Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

Marilu

M

Silvia C.S.P. Martinson 

 Belo domingo de sol.

Vinha ela pela praça - cheia de gente, crianças a correr,alguns sentados ao sol, proseando, tomando chimarrão, confabulando, trocando beijos e juras de amor eterno – andar descontraído, de quem está acostumado a caminhar.

Vestia légs brancas e blusa azul soltinha, era do tipo baixinha, bem produzida, cabelos castanhos, profusos.

Quem a visse de longe diria tratar-se de uma jovenzinha. Não era.

Sentou-se ao meu lado no banco da praça e logo entabulou conversa:

- Tudo bem? Belo dia!

- Realmente! Bastante quente para a época!

Fiquei pensando: lá vem outra mala puxando conversa só para bisbilhotar da minha vida. Se sou casada, se tenho filhos, netos, moro aonde e até se sou mal amada... Ledo engano o meu.

Nós aqui do Sul somos muito reservados e até desconfiados com estranhos, apesar da tão propalada hospitalidade sulista. O gaúcho é um ser solitário por natureza, observador e vigilante quanto às novas amizades e às pessoas muito espontâneas.

Tipo maneiro ela, não era a jovem que pensara eu. Talvez beirava os 70 anos. Mas que setenta! Aja Deus!

E foi discorrendo com intimidade:

- Sabes, eu tenho uma filha morando lá em Natal. Sabes onde é? É casada. Filha única.
Tenho uma neta com 16 anos.
Fui recentemente morar lá, minha filha insistiu... Fiquei uns seis meses e voltei.
Não gostei do clima, não gostei do povo. Coitados! Aqui tenho muitas amigas com quem saio e me divirto. Sou separada... Tive quatro maridos ou companheiros, alguns amores, não deu certo, vá lá!. Agora tenho um companheiro. Ele não gosta de sair ou viajar que nem eu.

Nestas alturas eu já estava interessada na história dela, com a curiosidade aguçada e lhe fiz uma pergunta a fim de dar seqüência à narrativa.

- E aí como é que você faz? Perguntei!

- Ora, ele até é legal, cuida bem dos meus gatos. Tenho sete. Adoro gatos! O coitado, o nome – o nome de dele é Airton – não quer me acompanhar nas viagens, gosta mais da casa e cuida bem dela, quando não estou cozinha, lava e passa. É um amor de criatura!
Adoro viajar! Não me prendo a lugar nenhum por muito tempo, nem a ninguém, sou e sempre fui assim, andarilha. Ele sabe...
Ainda bem que não fiquei em Natal pois que minha filha arranjou serviço também em São Paulo juntamente com meu genro. Eles têm uma rede de lojas que precisam administrar.
Aí eu teria que ficar lá sozinha cuidando da neta. Vê só se pode! Longe do meu apartamento!. Tenho uma bela cobertura! Dos meus gatos, de minhas amigas, do coitado do Airton!. Ainda bem que levei pouca bagagem, não fiz a mudança completa.

Indaguei:

- Mas aqui o que você faz?

- Quando estou enjoada do Airton, de casa, ligo para as minhas amigas e saímos para nos divertir. Vamos beber, dançar, ir ao cinema, shoppings e praças. Depende do dia e da disposição.

Continuei a encorajá-la dizendo:

- Ah... A propósito nem nos apresentamos. O meu nome é Fênix e o seu?

- Marilu é como me chamam. Na realidade é Maria Luiza, mas não gosto, é complicado... Prefiro Marilu.

- Ok. Marilu. Prazer...

E ela segue:

- Olha tá vendo aquele senhor que passou? É meu conhecido. Ele está voltando. Espera...

- Oi! Tudo bom?

- Tudo bem!

Cumprimentam-se. Ele a olhou com intensidade.

- Viu! Ele faz parte da minha turma, mas contigo aqui ficou indeciso de chegar. Ele é um amor! Sozinho como eu!

Ah! Eu digo:

- E daí?

 

- Mas como te dizia o Airton é um pouco mais jovem do que eu, mas isso não tem importância não é?

Ela não espera resposta e segue:

- O que vale são as afinidades certo?

- Realmente Marilu!

Seus muitos colares, pulseiras, anéis e brincos cheios de pedrarias – até uma gargantilha com borboleta ela tinha – rebrilhavam ao sol da manhã enquanto se movia gesticulando as bijuterias.

Os óculos grandes de sombra lhe escondiam os olhos e parte das muitas rugas que lhe vincavam o rosto, devidamente disfarçadas por uma camada de base e pó. O sorriso era bonito, dentes bem cuidados. Teria sido uma mulher muito atraente e bonita quando jovem.

Seu espírito era vivaz, transpirava alegria e temperamento determinado quando falava.

Eu a ouvia.

- Olha lá! Disse ela.
Lá vem o pobre do Airton Ele chega, senta-se ao lado dela, sorri. Os dentes manchados de nicotina e falhados. A barba por fazer. Desalinhado. Mais jovem que ela, talvez uns 50 anos. Cochicham e riem.

Ela me apresenta.

- Airton esta é Fênix!

- Prazer.

- Prazer...

Senti-me naquele instante demais ali. O universo naquele momento girava somente em torno dos dois. Então lhes disse;

- Marilu, agora deixo vocês. Tenho um compromisso, preciso ir.

Prazer em lhes conhecer, felicidades...

- Prazer Fênix!

