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O golpe das coroas

O

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson

O voo para Londres estava marcado para o dia 7 de dezembro.

No dia 4, como tinha feito tantas vezes em seus anos de estudante, Alberto estava trabalhando, ajudando Diego a colocar placas de lambril nas paredes de uma sala, no térreo de uma casa no povoado de Entrevías, na zona chamada "dos Domingueiros". O nome se devia ao fato de que seus habitantes e atuais donos tinham recebido gratuitamente, do Ministério da Habitação, o terreno onde construíram suas casas, assim como os materiais de construção necessários. No entanto, a mão de obra foi fornecida pelos próprios futuros moradores, que trabalhavam na construção aos domingos, o único dia em que podiam descansar de seus empregos.

Entre eles havia pedreiros, carpinteiros, encanadores, eletricistas, pintores, serralheiros, etc., e combinaram de se ajudar mutuamente na construção de suas respectivas casas.

Já era meio-dia quando Diego disse a Alberto que era hora de almoçar. Eles foram a um bar próximo, onde serviam comida caseira, boa e barata.

Cerca de uma hora depois, já estavam de volta ao trabalho quando a esposa de Diego chegou com um recado para Alberto: ele precisava ir ao Hospital 1º de Outubro porque seu pai havia sido internado.

Foi um grande susto para Alberto, que sabia o quão forte era seu pai. De imediato, pensou que ele tinha sofrido um acidente com seu caminhão.

Ele foi até o hospital e, ao chegar, dirigiu-se à recepção para perguntar pelo pai. Disse que achava que ele tinha sofrido um acidente com seu veículo de trabalho, mas lá foi informado de que esse não era o motivo da internação. Encaminharam-no ao andar onde seu pai estava hospitalizado para que conversasse com o médico responsável, que lhe explicaria a situação.

De fato, o médico informou que seu pai havia sofrido um derrame cerebral devido a um aneurisma congênito que se rompeu em seu cérebro, provavelmente causado por algum esforço físico intenso no trabalho.

Dias depois, ao perguntar aos vizinhos do local onde ficava a garagem do caminhão de seu pai, Alberto descobriu que, naquela manhã, bem cedo, as baterias do caminhão haviam descarregado. Como não conseguiu ligá-lo com a chave de ignição, precisou empurrá-lo com a ajuda de uma barra de aço. Muito provavelmente, esse esforço fez com que uma pequena veia em seu cérebro se rompesse, causando uma hemorragia interna que resultou em morte cerebral repentina.

No dia seguinte, ele foi mantido vivo artificialmente com ventilação mecânica até que, finalmente, foi constatado um eletroencefalograma plano. Quando a família compreendeu que não havia mais esperança, autorizou a desconexão do respirador automático, e sua morte foi oficialmente declarada. Ele tinha apenas 51 anos.

A notícia foi rapidamente comunicada a familiares e amigos. Seu pai era um homem muito querido, e, por isso, o velório e o enterro foram bastante concorridos.

Naquela época, o hospital possuía salas no subsolo especialmente preparadas para o velório dos pacientes que faleciam ali.

No meio da dor, o marido de María, prima de Alberto, sugeriu a compra de flores para o enterro e se encarregou de arrecadar o dinheiro para as coroas. Ele encomendou seis coroas de rosas vermelhas da variedade Baccara, de caule longo, em uma floricultura que conhecia. Como era pleno inverno, as flores saíram caríssimas.

Após o enterro, realizado no dia 7, Alberto decidiu não pegar seu voo e permanecer em Madri para apoiar sua mãe naquele momento de grande perda.

Dias depois, ele se encontrou com seu amigo Felipe e a namorada dele. Quando a jovem soube da morte do pai de Alberto, lembrou-se de que seus amigos, os donos da floricultura Sakuskiya, na rua Juan Bravo, haviam enviado seis coroas de rosas vermelhas de Baccara para aquele hospital na mesma época. No entanto, o pagamento dessas flores nunca foi efetuado.

No fim, Alberto descobriu que essas coroas eram as mesmas que seu parente havia se oferecido para pagar, mas o dinheiro nunca chegou ao caixa da floricultura.

Imediatamente, ele organizou uma reunião com Fernando, o marido de María, na floricultura. Todos haviam suposto que ele tinha pago pelas flores, mas logo ficou claro que Fernando era um golpista habilidoso.

Alberto pagou a coroa que ele, seus irmãos e sua mãe haviam encomendado — a mesma que Fernando, "gentilmente", lhes havia "presenteado". As demais coroas, ao que tudo indica, nunca foram pagas, apesar das reiteradas promessas de Fernando de que o faria.

Há pessoas capazes de se aproveitar dos outros em qualquer circunstância, sem sequer pestanejar.

Fernando havia deixado uma gorjeta generosa para ganhar a confiança do atendente da floricultura e conseguir que lhe vendessem as flores fiadas, prometendo pagá-las em alguns dias. Mas ele nunca cumpriu sua palavra.

Por trás de sua aparência de homem bonito e elegante, escondia-se um estelionatário acostumado a enganar aqueles que confiavam nele.

