Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

A volta

A

Silvia C.S.P. Martinson

Quando estudava à noite na Universidade para tornar-me advogada, costumava voltar à casa bem tarde pois que as classes normalmente acabavam por volta das 10,30 ou 10,40horas.
 
Como tantos alunos também retornava à casa de ônibus, pois que a Universidade se localizava a mais ou menos 30 ou 40 km em uma cidade chamada São Leopoldo que distava da capital onde eu residia.
 
Saíamos juntos e lotávamos o último ônibus que ficava a esperar-nos ao lado da Faculdade.
 
Procurávamos sentar-nos juntos no coletivo aqueles que desceriam no mesmo ponto.
 
Como precisava ainda tomar outra condução para ir a minha casa isto me obrigava a descer no centro da capital e cruzar por ruas escuras, onde as prostitutas faziam seu “metier”, até chegar ao abrigo onde se encontrava o coletivo que me levaria ao meu destino.
 
Antonio a Vera eram sempre os companheiros de viagem. Quando não era um era o outro.
Antonio estava no último ano da faculdade assim como eu, porém ele na Economia e Vera juntamente comigo na de Direito. Éramos inseparáveis.
 
Ele um moreno carioca muito bonito e simpático já era casado, recém-casado com uma garota bonita, filha de pais portugueses e vinda do norte de nosso país.
 
Vera e eu éramos solteiras, porém já compromissadas com nossos futuros maridos.
Em uma dessas noites de retorno tivemos duas experiências inesquecíveis.
 
A primeira deu-se quando Antonio e eu chegamos ao centro da cidade e, como sempre, precisamos atravessar as ruas onde se localizavam os prostíbulos.
 
Caminhávamos rapidamente evitando as “senhoritas” que ali já se encontravam quando, uma delas seminua se adiantou e me empurrou contra uma parede dizendo-me que ali eu não poderia “trabalhar”, porque estava lhe fazendo concorrência desleal. Ao que de imediato se agarrou ao braço de Antonio tentando conduzi-lo para o seu “habitat”.
Antonio que era um enorme brincalhão começou a rir em alto e bom som e com agilidade desvencilhou-se dela, pegou a minha mão com força e começou a correr fugindo dali.
 
Chegamos à parada do ônibus que me cabia esbaforidos e ao mesmo tempo em que entre risos comentávamos o ocorrido. Após o que cada um seguiu seu caminho.
 
Hoje ele vive ao norte de nosso país, está velho. Mantemos a amizade de mais de trinta anos e penso que talvez ainda recorde o que se passou naquela noite.
 
O outro fato aconteceu com Vera e eu quando retornávamos uma noite pelo mesmo caminho. Não havia outro por onde pudéssemos cruzar para ir ao nosso destino.
Vera, era muito bonita e vistosa, de um gênio forte e sem peias na língua. Quando tinha que responder mal a uma pessoa que porventura ousasse lhe agredir verbalmente, o fazia de forma muito rápida e inteligente. Era incrível a versatilidade e criatividade dela.
 
Tornou-se uma grande advogada.
Bem, sem mais delongas vamos contar o que se passou em outra noite com nós duas.
Descemos do ônibus e dirigimo-nos às malfadadas ruas.
 
Uma “senhorita” nos interpelou, interrompendo nossa caminhada, porque estávamos ali?
 
Furiosa nos ameaçou com um punhal - penso que estava drogada – dizendo que as mulheres que poderiam estar ali eram as de sua “profissão” e que, portanto, nos ia apunhalar, ao que Vera rapidamente lhe dissuadiu dizendo que ela estava enganada.
 
Disse-lhe simplesmente – Não vês querida que não somos mulheres? Somos homens disfarçados procurando outros para fazer-nos companhia...
 
A prostituta surpreendida com tal resposta guardou o punhal e pôs-se a rir desmesuradamente.
 
Saímos rapidamente daquela rua rumo às conduções que nos levariam, depois de um dia árduo de trabalho e de uma noite de dedicação aos estudos às nossas casas e ao merecido descanso.
 