Deixei-os e quando me voltei não estavam mais lá. Iam ao longe, ela de calças brancas bem ajustadas, uma garota...

Ele de mãos dadas com ela, abrigo surrado, tênis cambaio.

Pareciam felizes! Afinal ele cuidava bem dos gatos dela e isso é o que importava.

De resto...

Figura ímpar aquela Marilu.

Valeu a pena conhece-la.

O domingo estava salvo!

O sol brilhava e segui meu caminho. Quem sabe alguma nova reunião interessante surgiria, pensei, quem sabe…

Uma caçada perdida

U

Silvia C.S.P. Martinson 

 Seu nome Louis Frederico Guilherme. Vivia em uma pequena cidade chamada Ijuí, no estado do Rio Grande do Sul-Brasil, localizada na serra gaúcha.

Meus avós juntamente com outros colonos vindos da Europa ali se estabeleceram, compraram suas terras porque naquela época não havia o costume de doarem-se terras aos imigrantes.
Mas, como estou lhes contando neste inicio de estória, os imigrantes ali se estabeleceram, fundando uma nova cidade e trazendo com eles seus costumes, aptidões de trabalho, idiomas e religiões.

Meus avós eram alemães, pelos menos assim se diziam e até porque, era o único idioma falado na casa. Os conheci pouco, já eram bastante idosos quando eu nasci. Meu pai era o mais novo de 10 irmãos e filho de um segundo casamento de meu avô que ficara viúvo.

Meus pais viviam na capital longe da cidade de Ijuí.

As viagens à casa de meus avós somente se davam ao final do ano, nas férias de verão.
Lembro-me que levávamos um dia inteiro de viagem, no carro de meu pai, por estradas de terra vermelha e muita poeira somente para chegarmos, à noite, muito sujos e com as caras tapadas por aquele pó, ou ao contrário se minha mãe conseguisse que parássemos em um posto de gasolina, aberto, lavávamos as mãos e o rosto.

De qualquer forma esta viagem era sempre, para nós, motivo de alegria e nos parecia comumente uma grande aventura.
Louis F. Guilherme, pelos íntimos e amigos era chamado de Willy, assim me lembro. Ele era casado com a irmã de meu pai chamada Martha e viviam em uma das casas de meus avós.

Casa esta ocupava, em sua totalidade, incluindo jardins e a garagem que se situava fora da casa, quase cem metros. Estava muito bem localizada em uma esquina em pleno centro da cidade, cerca da praça central, da igreja luterana e da estação de rádio local.
Meu avô tinha um grande açougue que abastecia com seus produtos boa parte da população de então.

Nesta cidade o idioma predominante era o alemão que meus avós, assim como meu pai e seus irmãos falavam fluentemente e escreviam com perfeição.

Meu tio Willy era um homem bonito e inteligente, tinha cultura e também muita soberba. Havia sido professor de matemáticas.
Quando o conheci teria eu talvez uns seis ou sete anos, porém lembro-me dele perfeitamente por vários motivos.

Trajava bem, sempre com camisas brancas impecáveis as quais trocava duas vezes ao dia, face à terra vermelha que havia ali e que em tudo se entranhava. Era um homem muito rígido em seus costumes e nós crianças lhe tínhamos certo medo.

Quando ele chegava à casa do trabalho, pois àquela época já era um grande negociante do ramo de exportação de trigo, o qual consistia na grande produção daquele município e região, todos tratavam de obedecer-lhe.

Meus primos tratavam então de apresentar-lhe seus trabalhos da escola e executar ao piano, que havia na casa, as músicas que haviam aprendido e que a ele lhe gostava. Meus primos tocavam muito bem piano. Educação musical em nossa família era uma das prioridades.

Bem, continuando, tio Willy era adepto das caçadas, o que fazia amiúde com seus amigos.
Tinha várias armas de caça que guardava sempre bem fechadas, lubrificadas e cuidadas em um armário da casa onde somente ele tinha acesso e cuja chave trazia sempre com ele.

Também possuía três cachorros perdigueiros os quais havia treinado para suas caçadas.
Um dos cachorros, o mais bonito que me lembro, chamava-se Pacha. Pacha era um perdigueiro de raça pura, branco e marrom-claro, com longas orelhas, dócil com nós outros crianças, porém muito obediente a qualquer ordem dada por meu tio.

Quando o conheci já estava quase cego, seus olhos lacrimejavam constantemente e vivia deitado à porta da casa. Passados alguns anos fiquei sabendo o que acontecera com ele.

Em uma caçada em que meu tio e outros homens participavam, os cachorros saíram a perseguir a caça com latidos cada vez mais fortes até o ponto em que estancaram e pararam de latir.

Meu tio deu ordem a Pacha que avançasse o que a princípio este não obedeceu.
Então ele, com ênfase gritou: Avança Pacha! Avança Pacha! Avança Pacha!

Esta era a ordem a que Pacha estava acostumado, sem titubear, a obedecer para pegar a caça entre seus dentes e trazê-la até seu dono.

Soube que Pacha obedeceu, porém o que trouxe ao seu dono foi uma cobra cascavel, altamente venenosa, que lhe havia picado no peito.

Pacha a havia matado, porém ali mesmo tombou quase morto pelo veneno.
Meu tio desesperado lhe aplicou o soro antiofídico que sempre levava nas caçadas e voltou imediatamente à cidade a procura de um veterinário.