Imaginaçao

I

Sílvia C.S.P. Martinson

Ela caminhava solitária pelas ruas.
O tempo passava lentamente, o dia mal começara, as luzes noturnas da cidade se apagavam e as ruas aos poucos se enchiam de pessoas. Pessoas estas que passavam por ela apressadamente, sem tomar conhecimento de sua presença.
 
A ela pouco importava a opinião ou atenção  de seus pares.
 
Caminhava imersa em seus pensamentos, todavia apreciando o belo amanhecer que se fazia então.
 
As árvores se cobrindo de folhas após o longo inverno, se bem que, ainda era frio, as flores orvalhadas nos jardins, as rosas vermelhas de que tanto gostava lhe extasiavam os olhos e a alma.
 
Os pensamentos lhe vinham e iam como passes de mágica e a cada passo que dava as coisas ao seu derredor se modificavam.
 
Em que pensava?
 
De que poderes era dona e senhora?
Seria uma bruxa ou uma fada?
Assim a si mesma também se observava e lhe encantava suas próprias atitudes quando as tomava.
 
Em uma avenida em que passou os homens se digladiavam com palavras ao mesmo tempo em que se agrediam fisicamente com armas, matando-se uns aos outros.
 
Ela parou, olhou-os por um momento, uma lágrima se lhe escapou dos olhos que ao cair no chão a tudo transformou.
 
A avenida se encheu de luz, da luz de um sol nunca visto, os canteiros ficaram repletos de flores e os homens extasiados diante de tanta beleza pararam de brigar, olharam-se profundamente uns aos outros, deram-se as mãos, abraçaram-se e seguiram, cada qual o seu caminho. As armas desapareceram.
 
Em outra rua pela qual passou as mulheres preocupadas com sua beleza e aparência pessoal estravam nas lojas a comprar e adquirir belas roupas, sapatos, perfumes, bijuterias e mil outras coisas que lhes pareciam importantes e quando saiam desses recintos, não notavam as outras senhoras que se encontravam famintas junto aos seus filhos a estenderem as mãos num pedido pungente de socorro, de ajuda, para que pudessem aplacar a fome e o frio que lhes consumia.
 
Ela ao observar tudo isto novamente se emocionou e de seus olhos outra lágrima verteu. Lágrima esta que ao cair ao solo tudo transformou.
 
O frio cessou, o sol brilhou novamente, as ricas e poderosas mulheres deram-se conta das outras miseráveis e as passaram a ajudar substituindo seus trapos por roupas decentes, dando-lhes inclusive e aos seus filhos comida e abrigo.
 
E neste caminhar dirigiu-se, então, à beira do mar que circundava esta cidade margeada com belas praias de areias brancas, onde a água de um verde cristalino nelas se derramava lentamente, como o tempo, como a eternidade.
 
O bando de pássaros que pousados na água estavam a vê-la enfim a sorrir ente tanto esplendor e beleza, alçaram voo e em seu caminho a tomaram pelos braços e com ela voaram ao infinito.
 
Amanheceu o dia, ela acordou com a imagem vívida do que enquanto dormia havia sonhado e pensou:
 
Teria sido tudo imaginação sua?
 
Seria ela uma fada mesmo?
E assim pensando e sonhando acordada ficou a sorrir para si mesma, mais uma vez.

 

 
 

JUSTIÇA PELAS PRÓPRIAS MÃOS

J

Pedro Rivera Jaro

Tradução para o português: Sílvia C.S. Preissler

Corria o ano de 1973.

Aquele homem havia trabalhado duro durante toda a sua vida, desde os cinco anos de idade, e, com o fruto do seu esforço, conseguiu comprar um terreno, que cercou devidamente e no qual instalou um grande portão para caminhões, com uma altura de três metros.
Alguns meses antes de falecer, fez algo a que sempre tinha resistido, mas que, devido às suas necessidades financeiras, não teve outra escolha: alugou aquele amplo terreno a um comerciante de veículos usados, que também era policial havia muitos anos. Devemos lembrar que, naquela época, a Espanha estava sob outro regime político, diferente do atual, em que os policiais tinham muito mais poder do que hoje.

Durante alguns meses, o proprietário recebeu o valor do aluguel, embora com certo atraso em relação às datas estipuladas no contrato com aquele policial.

Infelizmente, aquele homem sofreu um derrame cerebral que tirou sua vida em poucas horas, deixando sua família sem a principal fonte de renda que os sustentava até então. Como curiosidade, vale mencionar que, uma semana após seu falecimento, um comando da ETA executou em Madri um atentado com explosivos, resultando na morte do Presidente do Governo da Espanha,  Luis Carrero Blanco.

A viúva, portanto, precisava desesperadamente do dinheiro do aluguel, mas o policial parou de pagar o valor estipulado no contrato. Por esse motivo, a senhora teve uma conversa com ele, na qual ele argumentou que sua situação financeira estava complicada no momento, que havia comprado muitos veículos usados e estava sem fundos. Consequentemente, ele pagaria o aluguel quando pudesse.

A senhora respondeu que, nesse caso, ele deveria desocupar o terreno, para que ela pudesse alugá-lo a alguém que tivesse condições de pagar.

