Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

A filha do tempo

A

Silvia C.S.P. Martinson

 

Passaram-se os  fatos,  se sucediam e a vida  e , em  se lhe afloravam e depois desvaneciam.

Chorava às vezes em outras sorria.

Chegou um tempo, como sempre chega, em que amou com tal intensidade e aí, então, se deu conta do tempo que passara e que agora , tardiamente, lhe escorria pelos dedos qual areia  fina, qual água marina que nada segura ou pode deter.

Assombrada, parou.

Pensou...

O que fiz eu?

Por que tudo isso aconteceu?

E os fatos se lhe voltaram à memória . Um a um.

Voltou à infância.

Lembranças se lhe explodiam na memória.

Os brinquedos, os amigos, suas observações, divagações...

Tão pequena  e tão sonhadora...

Lembra dos pássaros que cantavam, das nuvens que corriam e das figuras que estas formavam.

Não podia dividir com ninguém, achavam-na uma boba, uma tonta.

As brincadeiras infantis se sucediam em tranquilidade junto aos irmãos e amigos em horas de alegria e descompromisso até à adolescência.

Nesta fase de transformações substituiu-se  a inocência pelo conhecimento, pelas ilusões, pelos ideais de liberdade e vontade de alçar voos mais altos.

 A poesia, a música, a arte e a política tomavam os seus dias e sempre com muita paixão por tudo em que se empenhava em fazer.

Sonhos e ilusões se sucediam com frequência e também se desvaneciam como por encanto, face às novidades que a vida apresenta.

Nesse interin teve a experiência e contato com filosofias e práticas esotéricas, de onde auferiu e instalou em seu ser o conhecimento trancedental de sua imortalidade e capacidade de exercer controle mental , através da força do pensamento, sobre a vontade e os atos de outras pessoas.

As ciências ocultas afloraram em sua vida, delinearam seus passos e atitudes.

Em certo momento deu-se conta que estava interferindo nas atitudes alheias, conduzindo as outras pessoas a fazerem, por sua indução mental, o que queria.

Já era Mestre nestas técnicas.

Não estava satisfeita consigo mesma.

Repensou, verificou seu erro em interferir no livre árbitreo dos demais.

Parou com tudo.

Liberou os outros de sua influência, porque viu o quanto era falível e imperfeita em se tratando de amor e desapego.

A conscientização do que é o verdadeiro amor falou mais alto. Só aí, então, realmente o Mestre se fez nela.

Seguiu a vida adulta como as demais pessoas, com sucessos e fracassos, casou, teve filhos e aceitando e lutando honestamente pelos seus anseios e pelo que o destino lhe reservava a cada dia.

Foi feliz, sofreu, riu, chorou, amou e foi amada.

Teve recordações de suas anteriores passagens pela Terra e entendeu o porque de sua atual existência.

E ao fim e ao cabo só então se percebeu.

Era um ser solitário na busca permanente de crescimento e evolução.

Estava preparada, agora, para uma nova passagem...

Anoitecer

A

Silvia C.S.P. Martinson

 
Na tarde cinzenta que faz agora, é quando as pessoas estão pelas ruas caminhando. Há uma luz que reflete em cada olhar. E ao ver passar tanta alegria, a tristeza se afasta.
E nos corpos, tudo se torna paz e harmonia.
Os homens se preocupam, as crianças se esquecem de brincar com seus jogos preferidos para correr pelas ruas solitárias.
 
Assim é. Assim passa.
Mais um dia na vida.
 
Como o tempo, que pelos caminhos, onde os homens nem imaginam, terminará sua vida, com tão pequenas alegrias e tão grandes preocupações sem importância; na verdade, sem aproveitar a beleza de viver todos os dias, de sorrir, de amar e de ser feliz.

O valente

O

Silvia C.S.P. Martinson

Havia um homem que conheci há muitos anos. Ele era uma pessoa alegre, inteligente, perspicaz e muito observador. Já era velho. Teve durante sua vida muitíssimas experiências.
 
Apesar da velhice ainda apresentava boa aparência o que fazia com que se tornasse, de alguma forma, atrativo às mulheres. E realmente eram elas o que mais lhe atraia e chamava à atenção.Chamava-se João.
 
Supostamente João era um nome muito comum àquela época, haja vista que o rei de então também tinha este nome, só que com uma grande diferença: o nosso João não era rei e também não pretendia sê-lo apesar de saber gerir muito bem suas economias contas. Ele vivia na Espanha.
 
João fora casado muitas vezes face a sua inevitável predileção pelas mulheres, o que fazia com que não se fixasse por muito tempo com nenhuma.
 
