Autor/aPedro Rivera Jaro

NÃO POSSO VOLTAR ATRÁS

N

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Sílvia C.S.P. Martinson

Eu tinha uma grande amiga
E ela também me tinha como amigo
Mas o que aconteceu para que eu a perdesse?
Com todo o valor que tinha sua amizade...
O que fiz de errado para perdê-la?
Não adianta eu querer mantê-la,
Nem adianta eu querer preservá-la.
Também tive um grande amor
E esse amor também me amava
Mas o que aconteceu para que eu o perdesse?
Com todo o valor que tinha esse grande amor...
O que fiz de errado para perdê-lo?
E de nada serve querer mantê-lo,
Nem adiantou nada eu tentar cuidar dele.
Se eu encontrasse meus erros do passado,
Se eu pudesse atrasar os dois relógios
Da amizade e do amor,
Voltaria àqueles momentos
Em que cometi minhas falhas
E desfaria meus erros cometidos,
Para que, uma vez corrigidos,
O tempo passasse até os dias de hoje
Sem perder nem o amor nem a amizade,
E assim continuasse aumentando minha alegria.

¡ Mundo Mundo!

¡

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Sílvia C.S.P. Martinson

Havia uma família em Las Rozas del Puerto Real que tinha um cachorro chamado Mundo.

Naqueles dias haviam realizado a matança de porcos, criados durante o ano e cevados com castanhas e bolotas, tão saborosas e que existem em seus montes.

Foram elaborados chouriços e morcelas curados nas cordas e varas que se conservavam na cozinha e consumidos durante todo ano juntamente com presuntos, paletas, lombo de toucinho, cara e orelhas e lombos curtidos igualmente.

Se utilizava para curtir estas peças além do sal, pimenta de Vera, alhos das Pedroñeras e a erva chamada orégano que se cria nas ladeiras dos montes que tem uma qualidade extraordinária e serve para a conservação das carnes.

Aconteceu que uns dias depois o pai da família enfermou e morreu repentinamente.

Naquela época se costumava velar os mortos, pelos familiares e amigos em sua própria casa, durante vinte e quatro horas, até o dia seguinte quando se procedia enterrar o cadáver.

Mundo, o cachorro, levava todo dia sem comer por conta do esquecimento de sua dona. E estando esfomeado subiu em uma mesa e alcançou uma réstia de chouriços e os levou à boca cruzando a sala do velório onde a dona da casa dando gritos lastimosos começou a dizer: “Ah! Mundo, Mundo, como os estas levando! E dos melhores!”

O cômico destas frases está em que a mulher se referia aos embutidos que havia roubado o esfaimado animal e em troca os assistentes ao velório acreditavam que a mesma se referia às pessoas que iam falecendo no correr do tempo.

Um chão chamado Tenazas

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Sílvia C.S.P. Martinson
 
A avó paterna de Estrella, minha esposa, se chamava Concepción.
 
Era filha mais velha do primeiro matrimonio do avô León , que posteriormente ficou viúvo. Veio este a casar-se em segundas núpcias com uma jovem chamada Leonor com quem teve muitos filhos.
 
O avô León estando viúvo costumava levar muitos convidados para comer em sua casa e cabia a Concepción, como filha mais velha, preparar comida ao pai e a seus convidados, o que já estava farta de fazê-lo.
 
E pensando que se fizesse mal os alimentos, os convidados deixariam de vir a sua casa e de dar-lhe trabalho. Então preparou umas batatas cozidas carregadas em pimentas que efetivamente o convidado não se atreveu a seguir comendo e tampouco voltou a sua casa.
As batatas as colocou para comer ao seu cachorro de nome
 
Tenazas, que cheio de fome se avançou ao recipiente, cheio, para comer. Dando a primeira bocada, o cão, soltou um grunhido queixoso e saiu correndo da casa e até hoje não voltou.
 
Conce, como a chamava-mos todos, era uma mulher cheia de vida e de maneiras graciosas.

O golpe das coroas

O

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson

O voo para Londres estava marcado para o dia 7 de dezembro.

No dia 4, como tinha feito tantas vezes em seus anos de estudante, Alberto estava trabalhando, ajudando Diego a colocar placas de lambril nas paredes de uma sala, no térreo de uma casa no povoado de Entrevías, na zona chamada "dos Domingueiros". O nome se devia ao fato de que seus habitantes e atuais donos tinham recebido gratuitamente, do Ministério da Habitação, o terreno onde construíram suas casas, assim como os materiais de construção necessários. No entanto, a mão de obra foi fornecida pelos próprios futuros moradores, que trabalhavam na construção aos domingos, o único dia em que podiam descansar de seus empregos.

