Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

Férias na vovó

F

SIlvia C.S.P. Martinson 

Quando éramos crianças do que mais gostávamos se passava no final do ano, depois do Natal, em pleno verão, era ir á casa de minha avó.

Meus pais tiravam alguns dias para descansar.
Ou íamos para uma casa que alugavam na Praia, ou saíamos para visitar minha avó paterna e meus tios e primos na cidade de Ijuí.
Ijuí se localiza no Estado do Rio Grande do Sul-Brasil e foi fundada por meus avós e outros imigrantes alemães que lá foram viver e criar suas famílias.

Creio que não foram os primeiros a chegar ali.
Quando criança esta cidade tinha seus costumes locais bem arraigados e tipicamente alemães. Desde os hábitos de comida como até o idioma falado correntemente era aquele.

Minha avó morreu aos 98 anos falando diariamente e somente seu idioma pátrio.
Normalmente os habitantes eram de religião evangélica, adeptos de Martín Lutero e nos cultos o pastor se expressava somente em alemão.

Meu pai falava e escrevia correntemente em alemão, até porque estudou como interno em uma escola onde se preparava para ser pastor. Por fim abandonou tudo e foi servir ao exército brasileiro em outra cidade do Estado, onde conheceu e se casou com minha mãe.

Soube por meu pai que houve muita perseguição, no pós-guerra, aos imigrantes alemães sob a suspeita de serem nazistas.
Meu pai nunca quis nos ensinar o idioma alemão, acredito, por puro medo, temia a perseguição que graçou no Brasil por muitos anos, infelizmente.

As férias tão ansiadas para ir à casa de minha avó - que, diga-se de passagem, era muito grande, cômoda, bonita de que se localizava em pleno centro da cidade – era uma verdadeira epopeia. Até chegar lá muita coisa se passava.

Saíamos pela manha bem cedinho na camioneta de papai, passávamos por várias cidades até tomar a estrada que nos levaria até Ijuí. Naquela época a estrada era de terra não havia asfalto ali.

A terra era vermelha e penetrava em tudo a poeira, pois que tínhamos que ir com as janelas abertas, era verão, fazia calor e não existia ar condicionado no carro. Somente os mais luxuosos possuíam ventilador.

Quando se aproximava outro veículo meus pais ordenavam que se fechassem as janelas a fim de que não penetrasse mais ainda a poeira.
Naquela região produzia-se muito trigo de outros cereais. Era lindo ver os trigais oscilando ao vento como as ondas do mar, todavia amarelas, quase douradas.

Meu tio casado com a irmã de meu pai era um dos diretores e proprietário de uma grande empresa de exportação de trigo.

Já a noitinha quando estávamos prestes a chegar, meu pai acorria a um posto de gasolina que havia na entrada da cidade para que nos lavássemos, em tonéis de agua que havia fora, os rostos e os braços a fim de que não chegássemos como índios peles vermelhas e também não só a pele como também os cabelos desgrenhados, na casa de vovó, que provavelmente não nos reconheceria após 12 ou 14 horas de viagem.

Vovó nos recebia sempre com muita alegria, a pesar de não entendermos uma palavra do que falava. Expressava-se somente em seu idioma pátrio.

O que mais gostávamos era do quarto que sempre nos reservava à minha irmã e a mim.
As camas eram altas e tinham um lastro como suporte de colchão que era de aço flexível, por sobre o qual era colocado um de crina de cavalo e plumas.

As cobertas também eram de plumas de ganzo e todos os dias tinham que ser sacudidas de tal forma que não ficassem tais plumas localizadas em um só lugar, deixando vazias as demais partes da mesma, consequentemente causando frio a quem as usasse.

Adorávamos aquelas camas altas e flexíveis porque éramos muito traquinas de o que mais fazíamos, para desespero de minha mãe e da avó, era saltar em cima delas a ponto de quase tocarmos o forro da casa que se localizava a uma altura considerável.

Minha mãe e minha avó, em conjunto, gritavam, quando nos pegavam na traquinagem, a plenos pulmões para que parássemos, caso contrario a palmada na bunda seria a solução.

Uma vez rompemos um travesseiro que também era de plumas. Estas voaram por todo o quarto indo parar na rua em frente pois que a janela estava aberta.