Pois bem, a nossa história começa com João, todavia não termina com ele.
Em uma caminhada pela manhã ele me narrou, entre rizadas, uma história, dentre as muitas que se passaram em sua vida que me pareceu hilária e que vou contar agora nestas poucas linhas.
 
João foi um alto executivo de uma empresa e como exerceu cargo de chefia tinha contato com os demais empregados. Contato este que lhe permitia, inclusive, a ouvir seus telefonemas, podemos dizer, mais íntimos.
 
Então João contou-me que um funcionário seu recebia diariamente, no escritório, ligações de sua mulher que estava em casa e a qual costumava dar-lhe ordens e também admoestá-lo por telefone. Este homem chamava-se André.
 
Quando o telefone tocava para André e ele verificava que era de sua esposa, baixava a cabeça e mantinha-se calado e com uma expressão de aquiescência. Sacudia os membros superiores como se estivesse concordando com tudo o que ela lhe dizia.
 
No escritório todos já estavam acostumados com sua maneira servil de atender às ordens de sua mulher e entre si trocavam olhares de mofa e sorrisos disfarçados.
 
No entanto ao terminar a ligação André se transformava, virava outro homem e para que todos ouvissem dizia em alto e bom som , como se ainda estivesse a falar com ela, apesar de já não haver ninguém na linha, o seguinte:
 
- Ana (Ana era o nome dela) tu sabes que quem manda em nossa casa sou eu!
Cala-te! Não me molestes ou sequer me contraries!
Mulher incomoda e imprudente!
Não vês que estou no trabalho e não posso estar à tua disposição infeliz criatura?
Quando eu chegar em casa vou te castigar como mereces!
Corto agora a ligação, tenho que trabalhar!
 
João contou-me, entre risadas, que no escritório após esta cena cômica e que se passava quase diariamente, os homens ironicamente e sarcasticamente batiam palmas a André, elogiando, entre risos, o quanto valente ele era.
 
Sim, em verdade muito valente quando o telefone já estava desligado.

Meu caminho

M

Silvia C.S.P. Martinson

 
Que estrada percorrer
me pergunto por que?
Se dúvidas eu tenho,
a qual caminho tomar?
O dia de esperanças,
de fortes lembranças me traz
dos momentos inesquecíveis,
das alegrias e horas felizes
que em caminhadas
por nós urdidas,
ao amanhecer e ao alvorecer
minha alma rejuvenescida
te esperava e aguarda esquecida
de que a noite sempre chega
e, às vezes, o escurecer
faz-nos do traçado caminho esquecer
e inevitavelmente, então, a nos perder.

Fatos

F

Silvia C.S.P. Martinson

Quando no céu de um azul intenso, nesta praça onde estou sentada agora, as nuvens brancas correm livres, todavia não espessas ao ponto de toldar a beleza deste infinito, eu me recordo de fatos que se passaram a tempo, ou ainda mais recentes e que me ocorreram chamar à atenção.
 
Um deles frente ao prédio em que moro.
Todos os dias eu via ali, caminhando com uma jovem um velho senhor. Este homem se fazia acompanhar por esta mulher que com o tempo fiquei sabendo que era sua acompanhante, uma vez que ele tinha quase 100 anos e vivia só.
 
Era só porque apesar de ser rico e morar em um prédio de luxo não tinha mais parentes vivos ou amigos de sua idade.
 
Os conheci na praça onde todos os dias ali eu caminhava para tomar sol e distrair-me um pouco.
 
Ele era essencialmente social e logo entabulava conversa. E assim o fez quando pela primeira vez deles me aproximei.
Gostava de contar de sua história, de seus trabalhos, de sua vida e de seus amores.
Tive a oportunidade, através das diversas vezes em que nos encontramos, de conhecer algumas delas.
 
Todavia o que gostava mais de enfatizar eram os amores (as mulheres) que o haviam apaixonado e fizeram com que sua hombridade, sua masculinidade, fosse reconhecida e enaltecida por elas durante sua vida.
 
E por incrível, apesar de sua idade, ele ainda por sua aparência e fluidez verbal gozava, ainda, de muito atrativo e charme.
 
Penso que em sua juventude e idade madura deve ter tido muitas aventuras, bem como haja destruído a esperança de muitas mulheres de tê-lo como somente seu.
Simplesmente era um galã incorrigível.
 
Senti sua falta na praça após algum tempo e fui me informar o que se passava com ele. Contaram-me que ao completar 100 anos, no dia de seu aniversário havia morrido.
O fez a sua maneira, suave e educada, sem molestar ninguém. Adormeceu para sempre, deixando para trás tantas histórias que eu, egoisticamente, ainda tinha esperanças de conhecê-las.
 
