Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

Meus olhos

M

SIlvia C.S.P. Martinson 

Meus olhos sonhadores
são como as águas marinhas
profundas, inescrutáveis.
Há histórias neles contidas
de ilusões que a muito,
muito tempo vivi.
Eles veem mais longe,
e expressam inumeráveis esperanças,
se alegram na fantasia,
não vivem do passado,
esquecem-se da tirania.
Sabem sorrir sem palavras,
ao renascer cada dia,
para viver, amar e ser feliz.
São a luz que se derrama
como as ondas do mar,
nas calmas, tranquilas
praias da vida,
eternamente a sonhar.

Lembranças – Óleo de figado de bacalhau

L

SIlvia C.S.P. Martinson 

Quando acordei e ao tomar os remédios pela manhã, meia hora antes do café, como o médico me havia prescrito, voltaram-me, não sei por que à memória, lembranças de minha infância.
 
Lembranças de quando éramos pequenas em minha casa, a qual tinha um grande pátio cheio de árvores frutíferas e flores que minha mãe amava plantar para embelezar seus recantos. Passávamos ali os dias brincando e fazendo todo tipo de peraltices.
 
Meu pai construiu sobre um cinamomo velho uma espécie de refúgio para nós. Ali subíamos por um a escada que nos levava até o enclave de galhos grossos, onde havia bancos para sentarmo-nos e uma mesinha improvisada.
 
Neste recanto da árvore brincávamos de casinha, ou seja, ali improvisávamos comidas em latinhas que levávamos para cima.
Essas comidas eram feitas de terra molhada, folhas de árvores e enfeitadas com flores do jardim.
 
Em nossa imaginação de crianças as bonecas iriam comer toda este manjar para depois dormirem em suas caminhas improvisadas.
Era um mundo de sonho...
 
Outras vezes fazíamos brincadeiras perigosas, amarrávamos cordas nos galhos e os desciámos por elas até o solo, imaginando que, como o personagem Tarzan, estávamos na selva.
 
Para nós aquele pátio de quase 100 metros e cheio de árvores frutíferas era como se fosse uma mata densa e cheia de possibilidades a aventurar-se naquele paraíso tão nosso.
 
De outra feita imaginávamos que estávamos em um circo e para tal amarrávamos uma corda de uma árvore à outra, bem atada, e por sobre ela caminhávamos assim, como havíamos visto em um espetáculo circense.
As quedas não foram poucas e até hoje restam cicatrizes e dores, marcas das traquinices feitas.
 
Minha mãe e meu pai trabalhavam muito para nos manter e educar dignamente, não com riqueza, porque não éramos ricos, porém com acesso principalmente à cultura, à educação, que naquela época era muito boa e ministrada nas escolas públicas bem conceituadas, onde se faziam testes rigorosos para poder frequentá-las.
 
Bem, em realidade, estas lembranças vieram pela manhã enquanto tomava meus remédios matinais e pensei por que elas aconteceram?
 
Então me recordei, também, que àquela época, eventualmente ficávamos doentes.
Havia doenças sérias para as quais já existiam algumas vacinas, tal como para a paralisia infantil, difteria e outras.
 
Todavia em minha infância não sei dizer se por falta de vacinas ou recursos financeiros, tivemos tanto algumas graves, como as normais que poderíamos dizer, caseiras.
 
Para as caseiras há diversos remédios que minha mãe conhecia e aplicava com rigor, por exemplo: quando estávamos com dor de garganta eram feitos gargarejos que consistiam ser de água carregada de sal e vinagre para gargarejar e limpar da infecção as amigdalas.
 
Para a febre ela usava nos colocar na cama bem tapadas com cobertas e dar-nos um chá quente com mel e limão e mais um comprimido de aspirina para baixar a temperatura, o que fazia suássemos muito, encharcando roupas, lençóis e cobertas.
Penso que surtia efeito, porque a febre cedia e no outro dia já estávamos em franca recuperação.
 
Porém o que eu mais detestava e que ela seguidamente nos aplicava para limpeza dos intestinos era o tão famoso Azeite de Ricino, que exercia a função de laxante, permitindo que expulsássemos de nossos organismos elementos indesejáveis.
 