Entre eles havia pedreiros, carpinteiros, encanadores, eletricistas, pintores, serralheiros, etc., e combinaram de se ajudar mutuamente na construção de suas respectivas casas.

Já era meio-dia quando Diego disse a Alberto que era hora de almoçar. Eles foram a um bar próximo, onde serviam comida caseira, boa e barata.

Cerca de uma hora depois, já estavam de volta ao trabalho quando a esposa de Diego chegou com um recado para Alberto: ele precisava ir ao Hospital 1º de Outubro porque seu pai havia sido internado.

Foi um grande susto para Alberto, que sabia o quão forte era seu pai. De imediato, pensou que ele tinha sofrido um acidente com seu caminhão.

Ele foi até o hospital e, ao chegar, dirigiu-se à recepção para perguntar pelo pai. Disse que achava que ele tinha sofrido um acidente com seu veículo de trabalho, mas lá foi informado de que esse não era o motivo da internação. Encaminharam-no ao andar onde seu pai estava hospitalizado para que conversasse com o médico responsável, que lhe explicaria a situação.

De fato, o médico informou que seu pai havia sofrido um derrame cerebral devido a um aneurisma congênito que se rompeu em seu cérebro, provavelmente causado por algum esforço físico intenso no trabalho.

Dias depois, ao perguntar aos vizinhos do local onde ficava a garagem do caminhão de seu pai, Alberto descobriu que, naquela manhã, bem cedo, as baterias do caminhão haviam descarregado. Como não conseguiu ligá-lo com a chave de ignição, precisou empurrá-lo com a ajuda de uma barra de aço. Muito provavelmente, esse esforço fez com que uma pequena veia em seu cérebro se rompesse, causando uma hemorragia interna que resultou em morte cerebral repentina.

No dia seguinte, ele foi mantido vivo artificialmente com ventilação mecânica até que, finalmente, foi constatado um eletroencefalograma plano. Quando a família compreendeu que não havia mais esperança, autorizou a desconexão do respirador automático, e sua morte foi oficialmente declarada. Ele tinha apenas 51 anos.

A notícia foi rapidamente comunicada a familiares e amigos. Seu pai era um homem muito querido, e, por isso, o velório e o enterro foram bastante concorridos.

Naquela época, o hospital possuía salas no subsolo especialmente preparadas para o velório dos pacientes que faleciam ali.

No meio da dor, o marido de María, prima de Alberto, sugeriu a compra de flores para o enterro e se encarregou de arrecadar o dinheiro para as coroas. Ele encomendou seis coroas de rosas vermelhas da variedade Baccara, de caule longo, em uma floricultura que conhecia. Como era pleno inverno, as flores saíram caríssimas.

Após o enterro, realizado no dia 7, Alberto decidiu não pegar seu voo e permanecer em Madri para apoiar sua mãe naquele momento de grande perda.

Dias depois, ele se encontrou com seu amigo Felipe e a namorada dele. Quando a jovem soube da morte do pai de Alberto, lembrou-se de que seus amigos, os donos da floricultura Sakuskiya, na rua Juan Bravo, haviam enviado seis coroas de rosas vermelhas de Baccara para aquele hospital na mesma época. No entanto, o pagamento dessas flores nunca foi efetuado.

No fim, Alberto descobriu que essas coroas eram as mesmas que seu parente havia se oferecido para pagar, mas o dinheiro nunca chegou ao caixa da floricultura.

Imediatamente, ele organizou uma reunião com Fernando, o marido de María, na floricultura. Todos haviam suposto que ele tinha pago pelas flores, mas logo ficou claro que Fernando era um golpista habilidoso.

Alberto pagou a coroa que ele, seus irmãos e sua mãe haviam encomendado — a mesma que Fernando, "gentilmente", lhes havia "presenteado". As demais coroas, ao que tudo indica, nunca foram pagas, apesar das reiteradas promessas de Fernando de que o faria.

Há pessoas capazes de se aproveitar dos outros em qualquer circunstância, sem sequer pestanejar.