Até hoje me recordo com alegria daquele tempo e das boas e tantas experiências vividas.
De Vera nunca mais tive noticias.
A cidade mudou, bem como seus hábitos e costumes.
 
Os prostíbulos cerraram suas portas, as prostitutas de então se não morreram estão velhas e desgastadas.
 
As novas prostitutas já não circulam pelas ruas somente a noite, hoje fazem-no em dia claro e se comunicam, confortavelmente, por celular onde postam suas fotos mais sedutoras pela internet em páginas em que expõem a sua “profissão”.
 
Não esquecendo que com a disseminação das drogas e o livre acesso dos traficantes a estas mulheres, a policia também se tornou mais atenta, inclusive às vezes tendo de usar mais energia do que é legalmente permitido para dispersar estes agrupamentos altamente perniciosos.

O poeta

O

Silvia C.S.P. Martinson

Era um domingo de sol intenso. O céu de um azul profundo não albergava nuvens brancas ou negras que ousassem toldar na beleza daquele momento.
 
A beira mar as pessoas caminhavam alheias ao que acontecia à sua volta e estavam imersas em seus pensamentos, ânsias, desejos ou talvez, até, frustrações.
 
E assim caminhando e pensando em como resolveria todos os problemas que tinha em sua vida, cansado, ele sentou-se na cálida areia.
 
Ali sentado permaneceu por um longo tempo relaxando o corpo, descontraindo e ao mesmo tempo usufruindo das benesses que lhe ofertavam ao físico e à visão, as ondas do mar, onde as gaivotas pousadas procuravam seu alimento, bem como, o calor reconfortante do sol que lhe banhava com sua luz, fazendo com que seu pensamento voasse a outras paragens que não às tensões do dia a dia.
 
Nestes momentos esqueceu-se da família, de seu desamor para com ele, de quanto eles o julgavam insignificante e sem valor e o tinham, junto a si, somente para que provesse às necessidades constantes de todos eles.
A indiferença de todos às suas necessidades e aos seus sentimentos lhe doíam profundamente.
 
Muitas vezes pensou em suicidar-se, porém sua educação e respeito pela vida lhe tolheram atos mais drásticos neste sentido.
 
Tão ensimesmado se encontrava na observação e contemplação deste momento junto à natureza que só agora percebeu a presença de um homem bem próximo a si. Este o observava atentamente. Trazia nas mãos um caderno e uma caneta com a qual fazia algumas anotações.
 
A curiosidade dele se apoderou e também começou a observar aquele homem.
Aquele escrevia rápido e com alguma sofreguidão.
 
A curiosidade foi mais forte que a discrição e aproveitando um intervalo de tempo em que o outro não escrevia lhe perguntou o que fazia com tanto empenho e obstinadamente.
 
O outro trazendo ao rosto um sorriso amigo lhe respondeu que era escritor, mais precisamente um poeta.
 
Luiz, pois que assim se chamava o caminhante, perguntou então ao poeta, não contendo mais sua curiosidade, se poderia ler aquilo que estava escrevendo, ao que o interpelado lhe respondeu que sim, porém que o poema ainda necessitava ser burilado e por certo ainda estava inacabado.
 
Em ato seguinte lhe estendeu o caderno onde estava escrito o mencionado poema:
EXALTAÇÃO
 
Autor:.....
Traduzido por:....
 
Mil cores a água cristalina espelha
Nas ondas a espraiarem-se.
É o Sol que nos brinda
no céu azul deste dia.
A alma alegre exulta
e na beleza intensa se extasia,
se funde em tudo e nesta magia
voa com os pássaros e em alegria
ao infinito se alça e paira...
Despede-se do que a angustia,
vibra, dança, canta e em hosanas,
agradece o pão nosso à Vida.
 
Luiz emocionado e com lágrimas nos olhos agradeceu ao estranho poeta, de quem nem o nome sabia, por lhe haver permitido ler e trazer, naquele momento, à sua vida uma nova visão.
 
