Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

Letras

L

Silvia C.S.P. Martinson

 
Comi um pedaço de pão,
havia nele posto mel,
pensei: por que não tirar
também das palavras
todo o gosto de fel?
Adoçar assim a vida,
fazê-la dia após dia
mais alegre mais bonita,
pintada e colorida?
Então adornei as letras
juntando umas às outras,
buscando no sentido
dessa união, o motivo
de as tornar mais belas,
o amargor tirando delas
e que bailassem alegres
tão doces e felizes,
como o sabor do pão
todo coberto. E elas…
Com o cheiro de Mãe
e o mais puro gosto de
mel!

Pacha

P

Silvia C.S.P. Martinson

 
Meu tio, casado com a irmã de meu pai, era francês de nascimento, porém de família e formação alemã. Era muito culto e rico, às custas de sua inteligência e muito trabalho.
Viveu em muitos países antes e depois da 2ª guerra mundial. Casou com minha tia, irmã mais velha de meu pai e eram os únicos filhos de meus avós que nasceram no Brasil. Houveram outros mais velhos ainda, fruto do primeiro casamento de meu avô e que nasceram na Europa.
 
Vou dar a este tio, para que não seja identificado, um nome fictício, bem como a minha tia e seus dois filhos. Portanto, a partir de agora ele chamar-se-á Martin, sua mulher Ana e sus filhos André e Rosa.
 
Por certo que, com a personalidade forte e dominante de um professor, que também foi ademais de sua formação alemã, estes nomes certamente não lhe agradariam. Em sua casa, como na de meus avós, o idioma falado era somente o alemão. Meu pai escrevia e falava com perfeição este idioma, haja vista que estudara em um colégio tradicional onde além de uma excelente formação cultural, o idioma falado era o alemão.
 
Eu conheci esta escola em uma cidade que visitei e a mesma destinava-se a uma classe de pessoas mais abonadas.
 
Bem, prosseguindo com nossa história, tio Martin conduzia seus negócios e sua família com muita rigidez.
 
Tinham uma bela casa e muitíssimo conforto e modernidade para a época. Aos filhos não lhe faltava nada, inclusive belos e caros brinquedos.
 
A música era uma das prioridades da família, inclusive da minha. Os filhos estudaram e tocavam piano com maestria e a mãe era exímia em um instrumento que hoje quase poucas pessoas o conhecem, a cítara.
 
Bem continuando, voltemos a falar de Martin.
A ele encantava caçar e para tanto tinha em sua casa dois cachorros de raça, perdigueiros, os quais eram seus fiéis companheiros.
Um deles, de pelos brancos com pintas de cor marrom chamava-se Pacha. Era um cachorro muito bonito e dócil com as crianças pequenas, todavia, quando no campo, só obedecia cegamente a seu dono, fielmente cumpria com tudo a que aquele, em tom de mando, lhe ordenava. E assim se passava em todas as caçadas de tio Martin.
 
Porém um dia, tudo foi diferente. Vou lhes contar o que se passou.
 
Tio Martin com sua espingarda estava a caçar lebres no campo. Era um mato meio alto, cheio de arbustos a que não se permitia visualizar bem os entornos.
 
Porém com a precisão que lhe era peculiar, visualizou a lebre a correr entre os arbustos um pouco longe de onde se encontrava. Mirou a cabeça do animal e atirou com um único tiro de sua potente espingarda. O animal caiu entre as plantas. A seguir Martin ordenou a Pacha que fosse buscar a caça como estava este acostumado e treinado para fazer.
 
Pacha seguiu o rastro do bicho e quando chegou perto dele estancou e não o pegou na boca como sempre fazia para trazê-lo a seu dono.
 
Martin, espantado e ao mesmo tempo aborrecido, ordenou em voz alta que Pacha trouxesse a ele a caça. , Por fim o cachorro lhe obedeceu e lentamente voltou com a lebre entre os dentes.
 