Fernando havia deixado uma gorjeta generosa para ganhar a confiança do atendente da floricultura e conseguir que lhe vendessem as flores fiadas, prometendo pagá-las em alguns dias. Mas ele nunca cumpriu sua palavra.

Por trás de sua aparência de homem bonito e elegante, escondia-se um estelionatário acostumado a enganar aqueles que confiavam nele.

JUSTIÇA PELAS PRÓPRIAS MÃOS

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Pedro Rivera Jaro

Tradução para o português: Sílvia C.S. Preissler

Corria o ano de 1973.

Aquele homem havia trabalhado duro durante toda a sua vida, desde os cinco anos de idade, e, com o fruto do seu esforço, conseguiu comprar um terreno, que cercou devidamente e no qual instalou um grande portão para caminhões, com uma altura de três metros.
Alguns meses antes de falecer, fez algo a que sempre tinha resistido, mas que, devido às suas necessidades financeiras, não teve outra escolha: alugou aquele amplo terreno a um comerciante de veículos usados, que também era policial havia muitos anos. Devemos lembrar que, naquela época, a Espanha estava sob outro regime político, diferente do atual, em que os policiais tinham muito mais poder do que hoje.

Durante alguns meses, o proprietário recebeu o valor do aluguel, embora com certo atraso em relação às datas estipuladas no contrato com aquele policial.

Infelizmente, aquele homem sofreu um derrame cerebral que tirou sua vida em poucas horas, deixando sua família sem a principal fonte de renda que os sustentava até então. Como curiosidade, vale mencionar que, uma semana após seu falecimento, um comando da ETA executou em Madri um atentado com explosivos, resultando na morte do Presidente do Governo da Espanha,  Luis Carrero Blanco.

A viúva, portanto, precisava desesperadamente do dinheiro do aluguel, mas o policial parou de pagar o valor estipulado no contrato. Por esse motivo, a senhora teve uma conversa com ele, na qual ele argumentou que sua situação financeira estava complicada no momento, que havia comprado muitos veículos usados e estava sem fundos. Consequentemente, ele pagaria o aluguel quando pudesse.

A senhora respondeu que, nesse caso, ele deveria desocupar o terreno, para que ela pudesse alugá-lo a alguém que tivesse condições de pagar.

O policial respondeu que o terreno era dele e que continuaria sendo, quisesse ela ou não. Disse ainda que, para tirá-lo de lá, ela teria que gastar muito tempo e dinheiro com advogados e processos judiciais. Afirmou que era policial e que tinha muitas conexões nos tribunais.

Aquela senhora, muito abalada, contou tudo aos seus quatro filhos (três homens e uma mulher):
— O que podemos fazer, filhos? Não temos dinheiro para entrar em processos judiciais e, além disso, precisamos muito do dinheiro do aluguel. Pensem no que podemos fazer daqui para frente para resolver nossos problemas financeiros.

A filha trabalhava como secretária executiva. O filho mais velho havia concluído sua graduação naquele verão e completado seu período de estágio como oficial de complemento. Ele planejava ir trabalhar em um hotel em Londres para aprimorar seus conhecimentos da língua inglesa.

No entanto, após o falecimento do pai, sua mãe viúva pediu-lhe que não fosse para a Inglaterra, pois se sentia desamparada sem o marido. O filho mudou seus planos sem reclamar e permaneceu em Madri para apoiar a mãe.

Os outros dois filhos mais novos encontraram empregos e contribuíram com o sustento da família.

Quanto à questão do terreno, sem chamar atenção, os dois filhos mais velhos decidiram dar uma lição naquele policial abusador.
Naquela noite, por volta das 22 horas, os dois jovens, de 19 e 24 anos, escalaram o portão de caminhões do terreno e entraram, carregando martelos e facas.

Lá dentro, havia duas dúzias de automóveis — os melhores que aquele comerciante-policial tirano e ladrão possuía: Citroën Tiburón, Mercedes, Chevrolet, entre outros.

Um por um, eles quebraram faróis, lanternas e vidros. Cortaram os pneus, rasgaram os estofamentos dos bancos e encostos. Ao final, não restava um único veículo intacto.

Depois de concluírem o trabalho, pularam novamente o portão e voltaram para casa.
Três dias depois, o policial ligou para a viúva e marcou um encontro com ela para pagar sua dívida e desocupar o terreno onde guardava seus melhores veículos.

E assim aconteceu. Não precisaram contratar advogados nem se envolver em processos judiciais.

