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Uma cesta de cornos

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Silvia C.S.P. Martinson

Nos anos 60, em Espanha, o amor à tauromaquia era muito mais acentuado do que atualmente. O crescimento dos adeptos contra touradas têm aumentado em detrimento dos adeptos das touradas, ao contrário dos adeptos do futebol, que foi crescendo cada vez mais até que atingiu o atual volume de seguidores a nível mundial.

Recordo-me quando, em criança, falava com Don Antonio, marido de Dona Luchi, que era engenheiro, um homem culto e que defendia a festa nacional, em ultraje ao futebol, argumentando que esta era espanhola, enquanto o futebol tinha sido inventado pelos ingleses.

Havia grandes mestres de toureio, e entre eles destacava-se um par de matadores que polarizavam os adeptos, tal como hoje acontece com as grandes equipas de futebol, onde um par está sempre em disputa pelo primeiro lugar.

Um dos matadores distinguiu-se por um estilo de toureio apressado, com movimentos acelerados e voltas bruscas em frente à cara do touro, foi gravemente ferido nas suas touradas porque arriscava o seu corpo ao aproximar-se demasiado do touro, ao ponto de, no final da tourada, o seu traje estar manchado de vermelho pelo sangue do touro. Os jovens preferiam o seu estilo de toureio às formas mais clássicas de toureio

Outro destes distinguia-se por um estilo de toureio muito mais clássico, sempre firme e sem perder a compostura, o que agradava muito mais aos aficionados mais velhos.
Não vou tomar partido por nenhum deles, porque gostei de ambos os toureiros no desenvolvimento do seu toureio, um pela sua seriedade e o outro pela sua alegria.

O fato é que houve algumas desavenças entre ambos por causa do tamanho dos touros e dos seus chifres e da proximidade dos toureiros à ponta dos chifres na realização das touradas.

Conta-se que um deles, que tinha sido casado com uma bela senhora de quem se tinha separado, aparentemente devido a alguns casos de infidelidade para com o seu casamento, enviou ao outro, como presente, um cesto cheio de cornos de touros bravos e enormes, gabando-se dos touros que costumava matar nas suas touradas, insinuando que os touros que o outro mestre matava eram touros com chifres pequenos, ao contrário dos que ele matava.

O outro mestre, em resposta, enviou-lhe uma cesta cheia de ovos, e dentro dela, um envelope com um bilhete escrito à mão por ele, onde se lia: “Cada um dá o que tem de sobra”.

Não mencionarei os nomes de nenhum dos dois toureiros, mas qualquer fã da época sabe quem eram eles e também sabe que o combate foi muito falado publicamente e celebrado nos anos 60.

Distraídas

D

Silvia C.S.P. Martinson

A rua estava repleta de pessoas que caminhavam apressadamente umas, outras, no entanto, mais devagar. Estas últimas iam a seu passo, apreciando as vitrines das lojas que já se encontravam abertas.
 
Era a semana que antecede o Natal. As lojas em sua grande maioria estavam com suas vitrines cheias de sugestões bonitas a fim de que as pessoas se interessassem de comprar algum objeto, ou roupas, ou brinquedos para ofertar, como presentes, aos seus queridos na noite de Natal. Costume este tão comum em certos países.
 
Os três caminhavam na mesma calçada, cada um a seu ritmo. André mediava os 65 anos e ia andando com certa pressa, ao mesmo tempo em que atendia, em seu celular, uma chamada de seu neto, o qual lhe recomendava comprar a ele uma bicicleta que havia visto em uma determinada loja e que lhe agradara muitíssimo, acima de tudo uma vez que a mesma preenchia sobremaneira às suas expectativas e necessidades para quando se deslocasse à universidade em que estudava.
Ela, Lidia, deslocava-se tranquilamente, olhando as pessoas que passavam ao mesmo tempo em que se recordava de fatos ocorridos em seu passado. Um desses fatos a fez lembrar-se de que aos 20 anos, agora com 65, se apaixonara por um jovem e ele por ela. Este se chamava André. Estavam ambos já na universidade, cursavam distintas matérias uma vez que ele pretendia ser advogado e ela médica.
 
Lembrou ainda que ao final do curso de cada um, ambos, se separaram. Cada qual seguiu seus objetivos em especializar-se em cursos de pós-graduação em outras universidades.
Eventualmente se encontraram, todavia a vida, os compromissos e outros interesses acabaram por separá-los.
 