O policial respondeu que o terreno era dele e que continuaria sendo, quisesse ela ou não. Disse ainda que, para tirá-lo de lá, ela teria que gastar muito tempo e dinheiro com advogados e processos judiciais. Afirmou que era policial e que tinha muitas conexões nos tribunais.

Aquela senhora, muito abalada, contou tudo aos seus quatro filhos (três homens e uma mulher):
— O que podemos fazer, filhos? Não temos dinheiro para entrar em processos judiciais e, além disso, precisamos muito do dinheiro do aluguel. Pensem no que podemos fazer daqui para frente para resolver nossos problemas financeiros.

A filha trabalhava como secretária executiva. O filho mais velho havia concluído sua graduação naquele verão e completado seu período de estágio como oficial de complemento. Ele planejava ir trabalhar em um hotel em Londres para aprimorar seus conhecimentos da língua inglesa.

No entanto, após o falecimento do pai, sua mãe viúva pediu-lhe que não fosse para a Inglaterra, pois se sentia desamparada sem o marido. O filho mudou seus planos sem reclamar e permaneceu em Madri para apoiar a mãe.

Os outros dois filhos mais novos encontraram empregos e contribuíram com o sustento da família.

Quanto à questão do terreno, sem chamar atenção, os dois filhos mais velhos decidiram dar uma lição naquele policial abusador.
Naquela noite, por volta das 22 horas, os dois jovens, de 19 e 24 anos, escalaram o portão de caminhões do terreno e entraram, carregando martelos e facas.

Lá dentro, havia duas dúzias de automóveis — os melhores que aquele comerciante-policial tirano e ladrão possuía: Citroën Tiburón, Mercedes, Chevrolet, entre outros.

Um por um, eles quebraram faróis, lanternas e vidros. Cortaram os pneus, rasgaram os estofamentos dos bancos e encostos. Ao final, não restava um único veículo intacto.

Depois de concluírem o trabalho, pularam novamente o portão e voltaram para casa.
Três dias depois, o policial ligou para a viúva e marcou um encontro com ela para pagar sua dívida e desocupar o terreno onde guardava seus melhores veículos.

E assim aconteceu. Não precisaram contratar advogados nem se envolver em processos judiciais.

Ele deve ter percebido que, às vezes, a justiça chega por caminhos inesperados e surpreendentes.

Onde estão as chaves?

O

Pedro Rivera Jaro

Tradução para português Sílvia C.S. Preissler

Naquela manhã, o agente da polícia municipal estava dirigindo o trânsito na Rotunda de Embaixadores, quando chegou um carro muito luxuoso, conduzido por um senhor que ignorou as placas de proibição de estacionamento e estacionou bem em frente a uma cabine da Empresa Municipal de Transportes. Dentro dela, um funcionário da empresa estava de plantão para supervisionar seu pessoal.

O homem saiu do carro e entrou em um bar próximo, chamado El Portillo de Embajadores, nome dado em homenagem ao Portão da terceira muralha de Madri, ou Cerca de Felipe IV, por onde os embaixadores estrangeiros entravam na Corte de Madri para apresentar suas credenciais ao monarca da Espanha.

Passados quinze minutos, o policial se aproximou do veículo com a intenção de aplicar uma multa pela infração cometida pelo motorista. Ao chegar, percebeu que o carro estava aberto e as chaves ainda estavam na ignição.

O agente pegou as chaves e as guardou no bolso da calça. Depois, voltou ao centro da rotunda para continuar dirigindo o trânsito.

Passaram-se mais cinco minutos, e então o dono do carro saiu do bar e se dirigiu ao veículo. Abriu a porta e, de repente, notou que as chaves não estavam no lugar. Pensou que talvez estivessem em um de seus bolsos e começou a tateá-los, um por um, sem sucesso.

Diante do fracasso da busca, começou a procurar dentro do carro, entre os assentos e debaixo deles. O resultado foi exatamente o mesmo: NADA!

Em seguida, procurou ao redor do carro e debaixo dele. NADA! Mais uma vez, não obteve sucesso.

Voltou ao bar para perguntar se, por acaso, as teria esquecido lá. Mas também não estavam ali, e ninguém as havia visto em nenhum lugar.

Enquanto isso, o policial de trânsito, que observava tudo do ponto onde dirigia a circulação, aproximou-se do carro com seu bloco de multas e uma caneta na mão. Tirou as chaves do bolso e as colocou debaixo do carro, a uma distância de aproximadamente um palmo do chão.

Em seguida, dirigiu-se ao motorista e informou-o de sua intenção de multá-lo.

O homem respondeu que havia parado apenas por um minuto para dar um recado urgente a outra pessoa que o esperava no bar, mas que, ao sair, não encontrava as chaves.

Na realidade, desde que ele chegou e estacionou, já haviam se passado cerca de trinta minutos. No entanto, o policial percebeu que o homem estava muito preocupado e perguntou se ele havia procurado as chaves com atenção.

— Sim —respondeu o motorista—. Procurei por toda parte, mas não sei o que fiz com elas, nem onde as deixei.

O policial então se abaixou e disse:

— Aí estão as chaves.