Meu pai que sempre foi bonachão se ria a mais não poder, enquanto minha mãe, sempre tão rigorosa, puxou da chinela para nos bater.
Até hoje me lembro da cena maravilhosa!
Ela está viva em minha memória.

Acalanto II

A

Silvia C.S.P. Martinson 

Embalo e canto...
Canto e embalo!...
E cantando me encanto
com estórias de fadas,
sílfides; duendes e gnomos,
que se perdem nas estradas
da imaginação... A criança,
que trago em mim,
a que sou inda assim...
Cabeceia e quase adormece!...
E no acalanto
deste meu canto,
vou embalando;
ninando; o infante,
que não sou eu,
a que seguro e abraço.
As sílfides, a fada,
as bruxas, os gnomos,
esvaem-se no sono
e... Perdem-se no nada!

Tradição de Ano Novo

T

SIlvia C.S.P. Martinson 

Aquele ano seria diferente.
Povoado de Ornaisons – França.

Um povoado pequeno com mil e poucos habitantes e algumas peculiaridades, diferente dos demais povoados.

Viviam ali produtores rurais dedicados a vitivinicultura, de cujos parreirais se extraiam uvas de fina casta para a elaboração de vinhos de alta qualidade, tão apreciados em toda França. Produziam também cervejas de boa cepa provenientes da cevada ali cultivada.
Também em menor quantidade se criavam ovelhas e cabras destinadas ao consumo doméstico e à produção de lã que a seu tempo, após a tosa, era encaminhada às industrias de tecelagem que, posteriormente, enviavam os lindos tecidos aos costureiros para a fabricação de roupas e abrigos para o inverno.

Bem, voltando à história nos contaram que; não eram mais crianças, haviam crescido. Estavam quase todos com 16 a 18 anos mais ou menos. Cresceram juntos.

Quando crianças esperavam a noite de Ano Novo com ansiedade.
O dia transcorria com alguma agitação, tanto de parte dos adultos quanto das crianças.
Os adultos no preparo da casa, das roupas melhores e da ceia que deveria ser diferenciada dos demais dias e do que costumavam comer o ano todo.

Na passagem para o ano a ceia, que ocorria a meia noite, compunha-se de carne de porco, saladas mais elaboradas, vinhos mais finos e por certo de sobremesas mais saborosas que o normal.

As crianças e os adultos banhavam-se mais cedo e vestiam-se, como era o costume, com mais esmero, até porque é inverno nesta época do ano ali.

Era costume desde os antigos que na madrugada do dia 1 de janeiro os jovens do povoado saíssem a recorrer as ruas e pegar tudo que estivesse nas portas das casas ou jardins sem que o proprietário pudesse perceber e colocavam o produto no centro da praça local onde também ficava a prefeitura.

Os jovens saiam então de madrugada de diversos pontos da cidadezinha e carregavam tudo que encontravam depositando no centro da praça.

Aquele ano foi excepcional pois que carregaram bicicletas, vasos de flores, lixeiras e até um automóvel, que com a ajuda de uns quantos, conseguiram abrir a porta do motorista, destravar o veículo e o empurrar até a praça.

Os antigos já haviam esquecido este costume e quando acordaram pela manhã se deram conta da ausência de seus pertences. Foi um alvoroço no povoado. Eram pessoas correndo pelas ruas procurando o que lhes pertencia.

Quando chegaram ao centro do povoado e viram com espanto a praça lotada de badulaques das mais diversas espécies ficaram estarrecidos. E os jovens postados à parte, entre sorrisos, observavam as reações dos pretensos prejudicados com a brincadeira.
Foram duramente inquiridos sobre se haviam sido eles os autores dos desvios, ao que respondiam com a maior desfaçatez:

- Não eu não! Nem pensar que eu seria capaz de tal maldade!

Porém o faziam entre sorrisos e olhares matreiros de uns aos outros.

No entanto, o mais interessante se deu após alguns minutos quando as pessoas começaram a recolher seus pertences. Aí então é que a natureza torpe do homem se fez ver.

Alguns acharam que os pertences de seus vizinhos eram mais valiosos que os seus e começaram a arguir que estes lhes pertenciam. O caos se instalou definitivamente e os prejudicados após reclamarem os seus direitos e não serem atendidos, partiram para a agressão física.