Outra história mais ou menos recente de que tive conhecimento foi a de um homem de nacionalidade argentina que vivia na minha cidade.
 
O que me faz pensar que às vezes a natureza masculina, em seu apelo sexual, se faz mais forte em alguns homens e em outros não, ou que estes últimos, mais hábeis, sabem disfarça-lo muito bem. Pois bem, este argentino se pensava irresistível.
 
Era um tipo baixo, gordo e feio, com traços muito fortes que lembravam os antigos habitantes das terras sul-americanas.
 
Trazia, no entanto, sempre que se aproximava de uma mulher, um grande sorriso que se lhe acompanhava sempre, uma dentição perfeita, não sei até que ponto natural.
 
Eu soube, através de conversas correntes, que em uma noite de festas na cidade ele perambulando pelas ruas viu uma mulher muito bonita que aparentemente encontrava-se sozinha.
 
Aproximou-se dela e lhe lançou seu pensado sorriso supondo que a mesma por ele se encantava. Ledo engano. Ela o ignorou. Ele não satisfeito se aproximou dela e lhe passou a mão carinhosamente pela cintura, como se fora ela sua namorada.
A mulher ante tal atitude lhe rechaçou com veemência, empurrando sua mão para longe de seu corpo. Ele não satisfeito voltou a insistir.
 
O que aconteceu em seguida foi que o marido da senhora se encontrava próximo e ao ver a atitude atrevida do argentino enraiveceu-se, sacou de um revólver que portava e a que tinha direito por ser policial, e desferiu um tiro certeiro nos órgãos genitais do atrevido.
 
Ele sobreviveu.
 
Todavia hoje circula pela cidade com seu sorriso inconfundível e trejeitos com as mãos e o corpo um tanto chamativos, a procurar agora não por mulheres e sim por homens que lhe satisfaçam os apetites uma vez que, depois do tiro, ficou definitivamente inabilitado para ter relações sexuais com mulheres.
 
Quem o conhecia antes hoje lhe tem lástima e lhe dirige algumas palavras, ou simplesmente lhe evita a presença ao cruzar pelas ruas da cidade.
 
Do marido da mulher ofendida tem-se noticia de que pela Justiça foi absolvido e vivem os dois a caminhar pelas ruas, muito felizes e tranquilos.
 

Saulo – O despacho

S

Silvia C.S.P. Martinson

 

Meu nome: Saulo Jardim.
35 anos.
Por opção: alcoólatra e: poeta.
Sou moreno, magro, alto e bonito.

Não fossem minhas roupas andrajosas, seria considerado um bom partido... uma ótima companhia para muita garota solitária.
Culto, bom de prosa e sempre bem informado, haja vista recolher das ruas, por onde vago, todos os jornais e revistas que jogam fora. As leio com sofreguidão e com elas também me cubro.
Assim eu sou.
"As estrelas são meu teto à noite. As letras: minhas cobertas".
Andando pelas ruas à noite nunca passo por postes sem luz.
Também não cruzo na frente de velas acesas e galinhas mortas nas esquinas.
Se assim acontece, dobro a esquina e me benzo em cruz.
Viciei-me no álcool e, por tanto ler e conhecer dos homens, não acato ordens de qualquer "chefete" ou de pseudo-intelectuais.
Peguei minha antiga chefe arrumando suas meias de seda, na altura da virilha, não resisti como sempre, agarrei-a à força.
Ocasionou-me o fato esta cicatriz na cabeça. Levei uma cadeirada certeira.
Minha vida anterior?

  • É melhor não falar dela agora; quem sabe se ainda escrevo um livro e conto tudo, quem sabe...
    Quando ataquei a chefinha, fui despedido. Adorava meu emprego – era jornalista – mil lágrimas chorei.
    Superei tudo, penso, atirando-me na bebida.
    Sentei-me no descaminho da vida, agarrando-me às ruas, vivendo as dores e as alegrias alheias, ensimesmado.

André, velho amigo e companheiro de trabalho de Saulo, vendo fotos antigas, mentalmente conversa consigo mesmo e com um interlocutor a quem narra parte de sua história. É como se estivessem os três, André, Saulo e o interlocutor, sem dúvida este último imaginário também.