Ao chegar perto de tio Martin caiu a seus pés com a caça e três picadas de cobras em seu focinho. A lebre ao ser morta havia caído sobre um ninho de jararacas e Pacha ao vê-las em princípio recuou, todavia, como era obediente e fiel a seu dono obedeceu a ordem de recolher o animal caçado. Pacha estava aos pés de Martin terrivelmente ferido e à morte.
 
Naquela época as cobras grassavam nos campos e era normal as pessoas serem picadas e morrerem por seus venenos.
 
Martin sempre que ia caçar levava entre seus pertences soro antiofídico o que já existia na época.
 
Tio Martin ao ver seu cachorro preferido naquele estado começou a chorar copiosamente. Amava aquele animal.
Mesmo desesperado aplicou o soro no cachorro, colocou-o em seu carro e voltou à cidade a toda velocidade que lhe permitiam as primitivas estradas de terra de então.
 
Pacha com os cuidados de um veterinário se salvou, não morreu, porém ficou cego até o fim de seus dias e quando pressentia a presença de seu dono, quando este chegava do trabalho à sua casa, o esperava deitado no portal abanando o rabo, ganindo e dos olhos cegos lhe caiam lágrimas.
 
E assim se passou até o final de seus dias.
 
Martin nunca mais foi caçar.

Confinada

C

Silvia C.S.P. Martinson

O prédio era alto, uns quinze andares. Moderna arquitetura. Amplas sacadas.
Portas-janelas que nas sacadas davam visão plena da rua.

Era azul e se confundia com o céu resplandecente que costuma acontece nestes pagos do Mediterrâneo, em Campello um “pueblo” de Alicante- Espanha.

Frente a ele há um grande parque arborizado e provido de muitos bancos para sentar e apreciar a placidez do ambiente.
Ali me sentava quase todos os dias para ler, pensar e observar.

Em uma manhã em que me encontrava sentada, depois de minha caminhada diária, em um banco frente a este prédio a vi...

De longe me pareceu mais ou menos jovem, cabelos castanhos, curtos, que reluziam ao sol.
Devia habitar o décimo ou décimo primeiro andar. Realmente não havia como calcular corretamente.

O que me chamou a atenção do lugar em que me encontrava na praça era que: ela entrava rapidamente por uma porta desaparecendo a seguir para sair por outra em poucos minutos depois. Isto sucessivamente, sem parar, por quase uma hora.

Voltei a caminhar pela praça nos dias seguintes como sempre fazia.

Aí, então, a curiosidade já me aguçava sobremaneira e passei diariamente, ao levantar os olhos, a observar a mesma cena. Meses a fio.

Queria saber quem era e o que fazia aquela mulher.

Dirigi-me ao prédio em que morava e falei com o porteiro que pouco soube me informar dizendo que não a conhecia e que esta nunca descia à rua.

A ele lhe parecia que era casada, todavia não tinha certeza.

O tempo passou e a cena se repetiu até que um dia não mais a vi.

Parecia-me de longe tão bonita.

Retornei ao prédio novamente e ao novo porteiro perguntei por ela.

Este era mais falador.

Contou-me então que a bela mulher vivia confinada em seu apartamento.
Que quando o marido saia trancava a porta e levava a chave com ele.

Era demasiadamente ciumento.

Um dia ao retornar a casa mais cedo encontrou em seu interior o antigo porteiro entabulando com a mulher amigável conversa.

Possuído pela desconfiança e pelo ciúme exacerbado puxou de um revólver que carregava consigo e aos dois, sem nada perguntar, matou.

Soube-se, segundo me narrava este último, que o antigo porteiro arrombara a porta, ao ouvir os gritos da mulher, para apagar um fogo que se instalara na cozinha e que logrou sucesso na empreitada.