Ele deve ter percebido que, às vezes, a justiça chega por caminhos inesperados e surpreendentes.

Onde estão as chaves?

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Pedro Rivera Jaro

Tradução para português Sílvia C.S. Preissler

Naquela manhã, o agente da polícia municipal estava dirigindo o trânsito na Rotunda de Embaixadores, quando chegou um carro muito luxuoso, conduzido por um senhor que ignorou as placas de proibição de estacionamento e estacionou bem em frente a uma cabine da Empresa Municipal de Transportes. Dentro dela, um funcionário da empresa estava de plantão para supervisionar seu pessoal.

O homem saiu do carro e entrou em um bar próximo, chamado El Portillo de Embajadores, nome dado em homenagem ao Portão da terceira muralha de Madri, ou Cerca de Felipe IV, por onde os embaixadores estrangeiros entravam na Corte de Madri para apresentar suas credenciais ao monarca da Espanha.

Passados quinze minutos, o policial se aproximou do veículo com a intenção de aplicar uma multa pela infração cometida pelo motorista. Ao chegar, percebeu que o carro estava aberto e as chaves ainda estavam na ignição.

O agente pegou as chaves e as guardou no bolso da calça. Depois, voltou ao centro da rotunda para continuar dirigindo o trânsito.

Passaram-se mais cinco minutos, e então o dono do carro saiu do bar e se dirigiu ao veículo. Abriu a porta e, de repente, notou que as chaves não estavam no lugar. Pensou que talvez estivessem em um de seus bolsos e começou a tateá-los, um por um, sem sucesso.

Diante do fracasso da busca, começou a procurar dentro do carro, entre os assentos e debaixo deles. O resultado foi exatamente o mesmo: NADA!

Em seguida, procurou ao redor do carro e debaixo dele. NADA! Mais uma vez, não obteve sucesso.

Voltou ao bar para perguntar se, por acaso, as teria esquecido lá. Mas também não estavam ali, e ninguém as havia visto em nenhum lugar.

Enquanto isso, o policial de trânsito, que observava tudo do ponto onde dirigia a circulação, aproximou-se do carro com seu bloco de multas e uma caneta na mão. Tirou as chaves do bolso e as colocou debaixo do carro, a uma distância de aproximadamente um palmo do chão.

Em seguida, dirigiu-se ao motorista e informou-o de sua intenção de multá-lo.

O homem respondeu que havia parado apenas por um minuto para dar um recado urgente a outra pessoa que o esperava no bar, mas que, ao sair, não encontrava as chaves.

Na realidade, desde que ele chegou e estacionou, já haviam se passado cerca de trinta minutos. No entanto, o policial percebeu que o homem estava muito preocupado e perguntou se ele havia procurado as chaves com atenção.

— Sim —respondeu o motorista—. Procurei por toda parte, mas não sei o que fiz com elas, nem onde as deixei.

O policial então se abaixou e disse:

— Aí estão as chaves.

Isso causou uma grande alegria no motorista, que expressou sua gratidão ao agente.

— O senhor sabe que não pode estacionar aqui e eu deveria multá-lo por não respeitar a proibição —disse o policial. Mas, se me der sua palavra de honra de que não voltará a fazer isso e levando em consideração o susto que passou, eu perdoo a infração.

O motorista deu sua palavra, e sei que cumpriu com ela durante todo o tempo em que o agente continuou prestando serviço de vigilância e controle do trânsito na Rotunda de Embaixadores.

Pessoalmente, acredito que o objetivo de corrigir foi melhor alcançado da forma como se fez neste caso do que se apenas tivesse sido aplicada uma multa ao infrator.

Un pardal quase humano

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Silvia Cristina Preysler.

No que conhecemos como o Corredor Verde, que era uma antiga linha de trem, existem uma série de lojas que minha esposa e eu frequentamos habitualmente para as compras diárias de alimentos. Uma delas se chama Montepinos.
 
Em um de seus dois estabelecimentos, montepinos possui um mercadinho, onde há uma peixaria, uma tabacaria, um açougue e uma quitanda.
 
No outro local, situado bem em frente, atravessando a rua, há uma cafeteria que, em parte, abriga um forno de padaria, com sua seção de pães e confeitaria.
 
Outro dia, fui à padaria comprar pão, a pedido da minha esposa e, ao abrir a porta de vidro, observei como por cima do meu ombro, entrou voando uma fêmea de pardal e pousou à minha frente, sobre a borda de uma prateleira.
 