Aquele que aparece à direita desta foto velha, quase apagada, é Saulo Jardim.
Aconteceu em um evento para jornalistas em São Paulo, no ano de 1999.
O Saulo foi meu amigo e colega.
Jovem promissor, boa verbosidade, inteligência, argúcia e capacidade crítica. Grande leitor e escritor contundente... quase genial.
Alto, moreno e bonito, destacava-se, como se vê na foto, dos demais por seu charme e bem vestir. Cabelos negros, quase sempre em elegante desalinho.
Seus olhos negros, penetrantes, encaravam profundamente seu interlocutor, quase que o hipnotizando, quando por ele era entrevistado.
Era galanteador inveterado. As mulheres não lhe resistiam.
A medalha que se lhe vê ao peito é uma das homenagens que recebeu como melhor repórter do ano por coberturas nacionais e internacionais – que fez na área política.
No centro da foto encontro-me eu, André, de estatura média, louro e meio gordinho, sempre com a máquina fotográfica pendurada ao pescoço.
Era o fotógrafo acompanhante de Saulo em suas andanças e reportagens pelo mundo, além do que, seu melhor amigo.

A solidão, meu caro Saulo, é como um copo vazio, é o champanhe não sorvido de sonhos sonhados, porque derramado em cálice alheio, é a taça, quebrada, de ilusões partidas,
é a ausência voluntária de amigos, amores, até de inimigos... é chicle, é asfalto que se gruda e não se solta do sapato, único, do desiludido,
é mancha que não sai da roupa encardida,
é como bolero ou tango sonante, penetra n’alma, não aplaca a dor, é como roupa velha, mas preferida, e a cachaça não descartada
volta e meia é sempre tomada, é sempre vestida.

Saulo, por sua vez, em seu abrigo miserável, começa a relembrar sua vida e pensa...

Esta manhã levantei-me, sacudi os papelões e trapos que me cobrem e descobri que estou farto, cansado, desta vida de andarilho mentiroso.
Aliás, estou cansado de mentir, de me enganar, a mim próprio, tentando parecer um andarilho.
Na verdade, o que sou mesmo é mendigo. Pedinte. Carente, quase demente.
Estou farto da cachaça mal servida, adquirida pelo subterfúgio, pela desculpa, da esmola solicitada para o pão.
Estou cansado de ver o mundo girar na ignorância, na má fé, na inoperância e na guerra.
Estou farto de ver drogados, bandidos e prostitutas de todos os gêneros.
Estou injuriado por morar debaixo desta ponte sobre o arroio Dilúvio, do barulho constante dos carros e ônibus, da comiseração dos passantes, da falta de um olhar amigo.
Do que fui, do que sou... em que me transformei?
Cansei de estar cansado, de não ter esperanças, de ser amaldiçoado.
Pensando bem, estou farto, esgotado, é... cansado de mim mesmo!
Há tempos tive um amor.
Engraçado lembrar-me agora...
Na verdade, não sei por que.
Ou sei?
Foi aquela garota que passou por mim e que me fez recordar...
Realmente, ela era especial e eu a amava tal qual era.
Costumava puxar a calcinha toda hora e em qualquer lugar, onde estivesse, para assentá-la melhor, entre as nádegas.
Tinha predileção especial por tanguinhas bem menores que o seu tamanho comportava.
Era gorducha, bem fornida. Ancas largas, vastos seios.
Os amigos achavam-na horrorosa.

Eu, no entanto, cada vez que ela levava a mão à bunda para arrumar a pecinha, subia as paredes excitado e a amava mais ainda.
Paixão louca pela gorducha!
Fui tão injustamente despedido, por razões sexuais. Preconceito puro.
Que mal faria adorar meias de seda?! Muito mais em pernas bonitas?
Apelo, hoje que estou no desterro, às poderosas empresas: façam cursos, contratem psicólogos, a fim de que sejam verificados os traumas de seus funcionários.
Que possam eles trabalhar livremente, com suas taras sob controle!
Que sua capacidade e produtividade não sejam avaliadas pelas suas deficiências emocionais.
"... ao final, de médico e louco, todos nós temos um pouco".

Não é consenso geral?

A cachaça, o milho e a galinha ficaram para trás, restaram no despacho. Puxou o zíper, guardou a “arma”. Emperrou... azar! Cruzou os braços. Acariciou o queixo. Virou; olhou; sorriu e se benzeu. A urina escorria na sarjeta. Molhara tudo. Saulo, em pensamento, exclama e ao mesmo tempo relembra:

- “Muna muna, animunaanimuna, ramaramaramana”. Nosso mantra, nosso código, lembras? Gritou Saulo. Incrível, eu, Saulo Jardim, escrevendo ao meu pai uma carta. Sim, ao Sr. Eduardo Jardim, meu pai. Para quem não sabe, ou melhor, para lembrar-me, é residente e domiciliado no bairro Jardim das Flores, Rua das Rosas nº 15 em Guarapari-SP. Eduardo Jardim, velho, como eu gosto de te chamar assim. Nunca o permitiste. Eis, aqui, uma das nossas grandes diferenças, entre tantas outras... a falta de intimidade. Eu queria tanto te tratar com carinho. Nunca me deixaste. Entendo, querias fazer de mim um homem sério, não um piegas chorão. Só não sabes o quanto isso me fez falta. Não fui ensinado a amar... Os amores que doei foram tão somente manifestações físicas. Nada espirituais. Fizeste de mim um egoísta, mas, mesmo assim, te perdoo. Em minha última e recente conversa com André, pude, através do ser humano que é ele, compreender-te mais. Espero termos, ainda, a oportunidade de nos encontrar para, enfim, liberarmos as emoções contidas, por tantos anos, em nossos corações. Abraço-te, respeitosamente.