Segundo alguns vizinhos ainda hoje se ouvem os passos da mulher a circular de um quarto a outro, sem parar, e que da praça quem olha para aquele apartamento a vê sempre da mesma forma, caminhando. Agora ao lado do antigo porteiro.

Os dois todos os dias, por uma hora, pela manhã, faça sol ou chuva, entram por uma porta e saem pela outra, caminhando, sempre caminhando...
Incrivel! Hoje pela manhã me pareceu vê-los.

 

A morte da avò

A

Silvia C.S.P. Martinson

Ela morreu.
 
Não deixou herança significativa, todavia escreveu somente uma carta a seu único e querido neto.
 
Viveu intensamente, alegremente cada dia. Com a alegria de alguém que recebe a dádiva da vida.
 
Sofria de dores como qualquer velho que, com o passar dos anos e o desgaste natural do corpo, as tinha.
 
Teve alguns amigos que também manteve até o fim de seus dias. Aqueles que se afastaram por razões da vida o fizeram sem alarde. Alguns deixaram lembranças amargas que com bom senso ela guardou bem escondido no escaninho da memória, no lugar das coisas perdidas.
 
E assim dia a dia, semana a semana, meses e anos se passaram sem que ela se desse conta da história registrada na eternidade que paulatinamente escrevia.
 
E agora chegando ao fim deixa a seu neto, para que conheça, a versão não contada de sua longa caminhada em uma carta somente a ele endereçada que começava assim:
Querido neto.
 
Amo-te acima de tudo. Fostes e és a lembrança mais querida que carrego comigo.
 
Eis que meu fim chega. Eu o sinto.
 
Fui alegre, fui feliz.
 
Amei e fui amada.
 
E agora te conto o que se passou em minha longa estrada.
 
Eu .......
 
A mão lhe tombou, a caneta escorregou, o sorriso aos poucos apagou-se em seus lábios, os braços lhe caíram ao longo do corpo, os olhos se lhe fecharam suavemente.
 
Não terminou a carta.
Imersa em seus sonhos e lembranças adormeceu para sempre.
 

O mesmo

O

Silvia C.S.P. Martinson

Mais um verão, todos diriam.
 
Assim começa a nossa história.
 
Todavia ela se passa a quase 50 anos atrás.
 
Sim era verão. Um verão como todos os outros.
Diferente então eram os caminhos e as situações que conduziam ao merecido descanso de um ano de trabalho árduo.
 
Meus pais trabalhavam muito para manter a casa que compraram com sacrifício e muita economia. Bem como, para proporcionar conforto e uma educação mais esmerada à suas duas filhas. Ou seja, minha irmã e eu.
Tínhamos uma vida modesta, porém cercadas de muita cultura.
 
A música clássica permeava nossos dias, enchendo a casa de sonoridade e beleza.
A leitura de bons livros e autores era uma constante em minha casa. Minha mãe era uma leitora insaciável.
 
Isso quando criança nos parecia um tanto aborrecido, porém com o passar dos anos vimos a entender o quanto nos ajudou, tanto em nossa vida profissional, quanto em nossas relações pessoais e interpessoais, ou seja, no convívio social.
 
E assim s passavam os dias e nós crianças fomos crescendo, aprendendo e também sendo corrigidas, às vezes severamente, quando necessário.
 
Os invernos em minha cidade, aquela época, eram rigorosos. Nos assolava o frio com fortes geadas, muita chuva e humidade.
 
Minha mãe tinha um fogão a lenha que mantinha aceso dia e noite e que nos proporcionava, feitos por ela, deliciosas comidas e calor verdadeiramente acolhedor a toda a casa.
 
Enfim, assim se passavam os dias invernais sempre na expectativa da chegada da primavera, que por consequência era o prenuncio de sempre um verão alegre e muito quente. E essa expectativa se renovava a cada ano.
 