Isso causou uma grande alegria no motorista, que expressou sua gratidão ao agente.

— O senhor sabe que não pode estacionar aqui e eu deveria multá-lo por não respeitar a proibição —disse o policial. Mas, se me der sua palavra de honra de que não voltará a fazer isso e levando em consideração o susto que passou, eu perdoo a infração.

O motorista deu sua palavra, e sei que cumpriu com ela durante todo o tempo em que o agente continuou prestando serviço de vigilância e controle do trânsito na Rotunda de Embaixadores.

Pessoalmente, acredito que o objetivo de corrigir foi melhor alcançado da forma como se fez neste caso do que se apenas tivesse sido aplicada uma multa ao infrator.

Memórias

M

Silvia C.S.P. Martinson

O velho caminhava pela rua como todos os dias o fazia. No entanto, nesta manhã de um céu azul e sol radiante, quando as pessoas que como ele, ali andavam também, lhe pareciam mais alegres e felizes.

Ele não havia percebido que enquanto andava as memórias de tempos idos lhe assomavam ininterruptamente. Eram lembranças de seu tempo de criança, quando inocente e feliz vivia na casa de seus pais. Casa esta que se localizava no bairro mais afastado daquela cidade.

O bonde, a condução para as pessoas que não tinham carros – e eram poucas as que os possuíam – ia até uns quilômetros antes de sua casa. O resto do caminho tinha que ser feito a pé, caminhando seja com sol, dias sombrios ou com chuva e frio.

Esta situação com o crescimento e expansão da cidade com os anos mudou.

Hoje a população ali cresceu, bem como os meios de locomoção e comunicação se tornaram acessíveis à maioria das pessoas.
Também com o progresso e isto o velho observava, vieram alguns inconvenientes, tais como: a marginalidade de pessoas e a criminalidade aumentaram, não permitindo, como antes, às pessoas andarem despreocupadamente pelas ruas.

E, assim, andando a este homem ressomaram novas lembranças como aquelas de que quando ainda era criança.

Lembrou-se da casa em que morava e que tinha um terreno que ia de uma quadra à outra, com quase 100 metros de extensão.
Terreno este donde se encontravam já adultas e grandes árvores de frutas, tais como: pereiras de diversas qualidades, caqueiros cujas frutas além de muito doces também quando seu sumo caia em uma roupa a qual se não era imediatamente lavada esta se manteria manchada por uma cor ferruginosa pelo resto de sua existência.

Havia ali, ainda, parreiras de uvas brancas, rosas e negras com as quais, no verão, sua mãe preparava sucos e saborosas sobremesas.
Mamoneiros, laranjeiras, limoeiros e vergamoteiras ali também davam seus frutos.
Recordou que as verduras e as flores mais diversas eram plantadas e cuidadas por seus pais.

Outra lembrança foi do galinheiro que havia ao fundo do quintal onde eram criadas galinhas e um galo cantador, o qual lhe despertava todas as manhãs. Dali seu pai colhia todos os dias vários ovos que eram acondicionados em uma cesta de palha na cozinha para futuro consumo.

Não havia àquela época chuveiros elétricos e a água do banho era aquecida, no frio inverno de então, em um grande fogão à lenha onde em enormes panelas e chaleira era deixada até o ponto de ebulição.

Havia em sua casa, ele lembrou-se, de grandes bacias de alumínio, onde cabiam ele e seu irmão e que serviam unicamente de banheira e que se encontravam penduradas em ganchos no banheiro da casa, que, sem dúvida, sua mãe mantinha impecavelmente sempre limpo.
A casa era simples, de madeira, todavia acolhedora. Era composta de dois quartos, uma sala de entrada, outra maior de estar, a cozinha ampla e o banheiro.

Fora da casa ainda tinha um galpão grande onde estavam guardadas uma geladeira de gelo comprado ao vendedor que ali passava semanalmente, como também o leite adquirido ao homem chamado leiteiro, que, todos os dia ia vendê-lo no portão de sua casa. Afora tudo isso havia ali guardadas as ferramentas de seu pai.

E assim caminhando lembrou ainda do vendedor de peixes que passava todos os dias, bem cedo, frente a sua casa gritando:
- Peixe Pin!!! Peixe Pintado! Bagres e Dourados! Peixe fresquinho! Comprem para comer ao domingo!!!

E com estas lembranças assomando a sua mente o velho voltou, caminhando lentamente, ao final daquela bela manhã à sua casa, pensando talvez se ao dia seguinte novas memórias lhe voltariam a acontecer, trazendo-lhe a alegria de recordar tempos e fatos tão agradáveis que lhe haviam sucedido.
Pensou ainda:
A vida é longa e inesperada, o que se passará amanhã tampouco o sabemos, portanto, vou ser feliz agora...

Laverca

L

Silvia C.S.P. Martinson

Todos os dias ela ia a sua janela e cantava uma música para ele acordar, isto pela manhã. Ao entardecer, quando a noite se aproximava fazia o mesmo, a fim de que o dormir dele fosse suave e cheio de encantamento.
 
Ela tinha belíssima voz e a cada dia trazia consigo novas maneiras e nuances em seu cantar.
 