Saulo continua a pensar e relembrar dos velhos tempos… É simples como eu gosto, ficar em lusco-fusco como no entardecer. A luz que penetra por entre as cortinas semicerradas faz-me muito bem. A cama em desalinho, os quadros, mal dispostos, tortos, nas paredes descascadas, gris de cor, lembra-me do meu conforto: o não fazer nada. Sinto-me bem assim, ele não é lúgubre como possa parecer, é simplesmente a essência e a representação de minha maneira de ser. Displicente mas atento. Sentado nessa poltrona cambaia leio, em meu quarto imaginário, “O Corvo” de Edgar Allan Poe; mistério, suspense, poesia pura, tal qual a vida. Eis que encerro o último capítulo, a derradeira frase, embevecido. Neste quarto, espaço só meu, inatingível aos demais, agora leio e releio algo que há muito vi escrito por Manoel de Barros: ... “Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas”. Enquanto jornalista, dentre tantas matérias que escrevi, nos mais variados lugares do mundo por onde andei, houve um incidente que me chamou sobremaneira a atenção. Incidente este que me proporcionou o prêmio de melhor jornalista do ano e a André, meu colega e amigo, o de melhor fotógrafo. Aconteceu em Porto Alegre, minha cidade natal, mais precisamente na praça conhecida por Redenção. Dei o título à matéria de: “Árvores – acidente ou negligência”. “Quando nos países considerados civilizados as árvores, que fazem parte de praças e jardins, são supervisionadas e podadas, anualmente, visando não somente o bem-estar mas, principalmente, a segurança dos transeuntes, aqui, no Brasil, especificamente na capital do Rio Grande do Sul, elas são negligenciadas. Esquecidas sim, uma vez que não são vistoriadas por órgão competente”. Evidenciei em meu artigo o absurdo de considerar-se acidente a morte de uma pessoa e as lesões graves causadas em outras pela queda de uma árvore. Fato devidamente narrado por mim e fotografado magistralmente por André. Até hoje lembro com saudade dos bons tempos de reportagem. Ah! Que saudade… suspira Saulo.

- Saulo, um sanduíche? Pergunta André.
- Aceito. André?! Diz Saulo. Reconheceste-me! Como? Indica Saulo.
- Pelo olhar... minto. Assevera André. Há tempos te observo.
- De onde? Pergunta Saulo.
- Recolhendo as revistas que lês. Responde André.
- Novamente. De onde? Saulo repete.
- Do meu lixo. Responde André. Moro perto. Av. João Pessoa. É só cruzar o Arroio Dilúvio.
- Ah! Suspira Saulo.
- Vamos voltar? Saulo? Estás pronto? Pergunta André. Há vagas, novamente...
- Serei capaz? Interroga Saulo.
- Sem pinga, evidentemente. Responde André.
- Já deixei. E a chefa? Pergunta de novo Saulo-- Foi-se. Ama são paulo… responde André.

O trânsito estava caótico naquele momento. Aí se ouve o som das buzinas, do choque, dos vidros quebrados e das latas retorcidas. ... Formou-se o caos. Os amigos dirigiram-se à esquina. Perigo! o sinal acusava: vermelho.

As velas negras e roxas ainda ardiam por sobre o milho, o sangue da cabeça, decepada, do galo e de um papel escrito em letras garrafais: nunca mais.

Saulo pensa: “A gorda amada não mais verei, o câncer a levou só me resta arriscar. daqui eu parto e entrego minha sina”... dará tempo?

O sinal abre, ele corre, desvia-se dos veículos ao mesmo tempo em que sonha com novas reportagens. o som da travada é estridente, horripilante. na calçada em frente, no entanto, ele pula e grita loucamente

- consegui! consegui! consegui!

Moral da história:

É preciso saber-se a hora de cambiar e querê-lo.

A cadeira vazia

A

Sílvia C.S.P. Martinson

Um amigo me disse que é histórico que os reis da antiguidade se sentavam em uma cadeira, semi aberta em seu assento, para ali fazer suas necessidades fisiológicas ao mesmo tempo em que recebiam seus convidados e embaixadores para conversar.