Lembrando bem agora, do que eu tinha verdadeiro asco e que me era administrado seguidamente, por ser magra e não gostar de comer, era o chamado Óleo de Fígado de Bacalhau. Deste eu corria por todo o pátio escondendo-me para não o tomar. E quando conseguiam me pegar e sujeitar, além de ter que engoli-lo, levava umas boas palmadas na bunda para aprender a não ser desobediente.
 
Quanto sacrifício de minha mãe para nos tornar gente!
Meu pai trabalhava fora o dia todo e só retornava a noite para casa.
E hoje penso que óleo de Fígado de Bacalhau foi eficiente...
Sigo forte e saudável, física e mentalmente, até hoje, apesar dos anos transcorridos.
Minha mãe tinha razão.

Lápis

L

Silvia C.S.P. Martinson 

Dispensei-o a tanto...
Obsoleto ficou
entre:
...“mal traçadas linhas”,
rabiscos, desenhos,
cartinhas.
Lembranças de jovem,
de quando tinha serventia .
Foi apequenado, c’o tempo,
pelo uso improvisado.
Transmitia recados,
juras e traços...
Encontro-o hoje,
o toquinho,
entre as páginas
amarelecidas de um passado,
na gaveta, n’um escaninho,
meu pequeno lapisinho.
Pobrezinho!
Troquei-o por uma caneta,
que se diz compacta,
uma tal de ... Esferográfica.
Que rata!

Meu lugar sonhado

M

SIlvia C.S.P. Martinson 

Estranho pensei: “MEU LUGAR SONHADO” é este o título que me foi proposto. Nunca havia imaginado em toda minha vida projetar para mim um final em algum lugar definido.
 
Depois de tudo o que vivi, trabalhei, estudei, formei minha família, morei em diversos lugares e viajei, me parece estranho ficar definitivamente em um lugar.
 
A vida transcorreu tão rapidamente e transcorre que não me dei conta que de certa forma envelhecemos.
 
Somente agora com a proposta interessante de escrever um texto sobre “Mi Lugar Soñado” é que parei para pensar qual seria este lugar para mim.
 
Na infância tive a felicidade de ter uma família constituída por pai, mãe e irmã, que naturalmente preencheram as minhas necessidades materiais e acima de tudo, através do carinho e atenção de meus pais recebi os ensinamentos sobre moralidade, amizade, religiosidade e respeito ao ser humano. Enfim um lar. 
 
O que eu gostava em criança era quando meus pais saiam de férias para a praia, íamos em uma camioneta Ford cujos bancos de trás eram de madeira e à frente meu pai conduzia e minha mãe e ele iam cantando músicas o tempo todo. Aos meus pais  encantava-lhes cantar. Nosso mundo era mágico então.
 
Já mais velha casei e constituí família, exercendo neste novo lar a função de mãe, esposa e companheira nas decisões que a vida nos obrigava a tomar. Nem sempre as mais acertadas, porém as que nos pareceram à época as mais adequadas e corretas à situação que se apresentava.
 
Assim que naqueles anos, naqueles momentos e lugares onde vivi eles me instigaram a supor que eram: “Mi Lugar Soñado”.
 
O tempo passa, a filha cresce, casa-se e segue seu caminho. A morte também nos bate à porta por sua exigência natural e carrega consigo nossos entes queridos, ao que tivemos inevitavelmente que aceitar.
 
Então o lar se desmorona, restando o vazio com o qual convivemos e as lembranças que nos atordoam às vezes, recordando-nos de momentos felizes, dos êxitos alcançados daquilo que foi “Mi Lugar Soñado”.
 
Agora, neste momento, em que vivo longe de meu país, porém feliz, vou passar a imaginar o que gostaria de ter finalmente como um lugar que poderia chamar de “Mi Lugar Soñado”.
 
Vivi tanto em várias cidades pequenas e grandes que neste exato instante, se não for viajar do que gosto muito, minha mente se transporta a uma montanha.
 
Uma montanha verdejante, cheia de bosques e corredeiras de água límpida, onde eu me banharia todos os dias de calor e onde sob a sombra das árvores ficaria a compor meus versos e a sonhar.
 