Distingo entre fêmea e macho porque o macho carrega em suas penas o que chamamos de gravata, que é uma mancha escura na garganta e no peito; a fêmea não tem essa marca, sendo totalmente cinza, assim como no restante de suas penas.
 
Aquele animalzinho desceu ao chão e bicava migalhas de pão e restos de comida que, suponho, caíam dos lanches dos clientes da cafeteria. Tentei me aproximar dela, mas, com curtos voos e pulinhos, não me deixou.
Comprei meu pão e me aproximei da caixa, que me conhece e se chama Eva, e comentei sobre o ocorrido. Ela me respondeu que já havia notado o pássaro e que ele vinha entrando desde a época da pandemia, quando estivemos confinados em nossas casas. Sem encontrar comida na rua, o pardal entrava para buscar dentro do local. Mas o que mais chamou minha atenção foi o que Eva me contou: que, quando o passarinho tinha filhotes, entrava com eles para buscar alimento para dar-lhes de comer. Também me disse que, se conseguisse pegá-lo, o colocaria no forno, porque, logicamente, ele suja tudo com seus dejetos.
 
Pensemos que ela é responsável por limpar o local. Porém, o animalzinho é suficientemente esperto para não deixar ninguém colocá-lo nas mãos.
 
Quando terminou sua busca por alimento, esperou que alguém abrisse novamente a porta e saiu para a rua. Em minha modesta opinião, acredito que um animalzinho que demonstra tamanha inteligência para sobreviver às dificuldades da vida, mesmo não sendo humano, merece admiração e respeito.

O sul de Madrid nos anos 50

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Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Silvia Cristina Preissler

 

Naqueles anos, o que hoje é conhecido como Rua de San Fortunato era chamado de Bairro de San José e pertencia ao Distrito de Arganzuela-Villaverde. Vivíamos de maneira muito diferente da atual. Hoje, meu bairro possui metrô, várias linhas de ônibus, belos parques, ruas asfaltadas com calçadas amplas e bem cuidadas, hospital e ambulatório médico. Naquela época, a rua era de terra; quando chovia e passavam carroças ou veículos motorizados, que eram muito escassos, formavam-se grandes lamaçais que sujavam nossos calçados e roupas.

Meu avô Pedro, o senhor Gonzalo, o Tio Panta, Paco e, em geral, os antigos vizinhos da época colocaram lajes de granito, provenientes das demolições da Madrid do pós-guerra, como se fossem calçadas. Assim, podíamos andar ao menos por ali sem pisar na lama. Meu tio Faustino, que viveu lá até se casar e mudar-se para a rua Marcelo Usera, referia-se à nossa vizinhança como se fosse a Sibéria.

Também não havia iluminação pública noturna na rua, mas meu pai instalou uma lâmpada coberta, acima do batente da porta, que acendíamos toda vez que precisávamos sair à noite para fazer algum recado.

O sistema de esgoto chegou quando a fábrica de papelão, Cartonajes Font y Masach, o instalou desde a sua fábrica, perto da estrada de Andaluzia, até o deságue no rio Manzanares, que havia sido transformado em um rio morto devido aos despejos que acabaram matando os peixes que, quando crianças, pescávamos ali. As tubulações de resíduos da fábrica possuíam, a cada cinquenta metros, bocas de esgoto com tampas de concreto. Quando os canos entupiam, água azul ou vermelha emergia da boca antes do bloqueio, dependendo do que estava sendo produzido naquele dia. Essas águas coloridas tingiam toda a rua, incluindo os depósitos de entulhos localizados no caminho de Perales até o rio.

A água para consumo, higiene pessoal e lavagem de roupas era coletada em uma fonte pública. Usávamos potes e botijas de barro, baldes e bacias metálicas, até que, com a invenção dos plásticos, esses recipientes passaram a ser feitos desse material, que pesava menos e, caso encostasse em nossas pernas, não causava ferimentos.

No início dos anos 60, meu pai comprou uma mangueira de borracha que cobria a distância de cem metros entre nossa casa e a fonte pública. À noite, quando ninguém mais ia buscar água na fonte, enchíamos todos os recipientes que tínhamos nos pátios e, por vários dias, não precisávamos mais ir até lá.

Na metade dos anos 60, conseguimos conectar uma tomada de água na tubulação ampliada pelo Canal De Isabel II, e nunca mais precisávamos ir à fonte buscar água.