Velhos amigos se destrataram, amizades se desfizeram, pessoas que se tinham por idôneas e honestas deixaram cair a máscara por um simples vaso de flores.

Tudo isto ocorreu ante os olhos estupefatos dos jovens que tinham em alguns vizinhos e até parentes a representação da mais pura honradez.

Esta data ficou gravada na memória e nos anais da história deste povoado.

E hoje por precaução e experiência, os enfeites, vasos, jardineiras e demais objetos que se encontram ordinariamente nas ruas e jardins são recolhidos após a ceia de Ano Novo, na passagem do dia 31 de dezembro a 01 de janeiro, ao interior da casa de cada proprietário.

Oh! Esqueci-me de contar:

Naquele dia também foi desfeito um noivado que já durava alguns anos.
Os pais dos noivos brigaram por uma bicicleta velha e não permitiram o casamento de seus filhos. A noiva até hoje chora desconsolada, ficou mal vista e restou solteirona. O noivo foi para outra cidade, lá se casou e teve um “montão” de filhos.

Diga-se de passagem, e para quase finalizar que foi ele um dos líderes que arquitetou toda a brincadeira. Até hoje contam, os que eram jovens a época, que quando saem à rua e encontram as pessoas que tentaram roubar o que não era seu, as identificam e lhes lançam palavras como:

- Eu sei o que você fez!

Pequeno conto

P

SIlvia C.S.P. Martinson 

¡Tiene que ser así!
Y así es.
España tierra de leyendas y de pasiones.
De sus rocas, de su mar transparente y también caliente, de donde se extraen muchas historias.
 
Su aire es cómplice de muchos sentimientos. Mientras aquellos que no se pueden contar y que deben ser olvidados en los caminos inaccesibles de las rocas, a los que el aire, se acomoda en esconderlos.
Tierra vieja de viejos amores...
 
SÉCULO XVII
 
Apesar de estarem na Europa em plena fase do Renascimento e do Barroco na produção artística, na  Espanha ainda em pleno século XVII esta sofria a influência das tradições medievais, originadas pelo apego aos temas do cristianismo daque- la época, diferentemente das ideias humanistas cuja penetração já se fazia sentir pelo continente europeu.
 
A igreja católica foi preponderante neste aspecto influenciando fortemente os países ibéricos a não adotarem tais ideias humanistas, mantendo assim a hegemonia e o poder da Igreja na fase da Contrarreforma, atrasando sobremaneira a cultura e a educação de um povo.
 
É, então, precisamente nesta fase que começa a se desenrolar nossa história, que estranhamente, para uns é inverossímil, que se passe até nossos dias. Para outros, entretanto, é perfeitamente aceitável.
 
Comecemos a contá-la:
Um povoado pequeno ao pé de montanhas rochosas em um lugar na Espanha.
Um povo composto de camponeses e criadores de ovelhas e cabras.
Um palácio medieval e uma família rica, fanática e dominante
Uma igreja antiga originária, arquitetonicamente, dos templos construídos durante a dominação árabe.
Dois jovens com educação e posturas e princípios diferentes.
 
Zaida lia os sortilégios, elaborava mezinhas, poções para saúde, conhecia os “segredos da terra”, do ar, do fogo e da água, ou seja, dos elementais.
 
Filha de alquimistas lhe foram passados os conhecimentos que levam à transformação dos metais e a transmutação e transformação dos elementos e energias terrestres e universais.
 
Considerada na época uma bruxa – até porque, naquele tempo, às mulheres não era dado acesso à ciência e a educação - era mal vista no lugar em que morava. Inobstante quando havia problemas com doenças o povo daquele lugarejo acorria a ela para que os socorresse com seus conhecimentos.
 
A Espanha de então era bastante atrasada, bem como quase toda Europa, nas lides médicas.
Zaida vivia em um povoado na Espanha situado ao pé de montanhas rochosas em um vale semiárido, hábitat de cabras, ovelhas, animais de caça e serpentes venenosas, das quais extraía os fluidos necessários aos seus medicamentos e poções, isto em sua casa localizada junto a um precipício.
 