Estranho, prepotente e imagino estranhamente desagradável aos visitantes o cheiro daquele ambiente.

E me detive, não sei por que, a pensar em tal assunto.

Às vezes um fato nos leva a pensar ou recordar coisas que há muito tempo já se passaram.
Estranho...

Ao pensar nisto recordei-me de uma história que há muito tempo me foi contada.
Dentro do que recordo, agora, passarei a narrar para vós outros...

Ele, tampouco importa seu nome, gostava de viajar e das mulheres também. As teve e muitas por um bom tempo (as mulheres).

Todavia, até então, não havia se prendido com amor a nenhuma delas.

Todas simplesmente satisfaziam seus instintos e enalteciam sua libido.

De nenhuma havia se apaixonado ou deixado de satisfazer seu espírito aventureiro, ou seja, viajar pelo mundo a conhecer novos lugares, apreciar novas paisagens e culturas.

Eis que um dia ao retornar à sua casa, caminhando por uma rua, onde se encontravam muitos turistas em visita, ha viu. Algo inesperado aconteceu. Seus olhares se cruzaram e um magnetismo inexplicável os atraiu.

Ambos pararam em sua caminhada e momentaneamente se esqueceram do que estavam propostos a fazer.

Olharam-se, sorriram um para o outro – como se já se conhecessem há milênios – e cumprimentaram-se, o que deu vaza a que entabulassem uma conversa.

Notara, pelos assuntos que entabularam que tinham muitas ideias e pareceres em comum.
Este encontro, pela vontade de ambos, ensejou novos que foram se sucedendo ao longo do tempo.

Foram viver juntos assim o decidiram.

Intensamente ela o amou.

Criou, ela, um ambiente seguro e agradável onde, ele gozava de toda sua liberdade. Não havia queixas entre os dois.

Foram criativos na convivência do dia-a-dia e também no amor.

Um dia ela foi a uma loja de móveis usados que lhe chamara a atenção e ali comprou uma cadeira de madeira. Esta era velha, porém bem conservada e especialmente cômoda.

Levou-a para casa e a instalou na sala de estar.
Quando ele chegou da rua ela lhe apresentou a compra dizendo que ali, quando ele não estivesse, o esperaria sempre com alegria e na esperança de que chegasse bem, fosse em que tempo fosse.

A vontade de viajar e correr o mundo voltou insistentemente aos pensamentos dele.

Enfim teve coragem de dizer a ela e de executar os seus planos que era viajar sozinho.

Quando soube de tudo ao ouvi-lo, ela simplesmente baixou os olhos e tristemente sorriu e lhe disse que na cadeira que estava ali o esperaria como sempre.

Os anos passaram, ele não tinha o hábito de escrever ou mandar notícias de qualquer forma.

Um dia, já velho, cansou. Sentiu a falta dela, de seu lar, de seu amor, de sua vida anterior. Resolveu voltar.

Chegou à sua cidade e para sua casa se dirigiu, contente e feliz por ali se encontrar.

Entrou na casa e encontrou tudo como havia deixado, porém com um detalhe, estava o ambiente coberto de poeira que, se notava, ali se encontrava depositada há muito tempo.
A cadeira estava em seu lugar como se estivesse à sua espera.

No silêncio que se fazia ali, somente ela o esperava, todavia agora, totalmente vazia.

Lembrei-me da história da cadeira dos reis e pensei que às vezes as visitas ou os embaixadores nunca chegam e os monarcas e sua soberba ficam sós, abandonados e esquecidos.

Bons tempos

B

Silvia C.S.P. Martinson


Não vivo a relembrar o passado como se fosse o melhor tempo de minha existência.
Mas às vezes algumas lembranças voltam à mente e me fazem sorrir ao recordar.
Penso que vivemos agora uma nova e maravilhosa vida em relação a conforto e tecnologia nunca imaginada por nossos pais, especialmente para as mulheres de então.
Infelizmente em face de tantos outros fatores uma grande maioria das pessoas, no mundo, passa fome e não têm nem suas necessidades básicas, como seres humanos, atendidas e supridas.

Mas, abstraindo-me de tudo isto vou narrar um pequeno fato que ficou marcado em minha memória e que faz juz ao título desta narrativa.
Éramos crianças.

Minha mãe trabalhava em casa muitíssimo. Era modista conhecida e reconhecida por seu trabalho impecável. Tinha excelente clientela.
Nossa casa era grande e confortável para a época e à classe social a qual pertencíamos, graças ao trabalho de meus pais. Não éramos ricos, porém não nos faltava comida à mesa, roupas e calçados modestos sempre limpos e principalmente acesso à educação e ao estudo.
Deixando as divagações de lado vou, enfim contar o que se passou.