Além disso, para regar as plantas, usávamos a água do poço que meu avô Pedro havia cavado no pátio, ao lado do tanque onde lavávamos roupas sujas.

Falando das casas onde morávamos, eram térreas e não tinham aquecimento, como quase todas as casas têm hoje. Normalmente, havia apenas um cômodo onde toda a família passava a maior parte do tempo. Esse espaço geralmente era a cozinha, que possuía um fogareiro. Acendíamos o fogo com jornais velhos e gravetos, aos quais, após entrarem em combustão, adicionávamos algumas pás de carvão mineral ou antracito. Abríamos a entrada de ar para avivar as chamas e, quando já estavam bem fortes, quase a fechávamos por completo, economizando assim carvão. Meu pai encomendou ao serralheiro Alfredo uma proteção de malha metálica retangular com dois ganchos para fixá-la em barras embutidas na parede, prevenindo que o fogareiro caísse sobre nós.

Minha mãe deu outra utilidade àquela malha protetora: descobriu que as roupas molhadas, que não secavam durante os dias chuvosos, secavam rapidamente quando penduradas ali perto do fogareiro.

Ao nos preparar para dormir, sabendo que os lençóis estavam congelados, aquecíamos pequenas mantas de feltro branco na malha protetora e nos enrolávamos nelas antes de nos deitar. Depois, nos cobriam com outras mantas até o nariz.

Pela manhã, ao nos levantar, usávamos urinóis brancos com bordas azuis ou vermelhas, dependendo do modelo. Depois de nos limparmos, levávamos a urina ao pátio para descartá-la no esgoto e enxaguávamos os urinóis com água do poço.

A higiene pessoal era feita em uma bacia de cerâmica branca, onde usávamos água fria e sabão, esfregando nosso corpo com buchas de esparto. Quando meu pai, anos depois, instalou água corrente e construiu um banheiro completo em casa, sentimos como se tivéssemos entrado no paraíso. As crianças de hoje não sabem a sorte que têm de viver nesta época cheia de comodidades.

Outro dia, contarei como caminhávamos por ruas enlameadas até a escola, como éramos tratados pelos professores e sobre os serviços prestados diretamente em nossas casas, como pelo carteiro, os vendedores de telas, o botijeiro, o colono, o consertador de guarda-chuvas, o vendedor de mel, de melões, o afiador, entre outros.

Mas hoje o relato ficaria muito extenso. Espero que tenham gostado. Um abraço carinhoso, queridos leitores.

O mercadinho do povoado de San Fermín

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Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Silvia Cristina Preissler
 
No ano de 1955, quando eu tinha 5 anos, como eu era o filho mais velho dos meus pais, minha mãe me encarregava de fazer pequenas compras de alimentos nas lojas próximas de casa, como o armazém do senhor Herrero, o açougue da Praça, a quitanda e frutaria da senhora Matilde, e a loja de miudezas da Nieves, entre outras.
 
Ela escrevia o que precisava em um pedaço de papel, e eu entregava nas lojas, onde me davam o que estava anotado. Assim foi como, desde muito pequeno, aprendi a fazer compras distinguindo a qualidade dos produtos.
 
A partir de 1961, já com 11 anos, lembro-me que pegava minha bicicleta e o cesto de compras e ia até o mercadinho de frutas e verduras, que haviam construído com paredes e telhados de madeira. Ele era formado por duas fileiras longas de barracas, uma em frente à outra, além de uma fileira mais curta na entrada principal, que fechava as fileiras mais longas. Lembro-me que, nessa fileira da entrada, ficava a loja do senhor Paco Osuna.

Minha mãe me dava 25 pesetas e dizia:
- “Filho, não tenho mais dinheiro.”
- “E o que você precisa, mamãe?”, eu perguntava.
- “Precisamos de frutas, feijão verde, batatas. O que você achar que dá.”
 