Dizem que neste dia, pela primeira vez na vida, os amigos viram Willy chorar. Ele amava aquele cachorro.

O tempo passou, meu tio não mudou sua maneira de ser e hábito de dominar as demais pessoas, o que por suposto, futuramente, lhe trouxe muitos desgostos com sua família.
Pacha se recuperou, porém nunca mais foi caçar, foi ficando cada vez mais cego – sequelas do veneno da serpente – e um cachorro triste e velho.

Soube muito tempo depois que ele se escondeu debaixo de uma escada em um canto escuro para morrer. Como um amigo fiel e para não dar trabalho a ninguém assim o fez Pacha.

Morreu só.

O descabeçado

O

Silvia C.S.P. Martinson 

Um lugar. Um planeta. Ano, 3.145.

As cidades são enormes, não há prédios altos, edifícios como os que conhecemos hoje. São casas de dois ou três pisos, adequadas às necessidades populacionais, que possuem luz própria e refulgem nos mais diferentes tons, quando, sobre elas, refletem os raios dos dois sóis que abastecem de energia este planeta gigantesco.

Tais casas são transparentes à visão interna podendo-se observar plenamente o que se passa em seu exterior sem que a privacidade de seus habitantes seja perturbada por olhares porventura curiosos.
Aliás, o povo deste planeta não é nem um pouco curioso.

Falemos agora, sobre o povo residente para, posteriormente, narrarmos a estória propriamente dita.

Povo estranho para nossas atuais concepções, tanto física quanto psiquicamente.
Seus corpos não se deterioram quando são deixados. E deixados, como veremos mais adiante, é literalmente o termo mais correto.

São criaturas fisicamente quase iguais. Mesma textura, mesma altura – por sinal, extremamente altos e belos – cabelos ou pretos ou louros, olhos castanhos ou azuis, pele de cor amorenada, segundo nossos atuais parâmetros de cor. Os homens têm o mesmo porte altivo e são sexualmente bem dotados. As mulheres, portadoras de fartas cabeleiras, têm seios avantajados e torso e nádegas e pernas bem torneados. Sexualmente, todas elas, especialmente atraentes

Nestas cidades tudo é programado. Como as criaturas não necessitam alimentar-se da forma tradicional, basta-lhes aspirar aos eflúvios vindos dos “alimentos” – oriundos das formas básicas milenares – processados e altamente energéticos. Não há produção e trabalho braçais. Não há campos a lavrar.

Portanto, os seres executam somente serviços de ordem intelectual, destinados a manutenção e conservação da governabilidade e da paz e isto acontece em pequenos períodos do dia, que dura, em média, 36 horas.

Todos os cidadãos obedecem à ordem programada; as segundas-feiras é o dia do afeto-sexual, as terças são dedicadas à alimentação, as quartas se encontram e confraternizam com os habitantes do mesmo bairro, as quintas reúnem-se em um grande anfiteatro da cidade para ouvir música e aumentarem seu “acervo de sons”, as sextas saem a caminhar, quando então, as calçadas e as ruas rolantes são paradas para tal mister. Aos sábados todos ficam em suas casas, tratando de suas roupas e utensílios, pondo-os em ordem. Neste dia circulam os únicos veículos, chamados RECOLHEDORES, pela cidade. Mais tarde falaremos especificamente sobre eles. Aos domingos todos dormem.
Como se vê são cidades super organizadas.
A propósito as criaturas, seus habitantes, são chamados e conhecidos por números e não por nomes.

Um Bilhão e Quinze Mil era o nome dele. Sua mulher chamava-se Um Bilhão e Vinte Mil. Intimamente apelidaram-se de Biquin ele e Bevin ela. Estavam acostumados.
É aqui que começa a nossa estória.
Biquin após ter dormido com sua mulher Bevin todo o domingo, acordou segunda-feira sentindo-se estranho, não estava como sempre tão disposto ao “afeto-sexual.”

Ela como sempre nestes dias (segundas-feiras) chegou-se a ele com os grandes e rijos seios semi a mostra, o corpo aquecido e úmido, as nádegas quase vibrantes e encostou-se, pressionou-se a ele, ao seu corpo, fazendo com que a sentisse inflamada e disposta ao coito.

Como lhe percebesse certa frieza, coisa até então nunca sentida, por parte dele, pegou sua mão e conduziu-a lentamente sobre seus seios fazendo-a deslocar-se até sua genitália, que nestas alturas já vibrava aquecida e umidificada, exalando o perfume que lá colocara antecipadamente. Semicerrou os olhos e entreabriu a boca para receber-lhe a língua poderosa.Ele cedeu. Um frêmito passou-lhe por todo o corpo acendendo seu desejo. Copularam o dia todo, das mais diferentes e ousadas maneiras.
É necessário que se diga: As mulheres destas cidades as segundas-feiras, sempre, sem exceção, recebiam e procuravam seus maridos seminuas, de olhos semicerrados e bocas entreabertas, corpo excessivamente quente, levemente molhado e perfumado.

Terça-feira – Dia da alimentação.
Biquin colocou as pílulas energizantes, dele e dela, em recipientes próprios e separados. Borrifou-os com um líquido especial. Imediatamente vapores começaram a sair daquelas, sendo aspirados individualmente por cada qual. Isto por várias horas. Ao fim do dia estavam energizados.