Minha mãe trabalhava em suas costuras e nós estávamos no pátio a brincar. Era verão.

Naquela época não se tinha o hábito de trancar as portas da casa que davam para a rua. As pessoas eram respeitosas.

Brincávamos distraídas por quase toda manhã e quando voltamos para dentro de casa para almoçar minha mãe mandou que lavássemos as mãos para comer.

A sala de estar da casa era contígua a de jantar e a cozinha e nela havia duas poltronas e um sofá grande e confortável. Assim que nos sentamos para comer olhamos, não sei por que, para a sala de estar.

E para surpresa nossa havia uma pessoa – de onde podíamos divisar – simplesmente deitada no grande sofá da sala de estar. Era um homem.

Aos gritos chamamos nossa mãe que acorreu pressurosa para ver o que estava acontecendo, quando também se deparou com aquele estranho em nossa casa.

Ela então se aproximou do sofá e viu que a criatura dormia e também cheirava a aguardente. Ela era valente Sacudiu o homem com cuidado e o acordou lhe perguntando o que fazia ali.

Ele balbuciou, semiembriagado, que estava cansado, com fome e que a porta da casa estava aberta e por isso havia entrado. Disse que estava desempregado e com muita fome.
Minha mãe lhe disse que não poderia entrar nas casas assim.

Nós crianças estávamos com medo, porém mamãe além de valente era uma mulher caridosa e se apiedou do pobre miserável. Disse que lhe daria comida. E assim o fez.

Preparou um bom prato de feijão com arroz, carne e uma salada que serviu à parte. Mandou-o sentar a mesa e o serviu. Lembro bem...

O pobre homem esfaimado comeu avidamente e após foi sentar-se no sofá novamente. Mamãe então com toda paciência e por que não dizer prudência, lhe falou que ali não poderia permanecer haja vista que seu marido estava por retornar do serviço e certamente não gostaria dessa situação.

Ele compreendeu, se levantou e ajudado por minha mãe, pois que se encontrava ainda trôpego pela bebida, foi conduzido até a rua.
Seguiu seu caminho. Nunca mais o vimos.
Após o que a porta que dava para o jardim e conduzia à rua foi fechada naquele dia com a chave.

Desde então se criou o hábito de manter a porta fechada sempre.

Bons tempos aqueles em que tínhamos paz, não havia trancas tampouco telefones para chamar a polícia. No entanto as pessoas não eram agressivas e a maldade não estava tão disseminada, pelo menos na minha cidade.
Bons tempos aqueles...

O tumulo

O

Silvia C.S.P. Martinson

Fui visitar aquele túmulo quando estive em Gaurama antiga província de Erechim no estado do Rio Grande do Sul-Brasil.
 
Era simples, porém bem conservado. Estava situado bem no início do cemitério e se compunha de um cercado de ferro torneado e uma cruz aonde estavam escritos em uma placa de metal os nomes das pessoas ali enterradas.
 
Não havia lápide o tumulo, era de terra que todavia estava coberta por flores do campo de várias cores e uma roseira com rosas vermelhas. Ali havia paz e solidão ao mesmo tempo.
 
A impressão que dava o local é que ali há muito tempo não chegava ninguém. Então naquele momento voltou-me à memória as histórias que eu havia ouvido tantas vezes quando era criança.
 
Ali estavam, enterrados, um casal. Ouvira-lhes contar, de outrem, sua história.
Ele era, segundo me disseram, russo. Era engenheiro agrícola. Penso que por seu sobrenome tratava-se de um judeu, pois que este nome não se parecia ao idioma russo.
Chamava-se Carlos, Carlos Martinson.
 
Trabalhava no palácio do Czar como engenheiro chefe, encarregado de administrar os jardins e plantações do mesmo. Foi-me contado que este Czar era louco e que em pleno inverno, onde tudo se quedava coberto de gelo, ele, exigia que os jardins estivessem cobertos de flores quando ali passasse de carruagem. Seu nome Nicolau II.
 
Carlos devido à sua habilidade e conhecimento agrícola criava roseiras em estufas e tinha então, para satisfazer àquele déspota, rosas que eram colocadas nos canteiros aguardando a passagem do todo poderoso Czar e que ao fim desta, eram retiradas já mortas e ressequidas pelo frio.
 
Carlos era casado. Sua esposa era procedente da Lituania, filha de uma família de origem da nobreza e cujo nome era Von Rohnes ou Rhouness. Seu nome, Cristina. Nesta família, como em toda sua descendência, a filha primogênita leva o nome de Cristina, seja como primeiro ou segundo apelido.
 