Mais atrás e em sentido contrário vinha pela mesma calçada um homem de idade mais avançada, apoiava-se em uma bengala, haja vista que o peso dos anos já se lhe faziam sentir mais fraco, trôpego, sem a higidez da juventude.
 
Chamava-se Francisco este velho homem que caminhava lentamente. Havia sido professor na universidade.
 
Ao olhar aquelas duas criaturas que vinham tão distraídos e ensimesmados, recordou-se imediatamente de seus alunos André e Lidia aos quais ele sempre olhava com certa inveja face a juventude e beleza que ambos tinham àquela época.
 
Notou ainda que, ainda assim, os dois apesar da idade mantinham traços de beleza que o tempo não lhes roubou.
 
Francisco observou que ambos andavam sem separado, não como antes na universidade quando então enamorados caminhavam de mãos dadas e seguidamente os via, pelas esquinas, abraçados a beijar-se.
Francisco tentou chamar-lhes naquele momento. Lidia olhava distraída uma vitrine de uma loja de roupas. André estava ocupado atendendo sua chamada no celular, completamente absorto.
 
André e Lidia simplesmente não se haviam dado conta da presença de um ou outro naquela rua.
 
Francisco emocionado ante tantas lembranças tentou uma vez mais chamar a atenção de seus ex-alunos, no entanto a voz se lhe tornou embargada, os olhos se lhe encheram de lágrimas. Uma forte dor no peito fez com que se acomodasse em um banco que havia na calçada.
 
Francisco ali adormeceu para sempre enquanto as pessoas, cada uma, seguiam seus caminhos, seus destinos pelas estradas da vida, total e absolutamente distraídas.

NA MINHA CASA EU MANDO (Quando minha esposa não está)

N

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao portugués por SIlvia Cristina Preissler

Conta a lenda de Rozas do Porto Real que Majadillas, que era uma aldeia adjacente a Cadalso de los Vidrios, foi abandonada no primeiro terço do século XIX porque as formigas a comeram. Seja verdade ou não, o que é certo é que estava situada em um lugar muito bonito, próximo ao ribeirão Tórtolas, e que do local se conservam de pé as ruínas de sua igreja de São Pedro. Além da igreja, neste pequeno povoado havia 22 casas e 1 taberna. A população era de 20 vizinhos que viviam dedicados à agricultura.

Continuamos contando, segundo a lenda, que à aldeia de Majadillas chegou um dia uma expedição enviada pela Irmandade Provincial de Pecuaristas, interessados em aumentar ali o número de cabeças de gado, que aparentemente tinha os pastos muito desaproveitados. Essa expedição levava vacas e cavalos para doar aos habitantes locais, e o critério que adotaram para distribuí-los baseava-se no fato de que aqueles lares onde a direção da casa era exercida pela mulher receberiam uma vaca leiteira, e nos lares em que o homem dirigia o lar, seria presenteado com um cavalo.

O resultado de toda a operação foi que em todas as casas a dona de casa mandava, exceto na casa de Juan, o Carvoeiro, que afirmou que em sua casa ele mandava. Em cada casa deu-se uma vaca, exceto na casa de Juan, o Carvoeiro, a quem deram um cavalo totalmente branco, que levou para sua casa puxado pela guia e o prendeu no anel de ferro que havia junto à porta de entrada de sua casa.

Quando sua esposa viu o cavalo branco em sua porta, perguntou a Juan sobre ele. Ele explicou que havia escolhido um cavalo porque assim poderia usá-lo para carregar os sacos de carvão vegetal que produzia. Sua esposa respondeu que o cavalo branco deveria ser trocado por outro que fosse negro, primeiro porque ela gostava mais daquela cor, e segundo, porque com o pó negro do carvão, sempre estaria sujo.

O carvoeiro voltou com o cavalo e disse ao responsável pela distribuição dos animais que ele deveria trocar por um cavalo negro, porque sua mulher gostava mais daquela cor. O responsável imediatamente disse ao seu assistente: “A ESTE, RECOLHA O CAVALO E DÊ-LHE UMA VACA, PORQUE EM SUA CASA MANDA SUA MULHER, POR MUITO QUE ELE DIGA QUE MANDA”.

Convite

C

Silvia C.S.P. Martinson

Me convidas a viver, a querer-te
e te sigo sem parar
iludida em sonhar
que poderás querer,
em algum tempo,
em algum lugar,
deixar em meu corpo
do teu ardor as marcas.
E, eu, como tua amante,
ficarei para sempre
e cada vez mais
a te desejar
eternamente, a tua espera
a vibrar e a te amar.