Quarta-feira. Biquin ainda com uma impressão estranha de incompletude, como se algo estivesse a lhe escapar do controle, um sentimento vago e inquietante de ausência – coisa que nunca sentira desde que se dera conta de si, isso há tanto tempo que já não sabia mais precisar – dirigiu-se com sua mulher, meio-contrafeito, à reunião do bairro para conversar, trocar idéias com seus confrades, aos quais, no entanto, não expôs suas atuais sensações.
Na quinta-feira, como sempre, todo o povo dirigiu-se ao anfiteatro para ouvir música e aumentar o seu “acervo de sons”. Biquin e Bivin, inevitavelmente, também foram.
Sentados em confortáveis cadeiras, em silêncio, preparavam-se para a audição.
A música, que era transmitida por enormes e complexos aparelhos, se espalhou no ar. Era como sempre calmante. Acrescida, no entanto, de novos sons, que, paulatinamente, iam sendo registrados em seus cérebros, incorporando-se ao seu “acervo”.

Foi neste exato momento, mais propriamente naquele dia que Biquin começou a compreender o que lhe ocorria e então se fez algumas perguntas que não soube responder:
- Por que necessitamos de ouvir música e aumentar nossos “acervos”?
- Por que ouvir música se já a temos registrada em nossos cérebros?! Podendo ouvi-la intimamente sempre e quando quisermos.
- Por que todo o povo necessita reunir-se no anfiteatro?
Terminou o dia, a audição e todos retornaram aos seus lares.

Amanheceu, os sóis brilhavam, as casas resplandeciam. Era sexta-feira.

As perguntas feitas a si próprio, inquietantemente, continuavam a martelar na cabeça de Biquin.

As ruas e calçadas rolantes estavam paradas.
As criaturas andavam aos pares caminhando sem pressa por muitos quilômetros, circundando parques, ruas, avenidas. Era necessário movimentar-se, como se engrenagens novas, recentemente lubrificadas, fossem postas em ação para ajustar-se e melhor desempenharem suas funções. Era obrigatório o movimentar-se.

Biquin sentou-se em um banco de praça, estava inexplicavelmente cansado, nunca isto lhe ocorrera. Fez sinal a Bevin para que seguisse sozinha à caminhada obrigatória. Ela o olhou longamente, uma lágrima, uma única, correu-lhe pela face, disfarçou, disse-lhe adeus e seguiu.

O desânimo era grande demais nele. As perguntas não respondidas assomavam insistentemente ao seu cérebro. E aos poucos uma idéia estranha, inusitada, começou a envolvê-lo, obstinadamente, retirando-lhe toda lógica e entregando-o somente a um desejo violento de:
Desenroscar do corpo a cabeça. Seria isto possível?

Sozinho na praça, já entardecia, ele iniciou sua tentativa. Por incrível que pareça acreditou ser possível. E, lentamente, começou a desenroscar sua cabeça. No início ocorreram alguns estalos, como se as peças por falta de uso estivessem emperradas. Mas com um pouquinho mais de força e um estalo maior ela começou a mover-se. Primeiramente em ângulo de vinte e cinco graus, após quarenta e cinco, passou rapidamente aos cento e oitenta e finalmente aos trezentos e sessenta graus. Já não se surpreendia, ao contrário, uma grande sensação de alívio o acometeu. Só faltava, agora, retirá-la do pescoço.
Foi o que fez. Colocou-a delicadamente ao seu lado no banco. Já não sabia se era corpo ou se era cabeça. Mas o que importava agora?!
Ao seu redor as coisas, as imagens, os sons foram se desvanecendo e desapareceram por completo.

Só restou um corpo e uma cabeça que, naquele planeta, não se deterioravam.
Por sua vez Bivin, em seu lar, sentou em um sofá e desligou-se de todos os seus sentidos. Para sempre.

Na sala de Controle de População do grande complexo governamental, onde se decidiam da criação ou extinção de “criaturas programadas”, na frente de uma enorme tela televisiva Tresbieum (Três bilhões e um milhão) diz a Tresbiedois (Três bilhões e dois milhões), esses eram seus nomes:
- Finalmente desligados Biquin e ela! Tudo ocorreu como o programado. Estavam velhos e obsoletos, só ocupavam espaço. Sua tecnologia estava ultrapassada, não havia conserto nem reparos a serem feitos. As peças não existem mais.
Agora haverá um lar a mais para os futuros pares.
- Realmente, mas você Trisbieum há de concordar comigo em alguma coisa, já que somos tão diferentes...
Como eram bonitos e perfeitos, para a época em que foram criados, os nossos pais, você não acha?
- Sim, nossos pais!

Mas isto já não importa, amanhã é sábado e os caminhões RECOLHEDORES os levarão para a reciclagem de materiais. É sempre assim...
- Ainda bem que domingo dormiremos.

É necessário, ainda, que se explique que neste planeta quando um dos cônjuges era desativado o outro, inevitavelmente, o seguia em sua sina.

Férias na vovó

F

SIlvia C.S.P. Martinson 

Quando éramos crianças do que mais gostávamos se passava no final do ano, depois do Natal, em pleno verão, era ir á casa de minha avó.

Meus pais tiravam alguns dias para descansar.
Ou íamos para uma casa que alugavam na Praia, ou saíamos para visitar minha avó paterna e meus tios e primos na cidade de Ijuí.
Ijuí se localiza no Estado do Rio Grande do Sul-Brasil e foi fundada por meus avós e outros imigrantes alemães que lá foram viver e criar suas famílias.