Era a época que aguardávamos com ansiedade, isto porque, todos os anos meus pais costumavam alugar uma casa diferente sempre, na praia, em qualquer balneário onde encontrassem uma, dentro de suas possibilidades financeiras.
 
Recordo que num desses anos eles alugaram, segundo um anúncio feito no jornal domingueiro, uma casa no balneário de Cidreira no Rio Grande do Sul- Brasil.
 
Quando ali chegamos, meus pais tiveram uma enorme surpresa. A casa se localizava ao fundo de um terreno um pouco distante do mar e para maior insatisfação tratava-se de um quase galpão, ou seja, uma peça grande onde estavam todos os móveis de uma casa ali alinhados.
 
Sala, quartos e cozinha tinham uma sequência normal. O banheiro se localizava no quintal era primitivo e somente melhorou de aparência pelos trabalhos de higienização efetuados por minha mãe e meu pai. Ambos extremamente caprichosos.
 
A casa era alta do chão. Havia um enorme espaço entre o piso dela, que diga-se de passajem, era de madeira e o chão de areia do quintal.
 
Depois do almoço íamos fazer a sesta debaixo da casa. Ali meu pai colocara umas tábuas sobre as quais nos deitávamos à dormir.
 
Eu costumava ficar mirando o céu para ver nas nuvens figuras que, na minha imaginação, eu criava tais como: bichos, monstros, fadas, duendes e montanhas que faziam parte deste mundo. E com isso ao poucos adormecia devagarinho.
 
Para nós crianças foi, naquele verão, uma experiência inesquecível.
 
Até hoje recordo de tudo como se eu estivesse ali, agora, neste exato momento.

Uma manhã

U

Silvia C.S.P. Martinson

Quando as ondas se rompem na praia
e o mar ilumina meus olhos com sua majestade,
eu me sinto tão pequena ante tanta magnitude.
E por suposto a minha gratidão
é só e somente,
por tudo com que a vida me há presenteado:
por todas as coisas boas que há semeado,
pelas sementes que em minhas mãos há deixado,
por todas as alegrias que tive.
Elas com seus movimentos,
seus indos e vindos
recordam-me que sou como um barco
ao capricho do vento,
navegando através do tempo.
Debaixo do sol em calorosos dias.
Debaixo da lua em sua beleza pura.
Com força e coragem,
superando as dificuldades
nas noites mais escuras.

Sou muito más além de mim

S

Silvia C.S.P. Martinson

 
Sou muito mais, além de mim,
verdade... Eu sou assim!
Quando a luz do dia
morre e a noite enfim
vem toldar as esperanças,
eu ressurjo das cinzas
e me cubro com a alegria
de saber que sou eterna,
que estou somente passageira
nesta barca, que vagueia
por ondas necessárias, pequeninas,
desta transitória carne,
nesta inevitável vida.

Bairro

B

Silvia C.S.P. Martinson

 
Vivia, quando criança, em um bairro afastado do centro da cidade que era a capital do estado. Na verdade era a última rua habitada daquele bairro que se chamava Passo da Areia.
Levava este nome porque um pouco mais distante, em tempos muito antigos, ali passara um riacho de águas límpidas margeado por areias muito brancas, assim me contaram.
 
Sobre este riacho pairava uma lenda muito bonita que contava a história de uma índia que em disputa com outra havia perdido o amor de sua vida e por tanto chorar de tristeza, de suas lágrimas, resultou o riacho que ali existe até hoje. Porém por ser tão forte a correnteza e a cidade ter crescido tanto foi o mesmo encanado a fim de unir os bairros que se expandiram.
 
Resta desta lenda a escultura que mostra Ubirici, a índia, a chorar.
 
Diante da estátua se localizava um centro de saúde que atendia às necessidades daquela região e ao qual muitas vezes fui levada por meus pais. O bonde então aquela época tinha ali seu fim de linha.
 