Neste povoado vivia em uma igreja um pároco muito velhinho, que era prior daquela paróquia, que, todavia, a pesar das diferenças religiosas, entendia e respeitava os poderes e conhecimentos da jovem Zaida. Da Zaida dos longos cabelos louros e dos olhos verdes como a relva do campo, como as águas do mar.
Eis que o velho pároco morre.
 
Vem para assumir a paróquia um sacerdote jovem, culto e educado dentro dos parâmetros da igreja católica espanhola e nos melhores conventos da época, destinados a filhos de famílias influentes e poderosas, ou seja, da casa dos proprietários do castelo existente no povoado. Seu nome: Luíz de los Rios.
 
Luíz assume seu posto e aos poucos vai conhecendo mais amiúde o povo dali, suas histórias e costumes, haja vista ter sido criado dentro do convento com quase nenhum contato com a gente do lugar.
 
Luíz como todo jovem, trazia de seu berço a formação religiosa à época, os preconceitos e a limitações que sua fé lhe impunham.
Sabedor da presença da “bruxa” no povoado passa a persegui-la denunciando-a a seus superiores.
 
O destino e a vida são sábios em seus propósitos e às vezes criam situações insuspeitas aos homens, visando seu progresso e abertura de mente às verdades universais.
 
Aquela época grassavam as pestes e as doenças que na maioria das vezes eram fatais ao homem, principalmente pela falta de higiene existente 
Eis que Luíz adoece.
 
Todos os conhecimentos e medicamentos do populacho lhe são ministrados sem sucesso.
Por fim na tentativa última de lhe salvarem a vida, Zaida é convocada a ir ao seu leito, como derradeiro recurso.
 
Ela, em toda sua suavidade aceita o encargo sabendo, no entanto, o quanto aquilo a exporia ao perigo de uma perseguição feroz por parte da Igreja.
 
Segue ao encontro do doente, lhe aplica suas mezinhas, poções e invoca em seu benefício às forças da Natureza, estas tão de seu domínio. E o faz por um longo período.
O tempo passa…
Luíz aos poucos melhora e vai retomando as suas forças, ao mesmo tempo em que por esta convivência e proximidade, os jovens começam, sem perceber, a necessitar cada vez mais da presença um do outro.
Apaixonam-se.
O povo nota. Condena tal atitude e comunica à família e aos superiores eclesiásticos do sacerdote.
 
Por ser considerada bruxa e incitados pela família poderosa do sacerdote a qual não admitia àquele relacionamento, com Zaida e sabedores do destino reservado às bruxas, (a fogueira) os jovens combinam fugir para um lugar distante.
 
Luíz deveria dar apoio e cobertura a Zaida a fim de que seus propósitos de fuga se dessem a contento e seu amor se concretizasse definitivamente.
 
No dia aprazado, no entanto, ele amedrontado e pressionado por sua família e por sua fé foge, acaba deixando Zaida a mercê de seus perseguidores.
 
Ela vendo-se abandonada por aquele a quem tanto amara, ainda consegue fugir às altas montanhas rochosas e à beira de um precipício lança um último olhar ao horizonte.   Lembra de seu amor… O perdoa mentalmente e solicita à Natureza que lhe oportunize , com ele, novos encontros, em outros tempos, em um  futuro quem sabe…
 
Mira o horizonte, chega à beira do precipício e joga-se ao vazio em busca do esquecimento.
Os séculos se sucedem e com eles novos encontros entre os dois se dão, sempre cheios de paixão e reconhecimento íntrinseco, nem sempre recordado conscientemente.
 
Hoje cabe a Luíz, mesmo que não relembre, expurgar de si o sentimento de culpa pela ausência inflingida.
 
A Zaida a conformação pelas dores físicas que sofre em virtude de suas opções e agressões à mãe Natureza.
Por ora, nesta vida, voltam a se reencontrar, se reconhecem e se apaixonam novamente.
 
Las rocas muy largas y viejas también, con el tiempo, a veces, caen y se transforman en arena, que se va a lejos por el aire, tanteando.
Mientras los malos sentimientos también son como las arenas, pero se pierden con el tiempo.