Creio que não foram os primeiros a chegar ali.
Quando criança esta cidade tinha seus costumes locais bem arraigados e tipicamente alemães. Desde os hábitos de comida como até o idioma falado correntemente era aquele.

Minha avó morreu aos 98 anos falando diariamente e somente seu idioma pátrio.
Normalmente os habitantes eram de religião evangélica, adeptos de Martín Lutero e nos cultos o pastor se expressava somente em alemão.

Meu pai falava e escrevia correntemente em alemão, até porque estudou como interno em uma escola onde se preparava para ser pastor. Por fim abandonou tudo e foi servir ao exército brasileiro em outra cidade do Estado, onde conheceu e se casou com minha mãe.

Soube por meu pai que houve muita perseguição, no pós-guerra, aos imigrantes alemães sob a suspeita de serem nazistas.
Meu pai nunca quis nos ensinar o idioma alemão, acredito, por puro medo, temia a perseguição que graçou no Brasil por muitos anos, infelizmente.

As férias tão ansiadas para ir à casa de minha avó - que, diga-se de passagem, era muito grande, cômoda, bonita de que se localizava em pleno centro da cidade – era uma verdadeira epopeia. Até chegar lá muita coisa se passava.

Saíamos pela manha bem cedinho na camioneta de papai, passávamos por várias cidades até tomar a estrada que nos levaria até Ijuí. Naquela época a estrada era de terra não havia asfalto ali.

A terra era vermelha e penetrava em tudo a poeira, pois que tínhamos que ir com as janelas abertas, era verão, fazia calor e não existia ar condicionado no carro. Somente os mais luxuosos possuíam ventilador.

Quando se aproximava outro veículo meus pais ordenavam que se fechassem as janelas a fim de que não penetrasse mais ainda a poeira.
Naquela região produzia-se muito trigo de outros cereais. Era lindo ver os trigais oscilando ao vento como as ondas do mar, todavia amarelas, quase douradas.

Meu tio casado com a irmã de meu pai era um dos diretores e proprietário de uma grande empresa de exportação de trigo.

Já a noitinha quando estávamos prestes a chegar, meu pai acorria a um posto de gasolina que havia na entrada da cidade para que nos lavássemos, em tonéis de agua que havia fora, os rostos e os braços a fim de que não chegássemos como índios peles vermelhas e também não só a pele como também os cabelos desgrenhados, na casa de vovó, que provavelmente não nos reconheceria após 12 ou 14 horas de viagem.

Vovó nos recebia sempre com muita alegria, a pesar de não entendermos uma palavra do que falava. Expressava-se somente em seu idioma pátrio.

O que mais gostávamos era do quarto que sempre nos reservava à minha irmã e a mim.
As camas eram altas e tinham um lastro como suporte de colchão que era de aço flexível, por sobre o qual era colocado um de crina de cavalo e plumas.

As cobertas também eram de plumas de ganzo e todos os dias tinham que ser sacudidas de tal forma que não ficassem tais plumas localizadas em um só lugar, deixando vazias as demais partes da mesma, consequentemente causando frio a quem as usasse.

Adorávamos aquelas camas altas e flexíveis porque éramos muito traquinas de o que mais fazíamos, para desespero de minha mãe e da avó, era saltar em cima delas a ponto de quase tocarmos o forro da casa que se localizava a uma altura considerável.

Minha mãe e minha avó, em conjunto, gritavam, quando nos pegavam na traquinagem, a plenos pulmões para que parássemos, caso contrario a palmada na bunda seria a solução.

Uma vez rompemos um travesseiro que também era de plumas. Estas voaram por todo o quarto indo parar na rua em frente pois que a janela estava aberta.

Meu pai que sempre foi bonachão se ria a mais não poder, enquanto minha mãe, sempre tão rigorosa, puxou da chinela para nos bater.
Até hoje me lembro da cena maravilhosa!
Ela está viva em minha memória.

Acalanto II

A

Silvia C.S.P. Martinson 

Embalo e canto...
Canto e embalo!...
E cantando me encanto
com estórias de fadas,
sílfides; duendes e gnomos,
que se perdem nas estradas
da imaginação... A criança,
que trago em mim,
a que sou inda assim...
Cabeceia e quase adormece!...
E no acalanto
deste meu canto,
vou embalando;
ninando; o infante,
que não sou eu,
a que seguro e abraço.
As sílfides, a fada,
as bruxas, os gnomos,
esvaem-se no sono
e... Perdem-se no nada!

Tradição de Ano Novo

T

SIlvia C.S.P. Martinson 

Aquele ano seria diferente.
Povoado de Ornaisons – França.

Um povoado pequeno com mil e poucos habitantes e algumas peculiaridades, diferente dos demais povoados.

Viviam ali produtores rurais dedicados a vitivinicultura, de cujos parreirais se extraiam uvas de fina casta para a elaboração de vinhos de alta qualidade, tão apreciados em toda França. Produziam também cervejas de boa cepa provenientes da cevada ali cultivada.
Também em menor quantidade se criavam ovelhas e cabras destinadas ao consumo doméstico e à produção de lã que a seu tempo, após a tosa, era encaminhada às industrias de tecelagem que, posteriormente, enviavam os lindos tecidos aos costureiros para a fabricação de roupas e abrigos para o inverno.

Bem, voltando à história nos contaram que; não eram mais crianças, haviam crescido. Estavam quase todos com 16 a 18 anos mais ou menos. Cresceram juntos.