A nós crianças era um prazer seguir até ali para então voltar à casa atravessando um parque arborizado que se encontrava em meio a um condomínio, se assim podemos denominá-lo, chamado de IAPI. Ali foram feitos vários edifícios para habitação e destinados aos assegurados Inativos Aposentados do Instituto de Previdência. Daí o seu nome IAPI.
 
Esta praça que é dedicada ao lazer e para a prática de esportes chama-se Alim Pedro, pelo que me recordo. É bonita, nela há um declive muito arborizado que permitia uma sombra agradável aqueles que queriam ali desfrutar de momentos de paz e tranquilidade e também uma boa visão do campo de futebol que se localizava mais abaixo e onde aos fins de semana sempre havia um campeonato ao qual os aficionados também compareciam para apreciar e torcer.
 
Em um edifício deste grande complexo nasceu Elis Regina, cantora desde criança que se apresentava nas matines aos domingos e que ficou famosa por sua voz e estilo inolvidáveis, em todo país e até no exterior.
 
Lindas músicas gravou e nos deixou até sua morte, infelizmente prematura, restando-nos uma saudade eterna de ouvi-la.
 
Na última rua da cidade de Porto Alegre – Rio Grande do Sul – Brasil eu nasci e me criei. Chamava-se Dr. Eduardo Chartier em homenagem a um grande médico de antanho.
Ali me eduquei junto a minha família a quem a música e o teatro e a educação eram cultivados com amor e respeito
 
Ali cresci tendo por hábito sonhar de olhos abertos - em uma casa com amplo pátio, muitas árvores de frutas diversas e flores abundantes cultivadas por minha mãe - pelo que muitas vezes fui chamada a atenção por ela que dizia:
- Silvia para de sonhar e estuda!
 
Tinha então razão, naquela época, por certo.
Estudei como queriam me tornei advogada, às minhas expensas trabalhando. Formei-me com distinção e exerci minha profissão com denodo e muito trabalho.
 
Todavia, continuo a sonhar, a imaginar e em mil ilusões a criar meus contos, poesias e personagens.
 
É por isto que admiro a Natureza, os homens em sua complexidade, a vida em sua total beleza.
Motivo pelo qual sempre escrevo com muita paixão. Talvez o faça até o fim, quem sabe...

O velho intolerante

O

Silvia C.S.P. Martinson

Ele foi jovem como qualquer jovem.
 
Brincou, riu, cantou, se apaixonou, desiludiu-se e voltou a apaixonar-se muitas vezes.
Foi chamado a atenção por seus pais e superiores muitas vezes. Algumas com razão, outras não.
 
Foi trabalhar muito cedo, havia necessidade. Seus pais não eram ricos. Tinha que tratar de sua subsistência e de sua família. Eram muitos irmãos.
 
Estudou, formou-se.
 
Fez um concurso público e foi trabalhar na Telefônica, galgou por competência, rigidez e esforço cargos relativamente importantes.
Por fim enamorou-se de uma colega, que lhe pareceu bonita o suficiente e com ela veio a casar-se.
 
Tiveram filhos.
 
Educou-os a sua maneira.
 
Proporcionou-lhes a escolaridade necessária a que pudessem trabalhar e progredir com menos dificuldade que ele.
 
A mulher acompanhou-o em sua caminhada, sendo-lhe companheira e ajudando-o nas lides domésticas quanto na educação dos filhos, como sói acontecer com algumas mulheres de sua terra.
 
Ao todas, porque há seu tempo às mulheres não se educavam e também não demonstravam muito ânimo de fazê-lo. Não consideravam que educação e trabalho fora de casa fossem importantes.
 
Conformavam-se em casar e exercer a função de mães, esposas, as vezes amantes e empregadas domésticas , submissas à vontade do marido, aos seus apetites e caprichos.
Deve-se isto a sua total dependência financeira.
 
Consequentemente lhes apavorava e até hoje à algumas, sair às ruas para trabalhar e serem independentes. Muitas vezes sofrendo humilhações, maus tratos e desprezo por parte dos maridos.
 