O poeta lhe sorriu e lhe estendeu a mão em despedida e lhe disse que aquele poema era para ele, o caminhante, uma vez que lhe sentiu a dor ao vê-lo sentar-se ali.
Luiz levantou-se, olhou mais uma vez ao poeta, ao mar e às gaivotas que agora levantavam voo.
 
Emocionado ainda, seguiu lentamente a caminhar deixando as marcas de seus pés na areia úmida da praia.

A gaivota encantada

A

SIlvia C.S.P. Martinson 

O mar se agitava tranquilamente ao impulso de suave brisa.
 
O bando pousou nas águas verdes e transparentes com a suavidade com que sempre voava, planando no ar, girando, estendendo as asas, cerrando-as e submergindo.
 
Mergulhar depois de observar o lugar onde havia mais peixes para alimentá-los.
 
Levavam muito tempo voando juntos, um tempo que ninguém contava.
 
Todos estavam encantados, por diferentes razões, a natureza assim o determinara.
Porém entre eles, os pássaros, estava aquela que tinha mais dons, era uma velha bruxa que se havia convertido em gaivota.
 
As gaivotas a chamavam de Zaida, A Eleita.
Por fim posaram na água que estava cheia de peixes apetitosos e começaram sua tarefa de buscar alimento para suas crias.
 
No entanto Zaida, com sua poderosa visão, viu o príncipe, de sua velha recordação, caminhando na praia.
 
Havia sido encantada durante tanto tempo pelo velho feiticeiro que a desejava, e a quem ousara desprezar por amar ao príncipe.
Seu olhar seguiu então o seu antigo amor até sua casa.
 
O bando saciado empreendeu regresso ao lago, porém Zaida não os acompanhou. Seguiu o príncipe até a casa e cada manhã, para surpresa deste, ano após ano, depositava um peixe dourado em sua janela.
 
Passaram-se as estações, os dias, alheia ao bando ali permaneceu, da terra ao mar, do mar a terra.
 
Sempre pousava na mesma janela até o dia em que só ali restaram suas plumas brancas, soltas ao vento.
 
O príncipe alheio, a tudo ignorou.
 
O tempo passou e o encanto cessou.

O mar segue sendo verde e as gaivotas encantadas a ele retornam suavemente.
Dirigem seu olhar perscrutador às profundezas em busca de seus antigos amores, sempre com a esperança de que para elas o encanto se dissolva, um dia, nas verdes águas marinhas.

O gringo

O

Silvia C.S.P. Martinson

 O conheci quando era eu ainda muito jovem.
Era vizinho de meus tios e primos.
Viviam em, casas situadas uma ao lado da outra e somente separadas por uma cerca que isolava os jardins contidos em cada uma delas.
O bairro era simples porém muito habitado e bem localizado dentro da cidade então, até hoje, a capital do Estado do Rio Grande do Sul – Brasil. A cidade chamava-se e ainda se chama Porto Alegre.
 
Pois bem, nesta rua e numa destas casas nasceram meus primos Pedro e Margarida. Eram seus pais, minha tia Luiza e seu marido Oscar.
 
Pedro e Margarida, que era a menor dos dois, ali creceram, se educaram e casaram.
Já o vizinho ao lado que se chamava Genaro, de origem italiana, como bem o demonstra seu nome, era uma pessoa muito extrovertida.
 
Como todo italiano, até aonde se sabe, tinha uma voz potente e quando estava em casa de volta de seu trabalho, no verão, ficava de bermudas e uma camiseta sem mangas que mostrava toda sua enorme barriga pois que, geralmente, como todos de sua raça, gostava de comer boas e suculentas comidas.
 
Pois assim era Genaro naqueles tempos.
Ele ia ao quintal de sua casa e ali ficava, em alta voz, a cantar as músicas de que gostava em italiano.
 
A mulher de Genaro chamava-se Yolanda e como ele, também, era de origem italiana. Os dois tinham duas filhas, muito educadas que, com o passar dos anos e o estudo, se tornaram professoras, o que para a época significava, para as mulheres, quase o máximo de educação que poderiam alcançar as filhas de operários se não se tornassem dependentes de maridos e mães de família.
 