Eles se conheciam de há muito e muito tempo.
Em verdade, por muitos anos ela inexoravelmente fazia a mesma coisa todos os dias.
 
Ele a salvara de morrer e desde então esta lhe tinha enorme carinho e profundo amor. Da mesma forma ele a queria e respeitava.
 
Assim que foram os dois crescendo, cada um a sua maneira, amadurecendo e desfrutando da vida e da beleza de viver cada dia com novas experiências.
 
Ele tornou-se um homem bonito, culto e elegante, sempre cortejado por belas mulheres.
 
Ela o observava e admirava enquanto este a acolhia e protegia sempre de todos os males.
Um dia, então, ele viajou para bem longe e ficou por um longo tempo afastado.
 
Ela, no entanto, em sua simplicidade e inocência, não deixou sequer um dia de visitar sua janela como sempre o fazia.
 
Enfim, depois de algum tempo, ele retornou e ela feliz foi cantar na janela pela manhã esperando vê-lo, como sempre ocorrera, todavia teve uma surpresa.
 
Estava ele acompanhado de uma bonita mulher que ao vê-la cantar sorriu e fechou a janela. Esta não apreciava o seu canto.
 
Ela, então, enciumada arrancou de seu corpo, com o bico, uma pena colorida que ali depositou como lembrança.
Subiu aos céus, voou ao alto, muito alto e nunca mais voltou.
 
O homem sentindo a ausência de Laverca o canto e a melodia que lhe embalava os sonhos e das tristezas do mundo as escondia, ele simplesmente, sem consolo, chorou até morrer.
 
As manhãs e as tardes ficaram silenciosas, tristes e vazias sem o belo canto de Laverca ou Cotovia.

Dá pra acreditar?

D

Alvaro de Almeida Leão

 

Decisão de um torneio estadual de futebol de campo. Time local, Tamoio Futebol Clube, jogando pelo empate contra o time visitante, Tupi Futebol Clube. Juiz e bandeirinhas contratados de fora do Estado. Casa cheia. Vinte e três mil espectadores, dos quais três mil torcedores do time visitante.

Aproximando-se o final da partida, e o jogo estando com o placar de zero a zero, é mais que normal ouvir-se da torcida local: ...Acabou!... Acabou!... É campeão!... É campeão!... É campeão!...

Aos quarenta e quatro minutos da etapa final, surge uma desgraça. E que desgraça!... O juiz marca um pênalti contra o time da casa. Faltava só o atacante passar pelo último zagueiro, quando, na pequena área, este lhe dá um chutão que o levanta com bola e tudo. Pênalti claro, legítimo. Aceitar, é que são elas. Por vezes o interesse próprio não permite o adequado uso da razão.

Poucos alegres da vida e a grande maioria pedindo pra morrer. No campo, safanões, ofensas de parte a parte, cobra o pênalti, não cobra, o empurra-empurra, o esconder da bola e jogo, que é bom, nada. Os bandeirinhas, solidários com a decisão do juiz, protegem-no. O policiamento matreiramente fazendo “vistas grossas” quando das ações de interesse do time local.

O presidente do time da casa vai até o juiz, já desabotoando acintosamente sua camisa de maneira que aparecesse o seu “trintão e oitão” de cabo prateado e o “ofende feio” aos gritos:

- Ó seu cagalhão bunda mole, quando eu morava no chiqueiro da tua cidade, a qualquer hora do dia ou da noite, era só querer e eu transava com a tua mãe.

O juiz nem tomou conhecimento. Colocação, mais ou menos idêntica, já ouvira em outras ocasiões e sabia sua intenção: causar-lhe reações que o deixariam em maus lençóis.
O delegado da cidade, já dentro do campo, vai logo avisando, melhor dizendo, coagindo:

-Ó vagabundo bagunceiro, não tinha nada que marcar pênalti faltando pouco tempo pra terminar a peleja. Te manca!... Muda tua decisão enquanto é tempo!...

-Aqui, cometeu-se pênalti, a minha obrigação é marcá-lo. Doa a quem doer.

-Conheces o ditado “quem semeia vento, colhe tempestade”? Criaste um problemão, pois que o resolvas. Sai dessa se fores bem macho.
O juiz e os auxiliares num só objetivo: cumprir, e bem, suas obrigações.

Transcorridos “longos e intermináveis” dez minutos de paralisação, o centroavante do time visitante, (seu capitão e batedor oficial de pênalti), vai até o goleiro do time local:
Pois é goleiro, se nenhuma das partes ceder, não chegaremos a lugar algum.
É, não tá fácil...
-Tenho, lá na minha cidade, logo mais, um casamento e de maneira alguma gostaria de me atrasar, pois sou o padrinho dos noivos.
-E o que tenho a ver com isso?
-Particularmente, acho... Acho não, tenho certeza de que houve rigor na marcação do pênalti. Então, gostaria de te fazer uma proposta.
-Proposta?!... Pensa bem o que vais propor. Poderás te dar mal. Muito mal mesmo!
-Calma!... Calma!... Proponho que convenças o capitão do teu time a permitir que o pênalti seja cobrado. Aí então...
-Teu time ganhará o campeonato.
-Não, não é nada disso. Aí então, eu que sou o batedor do pênalti, vou chutar pra fora, resgatando, assim, a injustiça cometida.
-Tu garantes?
Pode crer. Bem sabes que somos homens de palavra.
-Dá pra acreditar?
-Certamente. Nem fiques nervoso na hora. Vou bater a uns dois metros por cima da goleira.