Meus olhos

M

SIlvia C.S.P. Martinson 

Meus olhos sonhadores
são como as águas marinhas
profundas, inescrutáveis.
Há histórias neles contidas
de ilusões que a muito,
muito tempo vivi.
Eles veem mais longe,
e expressam inumeráveis esperanças,
se alegram na fantasia,
não vivem do passado,
esquecem-se da tirania.
Sabem sorrir sem palavras,
ao renascer cada dia,
para viver, amar e ser feliz.
São a luz que se derrama
como as ondas do mar,
nas calmas, tranquilas
praias da vida,
eternamente a sonhar.

Lembranças – Óleo de figado de bacalhau

L

SIlvia C.S.P. Martinson 

Quando acordei e ao tomar os remédios pela manhã, meia hora antes do café, como o médico me havia prescrito, voltaram-me, não sei por que à memória, lembranças de minha infância.
 
Lembranças de quando éramos pequenas em minha casa, a qual tinha um grande pátio cheio de árvores frutíferas e flores que minha mãe amava plantar para embelezar seus recantos. Passávamos ali os dias brincando e fazendo todo tipo de peraltices.
 
Meu pai construiu sobre um cinamomo velho uma espécie de refúgio para nós. Ali subíamos por um a escada que nos levava até o enclave de galhos grossos, onde havia bancos para sentarmo-nos e uma mesinha improvisada.
 
Neste recanto da árvore brincávamos de casinha, ou seja, ali improvisávamos comidas em latinhas que levávamos para cima.
Essas comidas eram feitas de terra molhada, folhas de árvores e enfeitadas com flores do jardim.
 
Em nossa imaginação de crianças as bonecas iriam comer toda este manjar para depois dormirem em suas caminhas improvisadas.
Era um mundo de sonho...
 
Outras vezes fazíamos brincadeiras perigosas, amarrávamos cordas nos galhos e os desciámos por elas até o solo, imaginando que, como o personagem Tarzan, estávamos na selva.
 
Para nós aquele pátio de quase 100 metros e cheio de árvores frutíferas era como se fosse uma mata densa e cheia de possibilidades a aventurar-se naquele paraíso tão nosso.
 
De outra feita imaginávamos que estávamos em um circo e para tal amarrávamos uma corda de uma árvore à outra, bem atada, e por sobre ela caminhávamos assim, como havíamos visto em um espetáculo circense.
As quedas não foram poucas e até hoje restam cicatrizes e dores, marcas das traquinices feitas.
 
Minha mãe e meu pai trabalhavam muito para nos manter e educar dignamente, não com riqueza, porque não éramos ricos, porém com acesso principalmente à cultura, à educação, que naquela época era muito boa e ministrada nas escolas públicas bem conceituadas, onde se faziam testes rigorosos para poder frequentá-las.
 
Bem, em realidade, estas lembranças vieram pela manhã enquanto tomava meus remédios matinais e pensei por que elas aconteceram?
 
Então me recordei, também, que àquela época, eventualmente ficávamos doentes.
Havia doenças sérias para as quais já existiam algumas vacinas, tal como para a paralisia infantil, difteria e outras.
 
Todavia em minha infância não sei dizer se por falta de vacinas ou recursos financeiros, tivemos tanto algumas graves, como as normais que poderíamos dizer, caseiras.
 
Para as caseiras há diversos remédios que minha mãe conhecia e aplicava com rigor, por exemplo: quando estávamos com dor de garganta eram feitos gargarejos que consistiam ser de água carregada de sal e vinagre para gargarejar e limpar da infecção as amigdalas.
 
Para a febre ela usava nos colocar na cama bem tapadas com cobertas e dar-nos um chá quente com mel e limão e mais um comprimido de aspirina para baixar a temperatura, o que fazia suássemos muito, encharcando roupas, lençóis e cobertas.
Penso que surtia efeito, porque a febre cedia e no outro dia já estávamos em franca recuperação.
 
Porém o que eu mais detestava e que ela seguidamente nos aplicava para limpeza dos intestinos era o tão famoso Azeite de Ricino, que exercia a função de laxante, permitindo que expulsássemos de nossos organismos elementos indesejáveis.
 
Lembrando bem agora, do que eu tinha verdadeiro asco e que me era administrado seguidamente, por ser magra e não gostar de comer, era o chamado Óleo de Fígado de Bacalhau. Deste eu corria por todo o pátio escondendo-me para não o tomar. E quando conseguiam me pegar e sujeitar, além de ter que engoli-lo, levava umas boas palmadas na bunda para aprender a não ser desobediente.
 