Tio Raimundo e o escorpião

T

Silvia C.S.P. Martinson

Tio Raimundo como sempre chegava de mansinho sem fazer alarde de sua presença.
Quando nos dávamos conta ele estava sentado em uma cadeira frente a grande mesa de mármore que havia no terraço coberto nos fundos da casa de sua sobrinha.
 
Quando víamos lá estava ele sentado quietinho, com um sorriso esboçado na cara, como adivinhando que estávamos nos aproximando. Normalmente isto ocorria depois do almoço. Ele nunca vinha para almoçar. Já o fizera em sua casa.
 
Tomava de um barco, porque vivia em uma ilha próxima da capital e chegava à primeira hora da tarde, ou para ir aos médicos, porque já era velhinho, ou para visitar os parentes, quando então era sempre por todos bem vindo.
 
As crianças o adoravam pelas histórias que sempre tinha para contar. Em uma dessas visitas contou que se encontrava em uma pescaria na beira do rio e como havia muitos peixes que pescara resolveu limpá-los ali mesmo, acocado em um barranco de areia, junto à água.
 
Enquanto limpava os peixes não percebeu que um escorpião lhe subia pela perna.
Somente quando sentiu a picada do bicho e a dor que lhe causou é que se deu conta do perigo que isto representava. As pessoas que vivem no campo conhecem o quanto é mortal a picada de certas cobras ou escorpiões.
Aquele escorpião, segundo contou Tio Raimundo, era dourado e conforme ele disse, estes são os mais mortais, porque altamente venenosos.
 
E assim narrando foi que contou como se salvou. Disse que sacou de um facão que sempre carregava consigo e cortou de um só golpe um pedaço de carne da canela, deixando o osso exposto onde o bicho lhe havia picado.
 
O sangue lhe correu aos borbotões e ele que sempre levava consigo, em suas pescarias, algodão e compressas, fez ali mesmo seus curativos, após o que recolheu tudo e foi para um hospital na cidade a fim de ser tratado.
Com o tempo e muito atendimento médico curou-se.
 
Todavia o mais interessante e inexplicável de tudo é que todos os anos, no mesmo lugar da picada a pele que ali cresceu ficava avermelhada e ardia muitíssimo, causando-lhe dores e muitos cuidados para que aquela não se rompesse novamente deixando o osso da perna exposto.
 
E assim contando Tio Raimundo levantou a perna da calça que usava e mostrou às crianças a grande cicatriz que ali se encontrava.
As crianças ficaram de boca aberta e olhos arregalados enquanto Tio Raimundo lhes mostrava o que sucedera e ao mesmo tempo aproveitou para aconselhar:
 
- Crianças queridas nunca se aproximem de um escorpião dourado, ele é bonito, todavia traiçoeiro e malvado.
 
E sorrindo, deu adeus, levantou-se e tranquilamente, como sempre, foi embora.

 

¡ Mundo Mundo!

¡

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Sílvia C.S.P. Martinson

Havia uma família em Las Rozas del Puerto Real que tinha um cachorro chamado Mundo.

Naqueles dias haviam realizado a matança de porcos, criados durante o ano e cevados com castanhas e bolotas, tão saborosas e que existem em seus montes.

Foram elaborados chouriços e morcelas curados nas cordas e varas que se conservavam na cozinha e consumidos durante todo ano juntamente com presuntos, paletas, lombo de toucinho, cara e orelhas e lombos curtidos igualmente.

Se utilizava para curtir estas peças além do sal, pimenta de Vera, alhos das Pedroñeras e a erva chamada orégano que se cria nas ladeiras dos montes que tem uma qualidade extraordinária e serve para a conservação das carnes.

Aconteceu que uns dias depois o pai da família enfermou e morreu repentinamente.

Naquela época se costumava velar os mortos, pelos familiares e amigos em sua própria casa, durante vinte e quatro horas, até o dia seguinte quando se procedia enterrar o cadáver.

Mundo, o cachorro, levava todo dia sem comer por conta do esquecimento de sua dona. E estando esfomeado subiu em uma mesa e alcançou uma réstia de chouriços e os levou à boca cruzando a sala do velório onde a dona da casa dando gritos lastimosos começou a dizer: “Ah! Mundo, Mundo, como os estas levando! E dos melhores!”