Estas senhoritas chamavam-se respectivamente Andréa e Sofia. Nasceram, cresceram e casaram-se naquela rua.
Junto com meus primos passaram toda a infância ali, brincando, brigando e discutindo, todavia apoiando-se mutuamente quando necessário.
 
E assim a vida seguiu seu ritmo normal até a adolescência e maioridade deles, quando então, cada um de acordo com sua vocação foi trabalhar.
 
Voltemos então a Genaro.
Genaro era um homem muito alegre e um grande contador de histórias e anedotas a que todos os vizinhos gostavam de ouvir e rir muito quando ele assim as narrava, o que acontecia frequentemente.
 
Outra mania que se conhecia de Genaro era de que aos domingos ele se arrumava com suas melhores roupas e ia ao Prado para apostar nos cavalos de corrida.
 
Quando perguntado aonde ia tão elegante ele, entre risos e chacotas, dizia que ia visitar sua amante favorita. E ante a sua maneira de ser todos ficavam a rir de sua forma jocosa de falar dos cavalos. Inclusive sua mulher e filhas.
E assim os anos se passaram saindo Genaro todos os domingos à tarde para ir ao Prado, sempre sozinho.
 
Acontece que por ser muito comilão e já ter uma idade mais ou menos avançada, em um fim de semana, mais precisamente em um domingo, ao final da tarde, depois de voltar do “Prado”, Genaro sofreu um infarto fulminante e morreu.
 
Minha família foi avisada e compareceu ao féretro. No dia do enterro, mais precisamente no velório, na capela, quando ali se encontrava o morto, a família e os amigos, chegou uma senhora acompanhada de três filhos a quem ninguém conhecia.
 
Ela se aproximou do caixão, chorava muito e exclamava: Genaro! Genaro! Amor de minha vida! Aqui estou com nossos filhos para dar-te a despedida! Porque te vais e deixas a mim tua Prado? Sim, tua Prado! A mulher de toda tua vida!
 
Os amigos se benzeram, o padre suspendeu as orações pelo morto, as filhas ficaram perplexas se estarrecidas.
 
A viúva Iolanda arregalou os olhos, foi ao caixão, fechou a tampa com um estrondo e caiu, ao chão, desfalecida.
 
Os amigos e a família se retiraram e somente restou ao lado do morto Genaro sua sempre e querida Prado.

O pão nosso de cada dia

O

SIlvia C.S.P. Martinson 

“Como cresce uma rosa entre paralelepípedos.
Como floresce um cacto no deserto.
Assim resiste a alegria entre explosões.
Assim triunfa a vida entre os mortos.”
 
Caminhando pela manhã, como normalmente faço, observando a Natureza e os homens e mulheres que passam, muitas vezes alheios a tanta beleza que nos envolve, fiquei a ver e a pensar...
 
O Sol brilha intensamente refletindo na água seus raios, sua luz.
 
Luz esta que nos aquece, envolve e permite que a vida se manifeste em todo seu esplendor.
As gaivotas pousadas nas águas tranquilas, buscam nelas seu sustento, não se apuram, pacificamente aguardam o que a natureza lhes possa ofertar. Após o que, alçam o voo e no céu azul perdem-se em bandos, rumo a outras paragens, talvez seus ninhos, certamente seu lar.
 
Vêm-se no horizonte os barcos que seguem seu destino e nele e desaparecem. O que carregam, o que buscam? Tampouco o sabemos.
 
Pessoas caminham pela calçada que circunda a praia.
 
Praia esta onde as ondas se derramam suavemente na placidez desta manhã, emitindo sons que nos fazem sentir como que embalados nos braços de nossas mães.
 
E as pessoas continuam andando, algumas juntas outras solitárias.
 
As observo e ouço, de algumas, suas vozes, suas conversas, suas histórias.
Falam de suas vidas, de seus anseios, de suas dores, de sua saúde e de seus amores.
 