Desta montanha, não muito alta, eu poderia divisar, sob o céu muito azul, os vales e as pequenas casas lá existentes.
 
Quase ao topo deste cerro eu teria lá minha casinha de pedras naturais, pintada de branco, muito simples, com uma sala conjugada à cozinha onde prepararia a comida, o chá ou café para receber os amigos. Um quarto para hóspedes, outro para mim, dois banheiros, uma lareira de lenha na sala para aquecer nos dias frios. Janelas adornadas com cortinas brancas e gerânios  e ainda coloridos no exterior.
 
Um jardim com rosas e outras flores adornariam a entrada da casa que não teria cercas para limitar a entrada. Na porta a esperando-me com uma taça de vinho branco, quando chego pela tarde ou à noite, o homem de quem gosto e que me seduz todos os días. 
Um galinheiro de onde colheria os ovos
Um pomar com muitas árvores frutíferas.
Uma horta onde cultivaria hortaliças diversas.
 
Os animais silvestres correriam soltos pelo entorno, sem medo de serem capturados.
Ao final do terreno faria construir um jazigo simples que seria usado após a minha morte e nele estaria escrito em uma placa o seguinte:
 
"Aqui jaz uma mulher que viveu intensamente e morreu feliz dizendo:
 
Eis aqui onde vivi até agora MEU LUGAR SONHADO”.

Chorão

C

Silvia C.S.P. Martinson 

Quando trabalhava como advogada na cidade em que vivia, observei muitos fatos interessantes que ocorreram nos corredores do Forum .
 
Um deles me marcou fortemente por sua peculiaridade.
 
As pessoas que ali se encontravam principalmente os funcionários dos cartórios, acostumados a ver o sofrimento alheio, seja por ausência de um atendimento judiciário justo ou por dramas familiares muito comuns a nós seres humanos, ficaram estarrecidos ao que assistiram.
 
Bem vamos aos fatos propriamente ditos a fim de que não nos estendamos demais e causemos com isto tédio ao leitor. Aconteceu assim:
 
Todos os dias pela tarde, quando se realizavam as audiências e os juízes estavam assoberbados de trabalho, consequentemente os funcionários também a prepararem os expedientes normais a cada caso a ser analisado pelo magistrado designado à questão, se passou o seguinte no corredor em que as partes esperavam a sua vez de serem ouvidas.
 
Havia um senhor – que não me recordo o nome o que também não vem ao caso – que se sentava em um banco a chorar lamentando-se em alto e bom som.
 
Inquirido sobre o que se passava narrou, entre soluços, que a mulher lhe batera e expulsara àquela hora de casa.
 
Todos ali presentes se apiedaram dele.
Acontece que este fato passou a tornar-se cotidiano no recinto do Forum ocasionando então a chamar mais a atenção dos juízes e funcionários.
 
Um dia o juiz apiedado lhe chamou a seu gabinete e lhe perguntou o motivo pelo qual continuava isto a acontecer e porque ele não dava queixa à policia ou à Promotoria Pública do que estava acontecendo, a fim de que fossem tomadas as devidas providencias judiciais.
 
Entre choro e soluços pungentes ele declarou ao juiz que amava a mulher e que à noite na cama sempre se reconciliavam e ainda que no Forum, ele encontrava o ambiente propício a desabafar a sua dor, haja vista que na rua chamaria muita atenção.
 
O juiz ficou boquiaberto com tal atitude inusitada e ao que profundamente aborrecido pela ousadia e também por ter perdido seu precioso tempo de trabalho, o expulsou de seu gabinete dizendo-lhe que resolvesse seus problemas em sua casa e não voltasse a pisar no corredor do poder judiciário com iniquidades.
 
Tempos depois se soube a verdade, como sempre esta tarda porém sempre aparece.
A mulher lhe batia porque ele não queria ir trabalhar apesar de ter saúde.
 
E acima de tudo ficava com o dinheiro da casa, que ela ganhava fazendo faxinas, e ia gastá-lo nas casas de apostas e jogos de cartas e em corridas de cavalos.
 