O cômico destas frases está em que a mulher se referia aos embutidos que havia roubado o esfaimado animal e em troca os assistentes ao velório acreditavam que a mesma se referia às pessoas que iam falecendo no correr do tempo.

Um chão chamado Tenazas

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Sílvia C.S.P. Martinson
 
A avó paterna de Estrella, minha esposa, se chamava Concepción.
 
Era filha mais velha do primeiro matrimonio do avô León , que posteriormente ficou viúvo. Veio este a casar-se em segundas núpcias com uma jovem chamada Leonor com quem teve muitos filhos.
 
O avô León estando viúvo costumava levar muitos convidados para comer em sua casa e cabia a Concepción, como filha mais velha, preparar comida ao pai e a seus convidados, o que já estava farta de fazê-lo.
 
E pensando que se fizesse mal os alimentos, os convidados deixariam de vir a sua casa e de dar-lhe trabalho. Então preparou umas batatas cozidas carregadas em pimentas que efetivamente o convidado não se atreveu a seguir comendo e tampouco voltou a sua casa.
As batatas as colocou para comer ao seu cachorro de nome
 
Tenazas, que cheio de fome se avançou ao recipiente, cheio, para comer. Dando a primeira bocada, o cão, soltou um grunhido queixoso e saiu correndo da casa e até hoje não voltou.
 
Conce, como a chamava-mos todos, era uma mulher cheia de vida e de maneiras graciosas.

Raimundo Tío Mundo

R

Sílvia C.S.P. Martinson

Ele era velho. Muito velho.
Assim nos parecia.

Este homem velho era de uma simpatia e cultura incríveis.
Sua cultura provinha da muita leitura que fazia e dos livros que conseguia que lhe chegassem às mãos.
Todos os que o conheciam e apreciavam sua companhia o obsequiavam com livros, fossem novos ou velhos. Não importava.

Aos livros e aos parentes ele dedicava seu tempo depois de anos de trabalho na pesca, ou seja, na captura de peixes e sua posterior venda no mercado, onde, cedo da manhã, já se encontrava para a inspeção e seleção do pescado antes de sua venda ao público.

Ele residia em uma ilha próxima à cidade, onde mantinha, em um bom pedaço de terra, sua casa e sua família.
Era casado e tinha três filhos que o ajudavam na plantação de hortaliças e árvores frutíferas. A venda das verduras e frutas fazia com que o orçamento doméstico fosse razoavelmente suficiente para a manutenção e o bem-estar de todos.

Chamava-se Raimundo, todavia todos o conheciam por Tio Mundo.

Depois de muitos anos de trabalho, se aposentou.
O trabalho duro lhe deixou sequelas: tinha dores nos quadris e caminhava com certa dificuldade.

Tio Mundo costumava atravessar o rio de barca para, na cidade, consultar os médicos no Centro de Saúde e também visitar os parentes.
Seus primos e sobrinhos o conheciam e o apreciavam sobremaneira por sua natural afabilidade e pelas histórias que costumava contar a todos, especialmente às crianças da nova geração familiar.

Ele, diga-se de passagem, chegava às casas sem se anunciar, entrando e saindo delas como se fossem suas. Até os cachorros mais bravos se deitavam aos seus pés e lhe lambiam as mãos.
As crianças, quando o viam, corriam para abraçá-lo e, como sempre acontecia, ficavam pedindo que lhes contasse histórias.

Tio Mundo, com um grande sorriso no rosto, sentava-se em uma cadeira debaixo de uma árvore, se o tempo permitia, ou, no inverno, perto de um fogão à lenha, que naquela época havia em quase todas as casas. Então começava a contar coisas de seu passado que, para quem as ouvisse, pareciam tiradas de bons livros de histórias.

As crianças ao seu redor, embevecidas, o ouviam com atenção, sem dele desviar os olhos.

Uma vez, contou-lhes sobre uma cobra que se escondeu debaixo de um armário de sua casa. Não esqueçamos que ele morava no campo.

A cobra saía debaixo do armário à noite e ia beber o leite do prato do gato, que havia sido colocado ali para o bichano.
Com o tempo, o gato começou a ficar magro, mais arisco e triste, até que um dia se descobriu a verdadeira causa.

A cobra, que era bem grande, foi achada onde se escondia. Dali foi retirada e morta. Seu corpo foi pendurado num galho alto de uma árvore para que secasse e, posteriormente, sua pele, que era muito bonita, fosse aproveitada para a feitura de uma bolsa para mulheres.