Outras seguem solitárias em seu caminhar e me pergunto: o que estarão a pensar?
 
A algumas, ainda, as vejo e as ouço a falar mal da vida e de outras pessoas, a cuidar do que estão a conversar e alheias, sem perceberem, a intenção destas  que querem envolver-se em problemas que não lhes dizem respeito.
 
Há uma grande quantidade de gente, percebo, envolvida com seus celulares (telefones) sem prestar a mínima atenção ao que se passa ao seu derredor.
 
Veio-me à cabeça a tão famosa frase: ...”O pão nosso de cada dia ganharás com o suor de teu rosto.” 
 
Todos os homens em sua grande maioria, em que lugar da Terra que se encontrem, observam o princípio acima mencionado.
Infelizmente apesar de muitas vezes o conseguirem, os homens, por incrível, através de guerras e destruição de lares, cidades e populações, causam miséria e fome. 
 
Em realidade ainda somos muito primários no conceito do que é amar.
 
Por que não levantamos o olhar para encarar frente a frente às benesses que recebemos de poder viver, experienciar e apreciar a beleza em todas as suas formas em que nos é ofertada, em cada dia que nasce e em cada dia que anoitece, quando o céu se tolda cheio de estrelas e eventualmente a Lua se mostra em seu máximo esplendor?
 
Ou quem sabe visualizar nas tormentas, que inundam as terras ressequidas, a oportunidade de voltarem plantas a renascer e florescer em toda sua magnificência?
 
Este é o pão nosso de cada dia que recebemos e muitas vezes não vemos e não sabemos agradecer.
 
E assim caminhando lentamente e pensando volto a minha casa, ao meu lar, ao meu mundo.
 
Lentamente. Lentamente...

Fugir

F

Silvia C.S.P. Martinson

À longe vou caminhar
e ninguém me vai encontrar,
porque vou andar
por estrelas e galáxias
nos céus acima daqui.
E por lugares distantes
a alegria e a paz acharei.
A esquecer e apagar
da Terra e de meu lar,
do meu coração o farei,
de um amor desmedido
que quis ofertar,
desprezado por medo,
medo de voltar a renascer.
Vou a muito longe andar
em busca da noite, do luar,
das estrelas, que sobre a tundra
sua luz deixam, ao escurecer,
até que que um novo dia;
a termine por romper.

A avó

A

Silvia C.S.P. Martinson 

Ela estava sentada em uma cadeira de balanço e pensava em escrever e contar uma história a seus netos.

Cogitou começá-la assim: “era uma vez”...
Pegou sua caneta e um caderno onde costumava anotar seus pensamentos e começou a escrever.
Antes, porém pensou:
- Será que eles vão gostar?
Sacudiu a cabeça levemente, onde os cabelos brancos de há muito se faziam notar e um pensamento cruzou rapidamente seu cérebro como se fora um raio em dia chuvoso e lhe ocorreu:
- O que importa! O que vale é contar-lhes...
Então começou a escrever.

...Era uma vez, em uma terra distante... Nela existia um homem a que todos temiam e que não sabiam bem o por que de assim fazê-lo.
Ele era alto, loiro e forte. Vivia em uma casa simples a beira de uma estrada que se dirigia a um antigo povoado de trabalhadores rurais.

Ali já viviam poucas pessoas uma vez que as máquinas substituíram pouco a pouco o trabalho braçal e os mais jovens migraram para outras cidades onde aprenderam novas profissões e lá se estabeleceram.
Este homem, de meia idade, no entanto, ali permaneceu na casa onde havia nascido, se criado e constituído sua família.

Tinha por hábito ler muito, o que fazia amiúde, sempre que podia comprar um livro quando ia à cidade adquirir víveres ou ração para os animais que criava.