Quanto sacrifício de minha mãe para nos tornar gente!
Meu pai trabalhava fora o dia todo e só retornava a noite para casa.
E hoje penso que óleo de Fígado de Bacalhau foi eficiente...
Sigo forte e saudável, física e mentalmente, até hoje, apesar dos anos transcorridos.
Minha mãe tinha razão.

Lápis

L

Silvia C.S.P. Martinson 

Dispensei-o a tanto...
Obsoleto ficou
entre:
...“mal traçadas linhas”,
rabiscos, desenhos,
cartinhas.
Lembranças de jovem,
de quando tinha serventia .
Foi apequenado, c’o tempo,
pelo uso improvisado.
Transmitia recados,
juras e traços...
Encontro-o hoje,
o toquinho,
entre as páginas
amarelecidas de um passado,
na gaveta, n’um escaninho,
meu pequeno lapisinho.
Pobrezinho!
Troquei-o por uma caneta,
que se diz compacta,
uma tal de ... Esferográfica.
Que rata!

Meu lugar sonhado

M

SIlvia C.S.P. Martinson 

Estranho pensei: “MEU LUGAR SONHADO” é este o título que me foi proposto. Nunca havia imaginado em toda minha vida projetar para mim um final em algum lugar definido.
 
Depois de tudo o que vivi, trabalhei, estudei, formei minha família, morei em diversos lugares e viajei, me parece estranho ficar definitivamente em um lugar.
 
A vida transcorreu tão rapidamente e transcorre que não me dei conta que de certa forma envelhecemos.
 
Somente agora com a proposta interessante de escrever um texto sobre “Mi Lugar Soñado” é que parei para pensar qual seria este lugar para mim.
 
Na infância tive a felicidade de ter uma família constituída por pai, mãe e irmã, que naturalmente preencheram as minhas necessidades materiais e acima de tudo, através do carinho e atenção de meus pais recebi os ensinamentos sobre moralidade, amizade, religiosidade e respeito ao ser humano. Enfim um lar. 
 
O que eu gostava em criança era quando meus pais saiam de férias para a praia, íamos em uma camioneta Ford cujos bancos de trás eram de madeira e à frente meu pai conduzia e minha mãe e ele iam cantando músicas o tempo todo. Aos meus pais  encantava-lhes cantar. Nosso mundo era mágico então.
 
Já mais velha casei e constituí família, exercendo neste novo lar a função de mãe, esposa e companheira nas decisões que a vida nos obrigava a tomar. Nem sempre as mais acertadas, porém as que nos pareceram à época as mais adequadas e corretas à situação que se apresentava.
 
Assim que naqueles anos, naqueles momentos e lugares onde vivi eles me instigaram a supor que eram: “Mi Lugar Soñado”.
 
O tempo passa, a filha cresce, casa-se e segue seu caminho. A morte também nos bate à porta por sua exigência natural e carrega consigo nossos entes queridos, ao que tivemos inevitavelmente que aceitar.
 
Então o lar se desmorona, restando o vazio com o qual convivemos e as lembranças que nos atordoam às vezes, recordando-nos de momentos felizes, dos êxitos alcançados daquilo que foi “Mi Lugar Soñado”.
 
Agora, neste momento, em que vivo longe de meu país, porém feliz, vou passar a imaginar o que gostaria de ter finalmente como um lugar que poderia chamar de “Mi Lugar Soñado”.
 
Vivi tanto em várias cidades pequenas e grandes que neste exato instante, se não for viajar do que gosto muito, minha mente se transporta a uma montanha.
 
Uma montanha verdejante, cheia de bosques e corredeiras de água límpida, onde eu me banharia todos os dias de calor e onde sob a sombra das árvores ficaria a compor meus versos e a sonhar.
 
Desta montanha, não muito alta, eu poderia divisar, sob o céu muito azul, os vales e as pequenas casas lá existentes.
 
