vez, que ainda existe humanidade no comportamento de muitas pessoas.

Liguei para minha esposa pelo celular, que estava em nossa casa, a 3 minutos de distância, e que, a princípio, ficou alarmada, mas eu a tranquilizei e pedi que viesse.
Ela chegou imediatamente com o carro e, quando chegou, os paramédicos do Samur estavam me atendendo dentro da ambulância. Desinfetaram minhas feridas, examinaram meus ossos para verificar seu estado e me disseram que eu deveria ir a um hospital para que pudessem dar pontos no corte do meu queixo, que se aprofundava até o maxilar e precisava ser costurado. Também precisaria que fizessem um raio-X.

Fui muito bem atendido pelos paramédicos e eles me ofereceram ir a algum hospital da Segurança Social, avisando-me que poderia ter que esperar o dia todo para ser atendido.
Como acontece que há muitos anos, além da SS, sou associado da ADESLAS (Seguro Médico Privado), e que precisava estar no aeroporto Adolfo Suárez, de Madrid-Barajas, uma hora antes do meu voo, ou seja, às 18 horas, pedi à Estrella, minha esposa, que me levasse ao Hospital Madrid, na praça do Conde do Valle de Suchil, e ela me levou, e fui muito bem atendido por uma médica traumatologista, cubana de nascimento e descendente de galegos.

Minha esposa acreditava que teriam que arrancar minha unha, mas a médica me informou que não costumavam mais fazer isso. Devo dizer que, hoje em dia, as duas unhas danificadas estão praticamente normais. Uma delas, a da mão esquerda, ainda tem uma mancha roxa na ponta, mas que calculo que desaparecerá em um mês.

Quando chegamos em casa e minha esposa colocou a comida nos pratos para nós dois, ao tentar comer, percebi que não conseguia mastigar, e descobri que tinha quebrado o dente do siso inferior direito, bem como outro dente superior do lado esquerdo. Então fiquei, vários dias me alimentando de caldos, iogurtes, etc. Atualmente já como todos os tipos de alimentos, embora as bebidas frias eu deva beber pelo lado esquerdo da boca, se não quiser sentir dor no lado direito.


Na minha volta de Palma de Maiorca, marquei uma consulta com o dentista, mas a solução proposta pela médica que me atendeu, que era substituta do meu dentista habitual, que estava de férias, que consistia em extrair o dente do siso, não me convenceu. Então cancelei a consulta para a extração e decidi esperar até que meu dentista habitual voltasse.

Minha esposa opinava, e certamente tinha razão, que as consequências da minha queda poderiam ter sido muito mais graves. Então, além disso, tenho motivos para ficar feliz.

Às 17:30, minha esposa me levou ao aeroporto, e lá eu saí do carro com minha mala, e ela voltou para Madri. Eu estava com o corpo dolorido e os dedos enfaixados. No queixo, me deram três pontos, que a médica recomendou que eu não molhasse por alguns dias, para ajudar na cicatrização da ferida.

Quando cheguei ao controle de bagagens, onde os detectores buscam armas ou bombas, graças ao presente que os terroristas nos deram, às pessoas normais, o agente responsável por me revistar disse que eu deveria tirar o cinto e os suspensórios e também deveria esvaziar meus bolsos. Eu respondi que sentia muito, mas que tinha um dedo quebrado na mão esquerda e a mão direita completamente inchada e dolorida, como ele poderia ver pelos meus curativos. E também informei a ele que tenho 6 pinos de titânio na minha coluna vertebral, assim como uma prótese de quadril, no lugar onde antes estava o meu quadril esquerdo original.

Aquele agente deve ter entendido e me ordenou que passasse pelo detector até onde ele estava, e lá me revistou sem encontrar nenhum objeto que pudesse parecer suspeito.
Quando cheguei aos monitores luminosos onde os voos são descritos, procurei o meu voo UX-6097 da companhia AIR EUROPA, que tinha previsão de embarque às 18h15, saída de Madri às 19h00, com destino ao Aeroporto de Maiorca e chegada às 20h20.

A única informação era que o voo estava atrasado.
Desde as 18h, quando cheguei à área de embarque, até as 19h40, quando entrei no avião, os sofridos clientes da AIR EUROPA tiveram que suportar a total falta de informações da companhia aérea.
A principal causa do atraso era que eles tinham apenas um avião para fazer os percursos de ida e volta, e qualquer atraso causado se acumulava ao longo do dia.

O sofrimento ainda não acabou, porque às 20h09, todos os passageiros já estavam dentro do avião há quase meia hora, com um calor horrível, quando começaram a nos explicar o protocolo de segurança, e naquele momento, alguns passageiros, já nervosos com os atrasos, começaram a gritar pedindo que ligassem o ar-condicionado.

Naquele momento, a comissária-chefe se dirigiu a uma passageira que protestava pelo atraso e pelo calor e lhe disse que o ar-condicionado não podia ser ligado até que decolássemos.
A partir das 20h09, o avião ficou se deslocando dentro do aeroporto, do Terminal 2 até a pista de decolagem do Terminal 4, e só às 21h06 é que ocorreu a decolagem.

Às 22h07, pousamos no aeroporto de Son Sant Joan de Palma de Maiorca, e agora vem o clímax, de um voo que normalmente dura 50 minutos e que sofreu um atraso de 127 minutos, quando pelo alto-falante do avião a comissária-chefe nos informou que precisávamos esperar a chegada da Guarda Civil do Aeroporto, para deter a senhora que havia protestado pelo atraso e pelo calor.
A maioria dos passageiros começou a gritar que queria sair do avião, mas não nos deixaram sair até às 22h28, quando começamos a sair do avião.
Ao lado da porta da frente pela qual saímos e entrávamos no finger, estava um sargento da Guarda Civil, acompanhado de um membro do mesmo Corpo, esperando a senhora que vinha saindo atrás de mim.

Achei injusto e insuportável que detivessem aquela passageira, e me dirigi aos agentes, expressando meu desacordo, pois não havia motivos para isso, já que o único que ela fez foi protestar contra um tratamento degradante aos passageiros, por parte da companhia e de sua comissária-chefe.
Também manifestei minha vontade de testemunhar o que havia acontecido, ao que o Sargento me respondeu que ficasse tranquilo, pois não haveria consequências para aquela passageira.

Não faltou um funcionário de terra da companhia que se manifestasse em apoio à comissária-chefe, dizendo que o ar estava funcionando no aeroporto de Madri. Eu respondi que como ele poderia saber o que aconteceu em Madri, de seu posto de trabalho naquele corredor de Palma de Mallorca? Ao que ele não teve outra escolha senão ficar quieto.

Várias pessoas pararam no balcão da Air Europa para pedir o Livro de Reclamações, e disseram que não tinham ali, que deveríamos protestar por via eletrônica. A única coisa que conseguimos foi um folheto escrito em frente e verso, em inglês, com informações sobre os direitos dos passageiros aéreos na União Europeia, com o código AEA-ME-026-ANO4-R12.

O certo é que aguentamos uma situação abusiva, e que, por não querermos nos incomodar em fazer uma reclamação desses abusos, a AIR EUROPA repete o abuso uma e outra vez, porque não é a primeira vez que eu mesmo tive que suportar isso.

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