Não ia nunca à igreja local. Talvez por isso o temessem, considerando-o um herege e quem sabe até chegado aos anjos maus.
As pestes locais nunca abalaram sua casa, suas plantações ou sua criação.
Seus campos eram férteis e seus animais gozavam de bom aspecto e eram saudáveis.
Não dependia de ajuda braçal a suas lides campeiras haja vista ser extraordinariamente forte.

De sua família, mulher e filhos, contavam no povoado; que o haviam abandonado e nunca mais foram vistos.

No entanto, esta não era a verdadeira história.
A ignorância e as más línguas do povo, de ali, criaram, ao alvedrio da verdade, as mais diversas histórias, de conformidade com suas mentes distorcidas e falazes.

Uns diziam que ele matara a mulher e os filhos e os enterrara em seus campos e por isso ali a terra era tão fértil.

Outros diziam que os familiares se afogaram em um lago de água muito azul que havia nas terras dele e que nas noites, quando a lua estava cheia a se refletir, ouviam-se as vozes da mulher e dos filhos a chorar e que os mesmos, em sombras luminescentes, por ali perambulavam.

Alguns ainda sugeriram, estes mais condescendentes, que a mulher face à brutalidade dele, o abandonara fugindo com os filhos enquanto ele arava o campo.
Quanta imaginação, quanta maldade!

Na realidade a história era bem outra.
Este homem que gostava tanto de ler fora educado fora deste povoado e ali só e voltara quando adulto para cuidar de seus pais que já estavam velhinhos e não podiam mais cuidar de sua casa e de suas terras. Ali morreram e foram sepultados no cemitério da cidade vizinha, onde ele costumava comprar os livros.
De sua família ele tinha notícias sempre, porque recebia cartas dos mesmos que lhe contavam de seus progressos nos estudos, de sua vida junto a sua mãe e como estavam bem acomodados e gozavam de ótima saúde todos eles.

E isso tudo se devia a ele que abriu mão de tê-los junto a si – em um povoado de pessoas praticamente analfabetas – para enviá-los a sua casa na capital, onde poderiam usufruir de conforto e de uma boa educação.
E era para lá que se dirigia quando por alguns dias desaparecia do povoado, não sem antes deixar plenamente racionados e com água seus animais de criação.

Sempre voltava feliz e intimamente sorria ao ver os olhares desconfiados e maldosos que lhe eram dirigidos, inclusive pelo pároco local, que se diga de passagem, era um velho rabugento que ali fora esquecido pela Igreja, sem nunca ter sido reconhecido ou elevado a uma paróquia maior e mais moderna.

E assim escrevendo para seus netos a vovó foi encontrada sentada em sua cadeira de balanço, quando os mesmos chegaram da capital para visita-la, a cabeça branca recostada no espaldar, o braço caído sobre as pernas, a caneta e o caderno ao solo, completamente adormecida, não os ouviu dizerem:
- Olá vovó!

Eu sei

E

Silvia C.S.P. Martinson

Sei que lembrarás de mim,
no vento que passa,
na flor que se abre,
na primavera que chega,
na chuva que se vai.
Lembrarás eu sei,
na saudade que fica,
no verde do mar,
no profundo sentido,
da onda que se esvai,
no ciclo dos tempos
e na lágrima que cai.
Sei que lembrarás, eu sei,
em cada dia que nasce,
em cada tarde que morre,
na noite que chega silente,
como a gota,
compassada, dolente,
nas águas mansas que seguem,
na palmeira que se debruça
e na sombra dos pinheirais.
Na tristeza de mais um sonho,
teu, que na bruma se esvai.
Eu... Sei.

Um conto de inverno em Santiago de Compostela

U

Silvia C.S.P. Martinson 

O dia estava gris. Acinzentado.

No céu as nuvens corriam soltas de cor cinza quase negras, carregadas de água e prontas a despejarem-se nas calçadas.

Não havia trânsito.

Parecia que o tempo e os homens haviam parado, sumido.

Na tarde quase noite as ruas estavam desertas.

Ele caminhava só, lentamente, aspirando o ar húmido do entardecer.