E aí, então, nos perguntamos: Onde estava realmente a justiça ou injustiça neste caso?

 

Plumas

P

Silvia C.S.P. Martinson

Voarei como as plumas ao vento
ao encontro de teu leito.
Ali repousarei um momento
até que me eleve o lamento
da vida a me chamar.
Então quando o dia clarear,
novamente e somente então,
voltarei a sorrir e a amar.
E nos recônditos de teu peito,
como as plumas ao vento,
levemente, suavemente,
pousarei ali...Para ficar.

O ovo

O

Silvia C.S.P. Martinson

 
Há coisas que por incrível que pareça às vezes voltam à memória e não tens ideia do por que.
Estava conversando outro dia com um amigo escritor, que me narrava fatos de sua infância os quais me pareciam importantes e dignos de serem contados em uma estória e foi o que lhe sugeri.
E, eis que, não sei por que voltaram a mim lembranças de fatos que aconteceram quando eu era muito pequena e talvez na hora em que ocorreram deixaram em meu cérebro marcas tão profundas, que sem dar-me conta lá permaneceram adormecidas até aquele momento. Provavelmente eu teria três ou quatro anos quando aconteceu.
 
Fato este que ficou registrado nos anais da família em uma foto que, depois de tantos anos, ainda guardo.
 
Vou contá-lo, agora, conforme presenciei e vivenciei então.
 
Não sei porquê, nem como, meus pais compraram uma rifa de um ovo de chocolate que seria sorteado na Páscoa.
Pois das poucas coisas que em sorteio meus pais ganharam na vida, a não ser o que adquiriram com seu trabalho, foi este ovo de Páscoa.
 
Ele foi confeccionada à época pela grande e conhecida, em minha cidade, fábrica de doces, balas e chocolates Neugebauer, fundada por imigrantes europeus em 1891 chamados: Franz Neugebauer, Max Neugebauer e Fritz Gerhardt com o nome de Neugebauer Brothers & Gerard Company . A primeira fábrica de chocolates no Brasil.
 
Conheci essa indústria quando estudava e cursava o 2º grau na escola Cãndido José de Godói localizada no bairro então denominado de 4º Distrito.
 
A fábrica era imensa e nela trabalhavam muitíssimos empregados, inclusive vizinhos de nossa família e amigos de meu pai.
 
Lembro ainda que, por muitos anos, desses amigos recebíamos, seguidamente, balas e chocolates que eram distribuídos aos empregados por estarem um pouco avariados, o que impossibilitava sua venda no varejo.
 
Bem, voltando a história do ovo, por incrível que pareça, meus pais foram sorteados com o prêmio e o receberam em casa numa grande caixa de papelão embrulhada em papel celofane que permitia ver seu conteúdo.
 
Para nós era grande, era enorme, era bonito!
Um amigo de meu pai e seu compadre que considerávamos como tio e o chamávamos assim, tirou a foto para nós e para a posteridade, onde estamos minha irmã, o ovo e eu.
 
Pois bem, na Páscoa, minha mãe partiu o ovo, lembro que a casca do chocolate era muito grossa e tinha que ser cortada em pequenos pedaços para que pudesse ser comida.
O ovo era totalmente recheado de bombons e balas de diversos sabores.
 
Nossos olhos de crianças arregalaram-se face a tantas guloseimas oferecidas.
 
Não lembro o quanto comi. Deve ter sido muito, porque fiquei doente e acamada, penso, por alguns dias.
 
Só lembro de que, deitada na cama, pedi a minha mãe mais chocolate ao que ela me alcançou um pedaço não muito grande e disse:
- Não tem mais chocolate! O ovo acabou! Terminou! Hoje verificando a foto concluo que não era verdade a sua afirmativa. Ela o fez para que não ficássemos doentes de tanto comer doces.
 
Entretanto, creio, minha mãe e meu pai devem ter comido por muito tempo ainda e escondidos de nós o famoso e indescritível...
Ovo de Páscoa.
 
Agora, depois de tantos anos, aquele último e inolvidável pedaço de chocolate me sabe na boca, ainda, ao gosto de ausências e de tempos que não voltam mais.

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