Quando crianças esperavam a noite de Ano Novo com ansiedade.
O dia transcorria com alguma agitação, tanto de parte dos adultos quanto das crianças.
Os adultos no preparo da casa, das roupas melhores e da ceia que deveria ser diferenciada dos demais dias e do que costumavam comer o ano todo.

Na passagem para o ano a ceia, que ocorria a meia noite, compunha-se de carne de porco, saladas mais elaboradas, vinhos mais finos e por certo de sobremesas mais saborosas que o normal.

As crianças e os adultos banhavam-se mais cedo e vestiam-se, como era o costume, com mais esmero, até porque é inverno nesta época do ano ali.

Era costume desde os antigos que na madrugada do dia 1 de janeiro os jovens do povoado saíssem a recorrer as ruas e pegar tudo que estivesse nas portas das casas ou jardins sem que o proprietário pudesse perceber e colocavam o produto no centro da praça local onde também ficava a prefeitura.

Os jovens saiam então de madrugada de diversos pontos da cidadezinha e carregavam tudo que encontravam depositando no centro da praça.

Aquele ano foi excepcional pois que carregaram bicicletas, vasos de flores, lixeiras e até um automóvel, que com a ajuda de uns quantos, conseguiram abrir a porta do motorista, destravar o veículo e o empurrar até a praça.

Os antigos já haviam esquecido este costume e quando acordaram pela manhã se deram conta da ausência de seus pertences. Foi um alvoroço no povoado. Eram pessoas correndo pelas ruas procurando o que lhes pertencia.

Quando chegaram ao centro do povoado e viram com espanto a praça lotada de badulaques das mais diversas espécies ficaram estarrecidos. E os jovens postados à parte, entre sorrisos, observavam as reações dos pretensos prejudicados com a brincadeira.
Foram duramente inquiridos sobre se haviam sido eles os autores dos desvios, ao que respondiam com a maior desfaçatez:

- Não eu não! Nem pensar que eu seria capaz de tal maldade!

Porém o faziam entre sorrisos e olhares matreiros de uns aos outros.

No entanto, o mais interessante se deu após alguns minutos quando as pessoas começaram a recolher seus pertences. Aí então é que a natureza torpe do homem se fez ver.

Alguns acharam que os pertences de seus vizinhos eram mais valiosos que os seus e começaram a arguir que estes lhes pertenciam. O caos se instalou definitivamente e os prejudicados após reclamarem os seus direitos e não serem atendidos, partiram para a agressão física.

Velhos amigos se destrataram, amizades se desfizeram, pessoas que se tinham por idôneas e honestas deixaram cair a máscara por um simples vaso de flores.

Tudo isto ocorreu ante os olhos estupefatos dos jovens que tinham em alguns vizinhos e até parentes a representação da mais pura honradez.

Esta data ficou gravada na memória e nos anais da história deste povoado.

E hoje por precaução e experiência, os enfeites, vasos, jardineiras e demais objetos que se encontram ordinariamente nas ruas e jardins são recolhidos após a ceia de Ano Novo, na passagem do dia 31 de dezembro a 01 de janeiro, ao interior da casa de cada proprietário.

Oh! Esqueci-me de contar:

Naquele dia também foi desfeito um noivado que já durava alguns anos.
Os pais dos noivos brigaram por uma bicicleta velha e não permitiram o casamento de seus filhos. A noiva até hoje chora desconsolada, ficou mal vista e restou solteirona. O noivo foi para outra cidade, lá se casou e teve um “montão” de filhos.

Diga-se de passagem, e para quase finalizar que foi ele um dos líderes que arquitetou toda a brincadeira. Até hoje contam, os que eram jovens a época, que quando saem à rua e encontram as pessoas que tentaram roubar o que não era seu, as identificam e lhes lançam palavras como:

- Eu sei o que você fez!

Pequeno conto

P

SIlvia C.S.P. Martinson 

¡Tiene que ser así!
Y así es.
España tierra de leyendas y de pasiones.
De sus rocas, de su mar transparente y también caliente, de donde se extraen muchas historias.
 
Su aire es cómplice de muchos sentimientos. Mientras aquellos que no se pueden contar y que deben ser olvidados en los caminos inaccesibles de las rocas, a los que el aire, se acomoda en esconderlos.
Tierra vieja de viejos amores...
 
SÉCULO XVII
 
Apesar de estarem na Europa em plena fase do Renascimento e do Barroco na produção artística, na  Espanha ainda em pleno século XVII esta sofria a influência das tradições medievais, originadas pelo apego aos temas do cristianismo daque- la época, diferentemente das ideias humanistas cuja penetração já se fazia sentir pelo continente europeu.
 
A igreja católica foi preponderante neste aspecto influenciando fortemente os países ibéricos a não adotarem tais ideias humanistas, mantendo assim a hegemonia e o poder da Igreja na fase da Contrarreforma, atrasando sobremaneira a cultura e a educação de um povo.
 
É, então, precisamente nesta fase que começa a se desenrolar nossa história, que estranhamente, para uns é inverossímil, que se passe até nossos dias. Para outros, entretanto, é perfeitamente aceitável.
 
Comecemos a contá-la:
Um povoado pequeno ao pé de montanhas rochosas em um lugar na Espanha.
Um povo composto de camponeses e criadores de ovelhas e cabras.
Um palácio medieval e uma família rica, fanática e dominante
Uma igreja antiga originária, arquitetonicamente, dos templos construídos durante a dominação árabe.
Dois jovens com educação e posturas e princípios diferentes.
 