Os pensamentos fluíam em seu cérebro com a lentidão de como fora sua vida e que por incrível se passara tão rapidamente ao que, tampouco, a ele, houvesse percebido.

Lutara muito, trabalhara muito, sonhara muito.

E dos sonhos? Ah! Dos sonhos seus? Pouco realizara.

Ajudara a tantos. Às suas custas outros cresceram intelectual e financeiramente. Fora professor de idiomas.

A muitos distribuiu o seu saber.

Alguns tantos o aproveitaram.

E nesta tarde gris, caminhando se perguntava: e para mim o que fiz?

Tivera amores. Tivera-os alguns. No entanto, tão fugazes e passageiros, porque aquela que havia querido junto a si  conquistara, sim, por algum tempo e agora, definitivamente a perdera.

Descobriu que ela nunca o amara. Somente o admirara por sua capacidade intelectual, porém para si ambicionava mais.

Ele queria conforto, lazer, viagens, coisas que como mero professor não lhe podia oferecer.

Tiveram filhos.

Ela os criara a seu modo e maneira de pensar. Não havia afinidade entre eles somente o interesse financeiro os movia.

Um dia ele finalmente caiu em si e se deu conta de quanto estava perdendo tempo em ser feliz face aos seus preconceitos e uma ética que a ninguém importava, muito menos à sua família.

Entendeu que o mundo, os conceitos de felicidade e responsabilidade mudam também. E que apesar de sua rigidez, acima de tudo, tinha o dever de amar a si mesmo em primeiro lugar.

Constatando tudo isso e do tempo que havia gasto em provar aos outros que era uma pessoa rígida em seus conceitos morais, entrou em profundo sentimento de perda.

Naquele dia saiu a caminhar em profunda introspecção e ao passar na frente de um bar resolveu entrar e tomar um copo de vinho para, quem sabe, aliviar a sua dor.

E assim o fez.

No entanto, os copos se sucederam um após o outro.

Embebedou-se. E semiconsciente saiu a caminhar cambaleante para sua casa. Ali chegando ninguém prestou atenção ao seu estado, somente lhes preocupou o dinheiro que havia gasto no bar.

Mesmo bêbado ele verificou com profunda tristeza a atitude de seus familiares.

No dia seguinte, já em seu estado normal tomou uma decisão. Saiu, foi ao banco, retirou todo o dinheiro da conta que tinha em conjunto com a mulher.

Voltou à casa, escreveu uma carta deixando à família seus bens materiais, pegou seu relógio que havia esquecido sobre a mesa de cabeceira, no armário do quarto tomou de uma mochila e colocou dentro dela algumas roupas necessárias ao que resolvera fazer e mais ainda todos os seus documentos.

Assim fazendo, abriu a porta da casa, saiu e fechou-a com algum estrondo.

Caminhando chegou a uma estrada onde outros caminhantes ali já se encontravam a andar, solitários como ele.

Resolveu enfim ser livre e dirigir-se ao lugar com que sempre sonhara conhecer, uma cidade aonde as pessoas costumavam ir para meditar e buscar em si mesmas a harmonia, a felicidade.

Seguiu aliviado e exultante.

A carga que carregara a tantos anos sobre os ombros definitivamente se esvaia em cada kilometro conquistado ao caminho.

Enfim era feliz.

Na casa ninguém lhe sentiu ou notou a ausência. 

Convite

C

Silvia C.S.P. Martinson 

Leva-me a caminhar pelas estradas.
Faz-me esquecer do que não quero,
daquilo que junto a mim
ainda resta e perdura,
desta solidão, toda a amargura
daquela ausência tão tua.

Quero andar junto a ti, loucuras
as minhas, querer-te tanto assim
que como o perfume do jasmim
em meu corpo, tu, ainda perduras.

E me perderei em teus braços,
em mil beijos e abraços
a noite nos verá entrelaçados
de tudo e todos esquecidos.

Deixa-me ouvir-te? Não me canso,
tua voz a mim é remanso
quando aceitas o convite feito,
embalas os meus sonhos.

E em teu peito, enfim, descanso.

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