Ela era enfermeira alto padrão, ou seja, especialmente qualificada para fazer parte, inclusive, de cirurgias. Era uma mulher muito culta, habilidosa e elegante. Sabia inclusive fazer perfumes.
 
Bem, continuemos com a história dos dois.
 
Conheceram-se, em algum ponto da Europa, não sabemos aonde. Casaram-se e foram morar em São Petersburgo, localizada esta cidade no mar Báltico, um porto que foi por dois séculos a capital imperial da Russia e onde Carlos exercia suas funções no palácio do Czar.
 
De sua união resultaram 10 filhos.
 
O povo estava faminto e descontente com o Czar por sua gestão desastrosa na condução da vida de seu povo, que se encontrava na miséria enquanto ele, sua família e seus súditos mais chegados viviam no maior luxo e opulência.
A revolução comunista e o descontentamento geral se fazia já sentir pelas ruas da cidade.
 
Carlos tinha um irmão que era comunista. Este lhe alertou do que iria acontecer à família real e a todos que lhe estivessem ao derredor, inclusive serviçais. Todos seriam mortos, presos e fuzilados de preferência a fim de que o novo sistema governamental se implantasse sem maiores resistências.
 
Ante tal conhecimento Carlos habilmente deixou o palácio com sua família. Atravessou a Europa e após algum tempo embarcou em um navio rumo às Américas. Seu irmão fez o mesmo, porém por outro caminho. Atravessou a Sibéria a pé e foi parar no Canadá onde se estabeleceu.
 
Carlos chegou a América do Sul, mais precisamente ao Brasil, onde primeiramente se estabeleceu na cidade de Campinas onde foi trabalhar nas plantações.
 
Em Campinas ele e sua mulher tiveram mais duas filhas, as únicas brasileiras. Uma chamava-se Natalia, a mais velha, a outra mais nova, Maria.
 
Todavia, não ficaram muito tempo ali. Ele queria ter seu próprio espaço, ser dono de sua vida e de sua propriedade, ou seja, deixar de ser empregado.
 
E assim, de acordo com Cristina, sua mulher, compraram terras no sul do país, mais precisamente em um lugarejo chamado a época de Gaurama nome que até hoje detém.
 
No entanto, para chegar ali somente se o fazia em lombo de burros e carretas que eram conduzidas com as famílias de imigrantes até àquelas terras inóspitas. Existiam nas terras, leões baios, macacos e serpentes de todos os tipos.
 
Construíram sua casa que adornaram com os objetos que haviam trazido da Russia, tais como aparelhos para fazer os perfumes que Cristina tão bem os sabia elaborar juntamente com as filhas mais velhas e também um candelabro de 7 velas e um samovar para a feitura do chá.
 
Os habitantes daquela região, tão poucos, eram mais simples e de pouca educação e cultura e por isso olhavam esta família com certo desdém e ao mesmo tempo com disfarçada inveja.
 
As filhas menores foram batizadas na religião católica ortodoxa.
 
As árvores neste lugar eram tão velhas e grandes que os doze filhos juntos não conseguiam abraçar seus troncos.
 
A rigidez do clima, dos costumes, das dificuldades inerentes ao lugar, fizeram com que uma das filhas morresse quando ocorreu a tão famosa gripe espanhola, que dizimou grandes populações e tirou do convívio de muitas famílias seus seres queridos.
Infelizmente para os filhos os pais Carlos e Cristina viveram pouco ali.
 
Ele morreu em decorrência da queda de um cavalo sobre si mesmo quando atravessava um rio.
 
Ela algum tempo depois faleceu em virtude de uma pneumonia mal curada em um lugar onde nem médico ou remédios havia.
 
Os filhos mais velhos se dispersaram em busca de novas terras e oportunidades. Restou ali, somente, um irmão casado que criou a filha mais nova Maria e que até muitos anos atrás, ela também já casada e com netos nesta cidade ainda vivia. Hoje não se tem mais notícias deles.
 
Já Natalia foi levada para ser criada por outra irmã que, também casada, conduziu-a a sua casa e juntamente com seu marido ali a teve e pouca educação lhe proporcionou, tendo-a mais como uma empregada doméstica.
 
Todavia Natalia apesar de todas as dificuldades e ficando órfã aos quatro anos, cresceu e aprendeu uma profissão e como praticamente autodidata possuiu toda sua vida grande amor pelos livros, sendo uma leitora voraz e também amante da boa música que, quando podia, ia assistir aos concertos que se davam aos domingos na cidade, onde depois de casada, foi morar.
 
Natalia foi minha mãe adorada.
 
Carlos e Cristina foram os avós que infelizmente não conheci e de que a cujo tumulo prestei minhas homenagens póstumas.

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