Zaida lia os sortilégios, elaborava mezinhas, poções para saúde, conhecia os “segredos da terra”, do ar, do fogo e da água, ou seja, dos elementais.
 
Filha de alquimistas lhe foram passados os conhecimentos que levam à transformação dos metais e a transmutação e transformação dos elementos e energias terrestres e universais.
 
Considerada na época uma bruxa – até porque, naquele tempo, às mulheres não era dado acesso à ciência e a educação - era mal vista no lugar em que morava. Inobstante quando havia problemas com doenças o povo daquele lugarejo acorria a ela para que os socorresse com seus conhecimentos.
 
A Espanha de então era bastante atrasada, bem como quase toda Europa, nas lides médicas.
Zaida vivia em um povoado na Espanha situado ao pé de montanhas rochosas em um vale semiárido, hábitat de cabras, ovelhas, animais de caça e serpentes venenosas, das quais extraía os fluidos necessários aos seus medicamentos e poções, isto em sua casa localizada junto a um precipício.
 
Neste povoado vivia em uma igreja um pároco muito velhinho, que era prior daquela paróquia, que, todavia, a pesar das diferenças religiosas, entendia e respeitava os poderes e conhecimentos da jovem Zaida. Da Zaida dos longos cabelos louros e dos olhos verdes como a relva do campo, como as águas do mar.
Eis que o velho pároco morre.
 
Vem para assumir a paróquia um sacerdote jovem, culto e educado dentro dos parâmetros da igreja católica espanhola e nos melhores conventos da época, destinados a filhos de famílias influentes e poderosas, ou seja, da casa dos proprietários do castelo existente no povoado. Seu nome: Luíz de los Rios.
 
Luíz assume seu posto e aos poucos vai conhecendo mais amiúde o povo dali, suas histórias e costumes, haja vista ter sido criado dentro do convento com quase nenhum contato com a gente do lugar.
 
Luíz como todo jovem, trazia de seu berço a formação religiosa à época, os preconceitos e a limitações que sua fé lhe impunham.
Sabedor da presença da “bruxa” no povoado passa a persegui-la denunciando-a a seus superiores.
 
O destino e a vida são sábios em seus propósitos e às vezes criam situações insuspeitas aos homens, visando seu progresso e abertura de mente às verdades universais.
 
Aquela época grassavam as pestes e as doenças que na maioria das vezes eram fatais ao homem, principalmente pela falta de higiene existente 
Eis que Luíz adoece.
 
Todos os conhecimentos e medicamentos do populacho lhe são ministrados sem sucesso.
Por fim na tentativa última de lhe salvarem a vida, Zaida é convocada a ir ao seu leito, como derradeiro recurso.
 
Ela, em toda sua suavidade aceita o encargo sabendo, no entanto, o quanto aquilo a exporia ao perigo de uma perseguição feroz por parte da Igreja.
 
Segue ao encontro do doente, lhe aplica suas mezinhas, poções e invoca em seu benefício às forças da Natureza, estas tão de seu domínio. E o faz por um longo período.
O tempo passa…
Luíz aos poucos melhora e vai retomando as suas forças, ao mesmo tempo em que por esta convivência e proximidade, os jovens começam, sem perceber, a necessitar cada vez mais da presença um do outro.
Apaixonam-se.
O povo nota. Condena tal atitude e comunica à família e aos superiores eclesiásticos do sacerdote.
 
Por ser considerada bruxa e incitados pela família poderosa do sacerdote a qual não admitia àquele relacionamento, com Zaida e sabedores do destino reservado às bruxas, (a fogueira) os jovens combinam fugir para um lugar distante.
 
Luíz deveria dar apoio e cobertura a Zaida a fim de que seus propósitos de fuga se dessem a contento e seu amor se concretizasse definitivamente.
 
No dia aprazado, no entanto, ele amedrontado e pressionado por sua família e por sua fé foge, acaba deixando Zaida a mercê de seus perseguidores.
 
Ela vendo-se abandonada por aquele a quem tanto amara, ainda consegue fugir às altas montanhas rochosas e à beira de um precipício lança um último olhar ao horizonte.   Lembra de seu amor… O perdoa mentalmente e solicita à Natureza que lhe oportunize , com ele, novos encontros, em outros tempos, em um  futuro quem sabe…
 
Mira o horizonte, chega à beira do precipício e joga-se ao vazio em busca do esquecimento.
Os séculos se sucedem e com eles novos encontros entre os dois se dão, sempre cheios de paixão e reconhecimento íntrinseco, nem sempre recordado conscientemente.
 
Hoje cabe a Luíz, mesmo que não relembre, expurgar de si o sentimento de culpa pela ausência inflingida.
 
A Zaida a conformação pelas dores físicas que sofre em virtude de suas opções e agressões à mãe Natureza.
Por ora, nesta vida, voltam a se reencontrar, se reconhecem e se apaixonam novamente.
 
Las rocas muy largas y viejas también, con el tiempo, a veces, caen y se transforman en arena, que se va a lejos por el aire, tanteando.
Mientras los malos sentimientos también son como las arenas, pero se pierden con el tiempo.