O goleiro mal podia acreditar no que estava ouvindo. A situação mudou, assim como da noite para o dia. Foi falar com o capitão do seu time:
-Capitão, preciso falar contigo, algo importante. Vamos até ali, a conversa é reservada.
-“Tá”, mas que sejas breve. Preciso estar com o nosso time, levantando o seu moral.

O centroavante do outro time, que é o batedor oficial de pênalti, há poucos instantes me prometeu que se deixarmos o pênalti ser cobrado, irá chutá-lo pra fora. Ele tem um compromisso logo mais “apadrinhar” um casamento. Precisa voltar o quanto antes.
-Mas, o que é que tu achas? Sentiste firmeza?
-É um risco, é verdade, mas penso que será como ele está propondo. É pagar pra ver... Ele até ressaltou o fato de sermos homens de palavra.
-Acho que é uma... Porém, fico pensando, o pai, há pouco, foi tão veemente defendendo nossos interesses junto ao juiz. Eu contrariá-lo agora não vai ser uma boa.
-O fato de, além de capitão do nosso time, seres o filho do delegado, pesa, é verdade, porém acho que a conquista do título para o nosso time está em primeiro lugar.
-Também acho. Então, goleiro, vou falar com o juiz.
-Não seria melhor comunicar primeiro ao presidente do nosso time?
-Não. Quanto menos pessoas envolvidas, melhor.
-Bem lembrado.

O capitão do time local vai ao encontro do juiz:

-Seu juiz, eu, capitão do meu time, decido que o pênalti, que acho não ocorreu coisíssima nenhuma, seja cobrado. Erraste feio ao marcá-lo, mas, como não queres voltar atrás, paciência... Tua carreira de juiz já era. Erro técnico desse porte é inconcebível.

O presidente do time local, ao ouvir tamanho disparate, vai à loucura. Possesso parte para cima do desaforado capitão do seu time e só não foi “à via de fato” porque o seguraram.

A torcida local atônita presencia o presidente do clube pedir briga com o seu capitão.

O delegado, após refazer-se da surpresa, foi falar com o seu filho:

-Que fizeste, meu filho?!... Estás louco?!... Tens real noção da responsabilidade que estás assumindo?

-Tenho, pai. Sei o que estou fazendo. Não vai haver erro.

Os jogadores do time local, indignados com tão infame decisão. O presidente do time local, de tanta raiva, está totalmente sem ação. O delegado é a personificação do desânimo.
A torcida local, ao ver os jogadores e o juiz dirigindo-se para a goleira do seu time, sente que o pênalti vai ser batido. Era só o que faltava!... Não, essa não!...

Frente a frente, o centroavante do time visitante – ciente de seu dever – e o goleiro do time local – tranquilo, pra ele promessa é promessa –.

Finalmente, o juiz autoriza a cobrança. O centroavante enche o pé com um potente chute no canto esquerdo da goleira e, ao ver a bola estufar a rede, corre “a mil” em direção ao seu vestiário.

O goleiro do time local, sem que alguém entendesse o motivo, inicia uma perseguição ao “tratante safado” para tirar o seu couro vivo.

Ao mesmo tempo em que o presidente do time local, de revólver em punho, se põe à procura do “desgranido” capitão de seu time. Este, que não é bobo, está se mandando em direção à saída do estádio. O delegado, ao perceber o perigo de vida que ronda seu filho, o protege, interpondo-se entre os dois. Nessa hora, a figura do pai sobrepõe-se à do delegado.
Em súplica, o delegado roga ao presidente do time local:

-Homem de Deus, não atira no meu filho! Já não basta tudo de ruim que está acontecendo?
Não fosse essa heróica atitude do delegado, o “bicho iria pegar feio”.

A torcida local, que pedira pra morrer, está sendo devidamente atendida.

O time visitante, “na dele”, sem aceitar provocações, vibrara com o gol e já procedera à substituição do seu centroavante. Aguarda o reinício da partida.

O time local, sem condições de toda ordem, não retorna. Então, o juiz encerra a partida e proclama na súmula o Tupi como vencedor, pelo placar de um a zero.

À noite, a festa de “casamento”, na sede do Tupi. O centroavante goleador irradia felicidade, e bota felicidade nisso! A noiva – a fiel torcida do Tupi – e o noivo – o título de campeão do torneio – todos nós sabemos, serão felizes para sempre.

Un pardal quase humano

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Silvia Cristina Preysler.

No que conhecemos como o Corredor Verde, que era uma antiga linha de trem, existem uma série de lojas que minha esposa e eu frequentamos habitualmente para as compras diárias de alimentos. Uma delas se chama Montepinos.
 
Em um de seus dois estabelecimentos, montepinos possui um mercadinho, onde há uma peixaria, uma tabacaria, um açougue e uma quitanda.
 