E assim a vida deste homem transcorreu com altos e baixos.
 
Envelheceu.
 
A mulher outrora bonita tornou-se gorda e desinteressante a seus olhos.
Ele por sua vez, ficou cada vez mais implicante e aborrecido.
 
Todos lhe pareciam errados, os jovens de agora os tinha como mal educados, a todos criticava, olhando somente, segundo seus conceitos, o lado negativo das pessoas.
 
Não lhe vinham à boca elogios ou palavras amáveis às outras pessoas. E se o fazia era somente com o intuito de arrebanhar adeptos para não se sentir tão isolado e só no mundo.
 
A solidão o aterrorizava.
 
Um dia um trio de jovens franceses estava na praia muito cedo. Provavelmente não haviam dormido e vieram encerrar a noitada naquele lugar aprazível.
 
Estes meninos não faziam mal a ninguém, cantavam e expandiam a sua juventude, felizes e indiferentes a quem passava.
 
Por uma mulher que lhes ouvia encantada foram solicitados a cantar o hino de sua terra.
Contentes acederam ao pedido e cantaram com respeito e dignidade, as mãos no peito, a Marselhesa.
 
Ela recordada de sua juventude na escola os acompanhou até o fim.
 
O homem aborrecido com o que via e ouvia tentou lhes criticar.
 
A mulher contestou ao implicante lhe dizendo:
- A nós os velhos, nos causam estes jovens muita inveja, porque são belos, têm saúde, vitalidade e acima de tudo lhes resta ainda o senso de liberdade que somente a inocência da juventude lhes impregna e permite.
 
Quanta inveja a nós decrépitas criaturas eles nos causam!
 
O homem calou-se e não voltou a falar.
 