Na frutaria da senhora Matilde, que ficava ao lado de casa, um quilo de bananas custava 13 pesetas. Em comparação, no mercadinho, tudo saía bem mais barato, sem perder a qualidade. No cesto que eu prendia no suporte traseiro da bicicleta, cabia bastante peso de frutas. Eu atravessava a Colônia de San Fermín em minha bicicleta até o Povoado de mesmo nome. Chegando no Mercadinho, dava uma volta completa em seu interior, observando as mercadorias e os preços dos diversos produtos.
Na segunda volta, ia comprando nos pontos de venda o que tinha selecionado na primeira. Por exemplo:
2 quilos e meio de laranjas por 5 pesetas;
2 quilos e meio de maçãs por 5 pesetas;
2 quilos de batatas por 4 pesetas;
1 quilo de feijão verde sem fios por 3 pesetas;
1 quilo de bananas das Canárias por 8 pesetas.
Totalizavam exatamente as 25 pesetas que minha mãe havia me dado. Algumas vezes, se sobrava uma peseta, minha mãe me deixava ficar com ela.
 
Em 1964, já com 14 anos, eu sentia vergonha se as meninas da minha idade me vissem com o cesto de compras. Naquela época, era malvisto que homens fizessem compras, pois isso era considerado tarefa das mulheres. Hoje em dia, isso já não é assim, mas naquela época era. Por isso, eu pedia para minha mãe mandar minha irmã Maribel, que já tinha 12 anos. Mas minha mãe se recusava, dizendo que os vendedores enganavam minha irmã, enquanto comigo isso não acontecia, pois eu sabia muito bem o que estava comprando.
 
Sempre acreditei que ela exagerava.

Antes se chamava "a gota fria"

A

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Silvia Cristina Preissler Martinson

Já faz vários anos que escrevi algo sobre os incêndios florestais e a influência dos impedimentos ecologistas na limpeza dos montes, sua proibição de cortar espinheiros e ervas daninhas, para facilitar a reprodução de animais selvagens, como a raposa, o lobo ou o javali. O texto se chamava "Espanha em chamas".

Se algum pecuarista ou agricultor precisa podar os espinheiros, antes deve pedir uma autorização, que é concedida com a condição de que, ao realizar a poda, esteja presente um guarda dos organismos criados para a Conservação da Natureza. Como se a Natureza fosse algo inventado pelos ecologistas mais radicais, e as pessoas que durante gerações conservaram nossos montes e campos, não soubessem cuidar deles nem viver deles.

Agora, como consequência da tremenda catástrofe ocorrida há algumas semanas no Levante espanhol, com a chegada da terrível DANA (antes chamada de "Gota Fria"), que resultou na morte de centenas de pessoas inocentes, ocorre-me pensar que isso não é mais do que mais um capítulo do ecologismo radical.

Durante milhares de anos, o ser humano tentou domesticar o mundo que habitamos, na medida do possível. Construiu estradas, cultivou os campos, fez represas e açudes para conter as águas selvagens, entre outras coisas.

Mas agora parece que a humanidade estava errada, que todas as águas devem fluir selvagens pelos seus leitos, para que os peixes não encontrem barreiras no seu livre fluxo. Para isso, nos últimos anos foram demolidas centenas de obras que haviam sido construídas para domar a força bruta das águas e aproveitá-las para irrigação e geração de energia limpa.

Da mesma forma, a limpeza dos leitos fluviais foi abandonada, permitindo o crescimento descontrolado de canaviais e vegetação silvestre, que, quando chega uma enxurrada, como a última, arrasta tudo para as populações, causando as conhecidas destruições e tragédias.

Eu nasci e vivo em Madri, onde passa o rio Manzanares, o "aprendiz de rio", como o batizaram poetas e escritores, mas que, quando fica temperamental, como consequência de chuvas intensas em todas as terras altas ao longo de seu percurso, arrasta enormes volumes de água ao passar por minha cidade.

Para prevenir essas ocasiões, quando eu era criança, lá pelos anos 50, foi realizada a Canalização do Manzanares, com a construção de várias represas reguláveis, que são enchidas e esvaziadas à vontade dos responsáveis municipais pelo controle do rio.

Acontece que, há alguns anos, uma prefeita de Madri decidiu abrir as represas e permitir o crescimento da vegetação no leito. Hoje isso pode nos parecer muito bonito, porque a fauna e a vegetação fluviais são encantadoras, mas pode um dia acontecer o mesmo que ocorreu na região valenciana, e talvez tenhamos que lamentar tragédias semelhantes às de lá.
Se essas tragédias chegarem a acontecer, a quem culparíamos?

Os políticos de diferentes partidos jogariam a culpa uns nos outros, mas, no final, as vítimas, como sempre, são o povo. E como diz o antigo ditado: "Entre todos a mataram, e ela sozinha morreu".

 

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