No outro local, situado bem em frente, atravessando a rua, há uma cafeteria que, em parte, abriga um forno de padaria, com sua seção de pães e confeitaria.
 
Outro dia, fui à padaria comprar pão, a pedido da minha esposa e, ao abrir a porta de vidro, observei como por cima do meu ombro, entrou voando uma fêmea de pardal e pousou à minha frente, sobre a borda de uma prateleira.
 
Distingo entre fêmea e macho porque o macho carrega em suas penas o que chamamos de gravata, que é uma mancha escura na garganta e no peito; a fêmea não tem essa marca, sendo totalmente cinza, assim como no restante de suas penas.
 
Aquele animalzinho desceu ao chão e bicava migalhas de pão e restos de comida que, suponho, caíam dos lanches dos clientes da cafeteria. Tentei me aproximar dela, mas, com curtos voos e pulinhos, não me deixou.
Comprei meu pão e me aproximei da caixa, que me conhece e se chama Eva, e comentei sobre o ocorrido. Ela me respondeu que já havia notado o pássaro e que ele vinha entrando desde a época da pandemia, quando estivemos confinados em nossas casas. Sem encontrar comida na rua, o pardal entrava para buscar dentro do local. Mas o que mais chamou minha atenção foi o que Eva me contou: que, quando o passarinho tinha filhotes, entrava com eles para buscar alimento para dar-lhes de comer. Também me disse que, se conseguisse pegá-lo, o colocaria no forno, porque, logicamente, ele suja tudo com seus dejetos.
 
Pensemos que ela é responsável por limpar o local. Porém, o animalzinho é suficientemente esperto para não deixar ninguém colocá-lo nas mãos.
 
Quando terminou sua busca por alimento, esperou que alguém abrisse novamente a porta e saiu para a rua. Em minha modesta opinião, acredito que um animalzinho que demonstra tamanha inteligência para sobreviver às dificuldades da vida, mesmo não sendo humano, merece admiração e respeito.

O sul de Madrid nos anos 50

O

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Silvia Cristina Preissler

 

Naqueles anos, o que hoje é conhecido como Rua de San Fortunato era chamado de Bairro de San José e pertencia ao Distrito de Arganzuela-Villaverde. Vivíamos de maneira muito diferente da atual. Hoje, meu bairro possui metrô, várias linhas de ônibus, belos parques, ruas asfaltadas com calçadas amplas e bem cuidadas, hospital e ambulatório médico. Naquela época, a rua era de terra; quando chovia e passavam carroças ou veículos motorizados, que eram muito escassos, formavam-se grandes lamaçais que sujavam nossos calçados e roupas.

Meu avô Pedro, o senhor Gonzalo, o Tio Panta, Paco e, em geral, os antigos vizinhos da época colocaram lajes de granito, provenientes das demolições da Madrid do pós-guerra, como se fossem calçadas. Assim, podíamos andar ao menos por ali sem pisar na lama. Meu tio Faustino, que viveu lá até se casar e mudar-se para a rua Marcelo Usera, referia-se à nossa vizinhança como se fosse a Sibéria.

Também não havia iluminação pública noturna na rua, mas meu pai instalou uma lâmpada coberta, acima do batente da porta, que acendíamos toda vez que precisávamos sair à noite para fazer algum recado.

O sistema de esgoto chegou quando a fábrica de papelão, Cartonajes Font y Masach, o instalou desde a sua fábrica, perto da estrada de Andaluzia, até o deságue no rio Manzanares, que havia sido transformado em um rio morto devido aos despejos que acabaram matando os peixes que, quando crianças, pescávamos ali. As tubulações de resíduos da fábrica possuíam, a cada cinquenta metros, bocas de esgoto com tampas de concreto. Quando os canos entupiam, água azul ou vermelha emergia da boca antes do bloqueio, dependendo do que estava sendo produzido naquele dia. Essas águas coloridas tingiam toda a rua, incluindo os depósitos de entulhos localizados no caminho de Perales até o rio.

A água para consumo, higiene pessoal e lavagem de roupas era coletada em uma fonte pública. Usávamos potes e botijas de barro, baldes e bacias metálicas, até que, com a invenção dos plásticos, esses recipientes passaram a ser feitos desse material, que pesava menos e, caso encostasse em nossas pernas, não causava ferimentos.

No início dos anos 60, meu pai comprou uma mangueira de borracha que cobria a distância de cem metros entre nossa casa e a fonte pública. À noite, quando ninguém mais ia buscar água na fonte, enchíamos todos os recipientes que tínhamos nos pátios e, por vários dias, não precisávamos mais ir até lá.

Na metade dos anos 60, conseguimos conectar uma tomada de água na tubulação ampliada pelo Canal De Isabel II, e nunca mais precisávamos ir à fonte buscar água.

Além disso, para regar as plantas, usávamos a água do poço que meu avô Pedro havia cavado no pátio, ao lado do tanque onde lavávamos roupas sujas.