Marilu

M

Silvia C.S.P. Martinson

 
Belo domingo de sol.
Vinha ela pela praça - cheia de gente, crianças a correr,alguns sentados ao sol, proseando, tomando chimarrão, confabulando, trocando beijos e juras de amor eterno – andar descontraído, de quem está acostumado a caminhar.
Vestia légs brancas e blusa azul soltinha, era do tipo baixinha, bem produzida, cabelos castanhos, profusos.
Quem a visse de longe diria tratar-se de uma jovenzinha. Não era.
Sentou-se ao meu lado no banco da praça e logo entabulou conversa:
- Tudo bem? Belo dia!
- Realmente! Bastante quente para a época!
Fiquei pensando: lá vem outra mala puxando conversa só para bisbilhotar da minha vida. Se sou casada, se tenho filhos, netos, moro aonde e até se sou mal amada... Ledo engano o meu.
Nós aqui do Sul somos muito reservados e até desconfiados com estranhos, apesar da tão propalada hospitalidade sulista. O gaúcho é um ser solitário por natureza, observador e vigilante quanto às novas amizades e às pessoas muito espontâneas.
Tipo maneiro ela, não era a jovem que pensara eu. Talvez beirava os 70 anos. Mas que setenta! Aja Deus!
E foi discorrendo com intimidade:
- Sabes, eu tenho uma filha morando lá em Natal. Sabes onde é? É casada. Filha única.
Tenho uma neta com 16 anos.
Fui recentemente morar lá, minha filha insistiu...
Fiquei uns seis meses e voltei.
Não gostei do clima, não gostei do povo. Coitados!
Aqui tenho muitas amigas com quem saio e me divirto
Sou separada...
Tive quatro maridos ou companheiros, alguns amores, não deu certo, vá lá!
Agora tenho um companheiro.
Ele não gosta de sair ou viajar que nem eu.
Nestas alturas eu já estava interessada na história dela, com a curiosidade aguçada e lhe fiz uma pergunta a fim de dar seqüência à narrativa.
- E aí como é que você faz? Perguntei!
- Ora, ele até é legal, cuida bem dos meus gatos. Tenho sete. Adoro gatos!
O coitado, o nome – o nome de dele é Airton – não quer me acompanhar nas viagens, gosta mais da casa e cuida bem dela, quando não estou cozinha, lava e passa. É um amor de criatura!
Adoro viajar!
Não me prendo a lugar nenhum por muito tempo, nem a ninguém, sou e sempre fui assim, andarilha.
Ele sabe...
Ainda bem que não fiquei em Natal pois que minha filha arranjou serviço também em São Paulo juntamente com meu genro. Eles têm uma rede de lojas que precisam administrar.
Aí eu teria que ficar lá sozinha cuidando da neta. Vê só se pode! Longe do meu apartamento!
Tenho uma bela cobertura! Dos meus gatos, de minhas amigas, do coitado do Airton!
Ainda bem que levei pouca bagagem, não fiz a mudança completa.
Indaguei:
- Mas aqui o que você faz?
- Quando estou enjoada do Airton, de casa, ligo para as minhas amigas e saímos para nos divertir.
Vamos beber, dançar, ir ao cinema, shoppings e praças. Depende do dia e da disposição.
Continuei a encorajá-la dizendo:
- Ah... A propósito nem nos apresentamos. O meu nome é Fênix e o seu?
- Marilu é como me chamam. Na realidade é Maria Luiza, mas não gosto, é complicado... Prefiro Marilu.
- Ok. Marilu. Prazer...
E ela segue:
- Olha tá vendo aquele senhor que passou? É meu conhecido. Ele está voltando. Espera...
- Oi! Tudo bom?
- Tudo bem!
Cumprimentam-se. Ele a olhou com intensidade.
- Viu! Ele faz parte da minha turma, mas contigo aqui ficou indeciso de chegar. Ele é um amor! Sozinho como eu!
Ah! Eu digo:
- E daí?
- Mas como te dizia o Airton é um pouco mais jovem do que eu, mas isso não tem importância não é?
Ela não espera resposta e segue:
- O que vale são as afinidades certo?
- Realmente Marilu!
Seus muitos colares, pulseiras, anéis e brincos cheios de pedrarias – até uma gargantilha com borboleta ela tinha – rebrilhavam ao sol da manhã enquanto se movia gesticulando as bijuterias.
Os óculos grandes de sombra lhe escondiam os olhos e parte das muitas rugas que lhe vincavam o rosto, devidamente disfarçadas por uma camada de base e pó. O sorriso era bonito, dentes bem cuidados.
Teria sido uma mulher muito atraente e bonita quando jovem.
Seu espírito era vivaz, transpirava alegria e temperamento determinado quando falava.
Eu a ouvia.
- Olha lá! Disse ela.
Lá vem o pobre do Airton
Ele chega, senta-se ao lado dela, sorri. Os dentes manchados de nicotina e falhados. A barba por fazer. Desalinhado. Mais jovem que ela, talvez uns 50 anos.
Cochicham e riem.
Ela me apresenta.
- Airton esta é Fênix!
- Prazer.
- Prazer...
Senti-me naquele instante demais ali. O universo naquele momento girava somente em torno dos dois.
Então lhes disse;
- Marilu, agora deixo vocês. Tenho um compromisso, preciso ir.
Prazer em lhes conhecer, felicidades...
- Prazer Fênix!
Deixei-os e quando me voltei não estavam mais lá. Iam ao longe, ela de calças brancas bem ajustadas, uma garota...
Ele de mãos dadas com ela, abrigo surrado, tênis cambaio.
Pareciam felizes!
Afinal ele cuidava bem dos gatos dela e isso é o que importava.
De resto...
Figura ímpar aquela Marilu.
Valeu a pena conhece-la.
O domingo estava salvo!
O sol brilhava e segui meu caminho. Quem sabe alguma nova reunião interessante surgiria, pensei, quem sabe…

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