Meus olhos

M

SIlvia C.S.P. Martinson 

Meus olhos sonhadores
são como as águas marinhas
profundas, inescrutáveis.
Há histórias neles contidas
de ilusões que a muito,
muito tempo vivi.
Eles veem mais longe,
e expressam inumeráveis esperanças,
se alegram na fantasia,
não vivem do passado,
esquecem-se da tirania.
Sabem sorrir sem palavras,
ao renascer cada dia,
para viver, amar e ser feliz.
São a luz que se derrama
como as ondas do mar,
nas calmas, tranquilas
praias da vida,
eternamente a sonhar.

Lembranças – Óleo de figado de bacalhau

L

SIlvia C.S.P. Martinson 

Quando acordei e ao tomar os remédios pela manhã, meia hora antes do café, como o médico me havia prescrito, voltaram-me, não sei por que à memória, lembranças de minha infância.
 
Lembranças de quando éramos pequenas em minha casa, a qual tinha um grande pátio cheio de árvores frutíferas e flores que minha mãe amava plantar para embelezar seus recantos. Passávamos ali os dias brincando e fazendo todo tipo de peraltices.
 
Meu pai construiu sobre um cinamomo velho uma espécie de refúgio para nós. Ali subíamos por um a escada que nos levava até o enclave de galhos grossos, onde havia bancos para sentarmo-nos e uma mesinha improvisada.
 
Neste recanto da árvore brincávamos de casinha, ou seja, ali improvisávamos comidas em latinhas que levávamos para cima.
Essas comidas eram feitas de terra molhada, folhas de árvores e enfeitadas com flores do jardim.
 
Em nossa imaginação de crianças as bonecas iriam comer toda este manjar para depois dormirem em suas caminhas improvisadas.
Era um mundo de sonho...
 
Outras vezes fazíamos brincadeiras perigosas, amarrávamos cordas nos galhos e os desciámos por elas até o solo, imaginando que, como o personagem Tarzan, estávamos na selva.
 
Para nós aquele pátio de quase 100 metros e cheio de árvores frutíferas era como se fosse uma mata densa e cheia de possibilidades a aventurar-se naquele paraíso tão nosso.
 
De outra feita imaginávamos que estávamos em um circo e para tal amarrávamos uma corda de uma árvore à outra, bem atada, e por sobre ela caminhávamos assim, como havíamos visto em um espetáculo circense.
As quedas não foram poucas e até hoje restam cicatrizes e dores, marcas das traquinices feitas.
 
Minha mãe e meu pai trabalhavam muito para nos manter e educar dignamente, não com riqueza, porque não éramos ricos, porém com acesso principalmente à cultura, à educação, que naquela época era muito boa e ministrada nas escolas públicas bem conceituadas, onde se faziam testes rigorosos para poder frequentá-las.
 
Bem, em realidade, estas lembranças vieram pela manhã enquanto tomava meus remédios matinais e pensei por que elas aconteceram?
 
Então me recordei, também, que àquela época, eventualmente ficávamos doentes.
Havia doenças sérias para as quais já existiam algumas vacinas, tal como para a paralisia infantil, difteria e outras.
 
Todavia em minha infância não sei dizer se por falta de vacinas ou recursos financeiros, tivemos tanto algumas graves, como as normais que poderíamos dizer, caseiras.
 
Para as caseiras há diversos remédios que minha mãe conhecia e aplicava com rigor, por exemplo: quando estávamos com dor de garganta eram feitos gargarejos que consistiam ser de água carregada de sal e vinagre para gargarejar e limpar da infecção as amigdalas.
 
Para a febre ela usava nos colocar na cama bem tapadas com cobertas e dar-nos um chá quente com mel e limão e mais um comprimido de aspirina para baixar a temperatura, o que fazia suássemos muito, encharcando roupas, lençóis e cobertas.
Penso que surtia efeito, porque a febre cedia e no outro dia já estávamos em franca recuperação.
 
Porém o que eu mais detestava e que ela seguidamente nos aplicava para limpeza dos intestinos era o tão famoso Azeite de Ricino, que exercia a função de laxante, permitindo que expulsássemos de nossos organismos elementos indesejáveis.
 
Lembrando bem agora, do que eu tinha verdadeiro asco e que me era administrado seguidamente, por ser magra e não gostar de comer, era o chamado Óleo de Fígado de Bacalhau. Deste eu corria por todo o pátio escondendo-me para não o tomar. E quando conseguiam me pegar e sujeitar, além de ter que engoli-lo, levava umas boas palmadas na bunda para aprender a não ser desobediente.
 
Quanto sacrifício de minha mãe para nos tornar gente!
Meu pai trabalhava fora o dia todo e só retornava a noite para casa.
E hoje penso que óleo de Fígado de Bacalhau foi eficiente...
Sigo forte e saudável, física e mentalmente, até hoje, apesar dos anos transcorridos.
Minha mãe tinha razão.

Lápis

L

Silvia C.S.P. Martinson 

Dispensei-o a tanto...
Obsoleto ficou
entre:
...“mal traçadas linhas”,
rabiscos, desenhos,
cartinhas.
Lembranças de jovem,
de quando tinha serventia .
Foi apequenado, c’o tempo,
pelo uso improvisado.
Transmitia recados,
juras e traços...
Encontro-o hoje,
o toquinho,
entre as páginas
amarelecidas de um passado,
na gaveta, n’um escaninho,
meu pequeno lapisinho.
Pobrezinho!
Troquei-o por uma caneta,
que se diz compacta,
uma tal de ... Esferográfica.
Que rata!

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