Falando das casas onde morávamos, eram térreas e não tinham aquecimento, como quase todas as casas têm hoje. Normalmente, havia apenas um cômodo onde toda a família passava a maior parte do tempo. Esse espaço geralmente era a cozinha, que possuía um fogareiro. Acendíamos o fogo com jornais velhos e gravetos, aos quais, após entrarem em combustão, adicionávamos algumas pás de carvão mineral ou antracito. Abríamos a entrada de ar para avivar as chamas e, quando já estavam bem fortes, quase a fechávamos por completo, economizando assim carvão. Meu pai encomendou ao serralheiro Alfredo uma proteção de malha metálica retangular com dois ganchos para fixá-la em barras embutidas na parede, prevenindo que o fogareiro caísse sobre nós.

Minha mãe deu outra utilidade àquela malha protetora: descobriu que as roupas molhadas, que não secavam durante os dias chuvosos, secavam rapidamente quando penduradas ali perto do fogareiro.

Ao nos preparar para dormir, sabendo que os lençóis estavam congelados, aquecíamos pequenas mantas de feltro branco na malha protetora e nos enrolávamos nelas antes de nos deitar. Depois, nos cobriam com outras mantas até o nariz.

Pela manhã, ao nos levantar, usávamos urinóis brancos com bordas azuis ou vermelhas, dependendo do modelo. Depois de nos limparmos, levávamos a urina ao pátio para descartá-la no esgoto e enxaguávamos os urinóis com água do poço.

A higiene pessoal era feita em uma bacia de cerâmica branca, onde usávamos água fria e sabão, esfregando nosso corpo com buchas de esparto. Quando meu pai, anos depois, instalou água corrente e construiu um banheiro completo em casa, sentimos como se tivéssemos entrado no paraíso. As crianças de hoje não sabem a sorte que têm de viver nesta época cheia de comodidades.

Outro dia, contarei como caminhávamos por ruas enlameadas até a escola, como éramos tratados pelos professores e sobre os serviços prestados diretamente em nossas casas, como pelo carteiro, os vendedores de telas, o botijeiro, o colono, o consertador de guarda-chuvas, o vendedor de mel, de melões, o afiador, entre outros.

Mas hoje o relato ficaria muito extenso. Espero que tenham gostado. Um abraço carinhoso, queridos leitores.

Pensando melhor

P

Alvaro de Almeida Leão

O Duda, goleirão titular de um time de futebol de campo, está na gaveta, isto e: comprado pelo adversário, para fazer com que seu time perca o jogo. Com essa atitude espera sanar problema financeiro, resultado da sua condição de perdulário.

Para que tudo dê certo, é só aguardar um chute em direção ao seu gol, muito bem-vindo, por sinal, e fazer de conta que tentou defender.
O jogo auspicia-se sem favorito. O time do Duda tem no seu desempenho o seu ponto alto. No time adversário, sobressai-se a dupla de ataque Cosme e Damião.

Duda programa-se para a partida de futebol. Tomar frango não está nos seus planos, de forma alguma. A fronteira entre um frango e a gaveta é muito tênue.

Começa a partida. Primeiro tempo totalmente morno. Sem chance de gol para os dois times. Paciência. Fazer o quê? Não deu, não deu.
No intervalo do jogo, o Duda está pensando: o que estará acontecendo com a dupla Cosme e Damião? São jogadores tão eficientes. Hoje não estão jogando nada.

O Damião, por sinal, é um grande amigo do Duda. Foram criados no mesmo bairro. Companheiros de jogo de bolita, de taco e de memoráveis peladas.

Segundo tempo igual ao primeiro.

Faltando dois minutos para terminar a partida surge a dupla de atacantes com sensacionais tabelinhas. Duda sentiu que chegara seu esperado momento. Só faltava passar pelo último zagueiro. Barbada dois contra um. É fazer o gol e comemorar.

Duda posiciona-se parado com os braços estendidos pro alto e o corpo curvado para a direita, sinalizando, assim, que será para aquele lado que irá se jogar.

A bola ora com um atacante, ora com outro, e o Duda, que deveria, por esse fato, gingar, acompanhando a trajetória da bola, de um lado para o outro, não o fazia.

Ao driblar o último zagueiro, Cosme dá um passe para Damião, que vem mais atrás, e este ao divisar o boqueirão do lado direito da goleira, bem a sua feição, bate com o peito do pé a bola, só que com impulsão e força maiores que as necessárias.

O Duda encena que o lance o pegou no contrapé e o levou a cair.

Embora com a direção correta, a bola, ao ganhar uma altura proporcional ao grande impulso com que foi levantada, passa a uns dois metros acima do travessão.

Duda se desespera, pede pra morrer. Brabo da vida, cobra do Damião:
- Pô, Damião, era só bater na bola com um leve toque! Como podes perder um gol desses?
- Como não perder se eu e o Cosme estamos na gaveta para não fazer gols. Essa nossa última jogada, combinamos para alegrar um pouco a nossa torcida.
- O quê?!... Também na gaveta? Não é possível. Me ferrei. Deu para a minha bolinha. Fui.
Após o jogo pensando melhor, Duda, até que achou bom, bom não, achou excelente que não tenha participado, embora não lhe faltasse vontade, da barbaridade a que se propôs.

É imprescindível não se estar sujeito a julgamentos morais por deslizes praticados.

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