Quase ao topo deste cerro eu teria lá minha casinha de pedras naturais, pintada de branco, muito simples, com uma sala conjugada à cozinha onde prepararia a comida, o chá ou café para receber os amigos. Um quarto para hóspedes, outro para mim, dois banheiros, uma lareira de lenha na sala para aquecer nos dias frios. Janelas adornadas com cortinas brancas e gerânios  e ainda coloridos no exterior.
 
Um jardim com rosas e outras flores adornariam a entrada da casa que não teria cercas para limitar a entrada. Na porta a esperando-me com uma taça de vinho branco, quando chego pela tarde ou à noite, o homem de quem gosto e que me seduz todos os días. 
Um galinheiro de onde colheria os ovos
Um pomar com muitas árvores frutíferas.
Uma horta onde cultivaria hortaliças diversas.
 
Os animais silvestres correriam soltos pelo entorno, sem medo de serem capturados.
Ao final do terreno faria construir um jazigo simples que seria usado após a minha morte e nele estaria escrito em uma placa o seguinte:
 
"Aqui jaz uma mulher que viveu intensamente e morreu feliz dizendo:
 
Eis aqui onde vivi até agora MEU LUGAR SONHADO”.

Chorão

C

Silvia C.S.P. Martinson 

Quando trabalhava como advogada na cidade em que vivia, observei muitos fatos interessantes que ocorreram nos corredores do Forum .
 
Um deles me marcou fortemente por sua peculiaridade.
 
As pessoas que ali se encontravam principalmente os funcionários dos cartórios, acostumados a ver o sofrimento alheio, seja por ausência de um atendimento judiciário justo ou por dramas familiares muito comuns a nós seres humanos, ficaram estarrecidos ao que assistiram.
 
Bem vamos aos fatos propriamente ditos a fim de que não nos estendamos demais e causemos com isto tédio ao leitor. Aconteceu assim:
 
Todos os dias pela tarde, quando se realizavam as audiências e os juízes estavam assoberbados de trabalho, consequentemente os funcionários também a prepararem os expedientes normais a cada caso a ser analisado pelo magistrado designado à questão, se passou o seguinte no corredor em que as partes esperavam a sua vez de serem ouvidas.
 
Havia um senhor – que não me recordo o nome o que também não vem ao caso – que se sentava em um banco a chorar lamentando-se em alto e bom som.
 
Inquirido sobre o que se passava narrou, entre soluços, que a mulher lhe batera e expulsara àquela hora de casa.
 
Todos ali presentes se apiedaram dele.
Acontece que este fato passou a tornar-se cotidiano no recinto do Forum ocasionando então a chamar mais a atenção dos juízes e funcionários.
 
Um dia o juiz apiedado lhe chamou a seu gabinete e lhe perguntou o motivo pelo qual continuava isto a acontecer e porque ele não dava queixa à policia ou à Promotoria Pública do que estava acontecendo, a fim de que fossem tomadas as devidas providencias judiciais.
 
Entre choro e soluços pungentes ele declarou ao juiz que amava a mulher e que à noite na cama sempre se reconciliavam e ainda que no Forum, ele encontrava o ambiente propício a desabafar a sua dor, haja vista que na rua chamaria muita atenção.
 
O juiz ficou boquiaberto com tal atitude inusitada e ao que profundamente aborrecido pela ousadia e também por ter perdido seu precioso tempo de trabalho, o expulsou de seu gabinete dizendo-lhe que resolvesse seus problemas em sua casa e não voltasse a pisar no corredor do poder judiciário com iniquidades.
 
Tempos depois se soube a verdade, como sempre esta tarda porém sempre aparece.
A mulher lhe batia porque ele não queria ir trabalhar apesar de ter saúde.
 
E acima de tudo ficava com o dinheiro da casa, que ela ganhava fazendo faxinas, e ia gastá-lo nas casas de apostas e jogos de cartas e em corridas de cavalos.
 
E aí, então, nos perguntamos: Onde estava realmente a justiça ou injustiça neste caso?

 

Plumas

P

Silvia C.S.P. Martinson

Voarei como as plumas ao vento
ao encontro de teu leito.
Ali repousarei um momento
até que me eleve o lamento
da vida a me chamar.
Então quando o dia clarear,
novamente e somente então,
voltarei a sorrir e a amar.
E nos recônditos de teu peito,
como as plumas ao vento,
levemente, suavemente,
pousarei ali...Para ficar.

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