As crianças, com os olhos arregalados, pediram outra história. Tio Mundo contou mais uma. Levantou a perna da calça até o joelho e mostrou uma cicatriz. Ali faltava boa parte do músculo.

Relatou que estava caçando um jacaré à beira do rio. Estava tão atento ao bicho que não percebeu que, próximo a ele, havia um ninho de jararacas, cobras muito venenosas e agressivas, que costumam atacar os homens que lhes parecem oferecer perigo.

Na ânsia de caçar o jacaré — cuja carne é saborosa e cuja pele é valiosa para a fabricação de calçados e bolsas —, Tio Mundo não viu a cobra.

Em um bote certeiro, a peçonhenta lhe mordeu a perna e ficou grudada nela.

Tio Mundo, conhecedor das lides do campo e do perigo do veneno mortal da jararaca, não teve dúvidas. Sacou seu facão e, com um único golpe, cortou a cabeça da cobra, que ainda estava grudada em sua perna, levando junto um pedaço considerável de sua própria carne.

Como sempre fazia ao sair para caçar, além dos mantimentos, levava em seu barco um kit de primeiros socorros, com gazes, água oxigenada e esparadrapos para os curativos, caso fossem necessários. Foi assim que tratou o próprio ferimento.

Terminou a história para as crianças, que estavam extasiadas a ouvi-lo, dizendo que, naquele dia, retornou para casa e, por um bom tempo, não voltou a caçar.

Tio Mundo, depois dessa história, despediu-se de toda a família e abraçou as crianças, que gritavam:

— Conta mais, Tio Mundo! Conta mais!

A casa assombrada

A

Silvia C.S.P. Martinson

 

 Os conheci e certamente eram pessoas sérias, idôneas e não chegadas à mentiras ou invenções.

Na realidade sofreram muito e por muito tempo com o que lhes aconteceu.

Por motivo de trabalho em um novo negócio que o chefe da família começou, eles, foram obrigados a se mudar de uma cidade onde viviam, muito bem, lugar este aonde gozavam de conforto e onde tinham acesso a uma educação de nível superior se caso no futuro, viessem a precisar.

A família em questão era composta pelo pai e mãe jovens e uma menina com mais ou menos dois anos de idade.

Chegaram nesta nova cidade, que era bem grande e muito conhecida por seu porto, antiguidade e tradições, localizada na província de onde eram originados o casal. Estes nasceram na capital da província.

Continuando: chegaram nesta cidade com grandes projetos de progresso e melhoras financeiras, já que haviam colocado boa parte de suas economias neste novo investimento.

De antemão e por ajuda de amigos alugaram uma casa antiga em um bairro central, bem localizada e grande e confortável, apesar de velha. Ali chegados com sua mudança se instalaram.

O casal ficou no quarto maior da casa, a menina num outro contiguo ao deles um pouco menor e algo mais sombrio.

A casa era composta de um longo corredor do qual partiam lateralmente, desde a entrada, as demais peças que começavam: por um escritório e sala de recepção, seguida dos quartos do casal, da filha e de hóspedes se caso os houvesse.

Todas estas peças se localizavam à esquerda do dito corredor que dava acesso em seu caminho a um banheiro grande e confortável aonde, inclusive, havia uma enorme banheira de mármore para banhar-se.

Seguindo o corredor, até seu final, este desembocava em um vasto salão de estar onde além dos sofás e poltronas, e num outro espaço foram colocados a mesa de jantar e as cadeiras correspondentes para várias pessoas.

A sala em questão terminava em outra dependência que era a cozinha, na qual, além dos objetos inerentes a ela haviam duas janelas para iluminá-la e um fogão à lenha antigo que tampouco havia sido retirado da casa.

Na sala de estar havia uma porta que dava acesso ao jardim interno, à garagem adjacente e a uma, outra, dependência aos fundos do quintal que se encontrava cheia de móveis velhos, ferramentas e roupas gastas ali abandonadas.

As janelas nesta casa eram altas e se fechavam por dentro com grandes venezianas de madeira compostas de trincos de ferro duplos em cada uma, que não permitiam a entrada de luz ou de estranhos à casa.

Quando chegados à casa a família começou a colocar seus móveis e pertences em cada lugar que lhes pareceu melhor.

No quarto do casal eles encontraram na porta de entrada um par de chinelos de homem ainda relativamente novos.

Com cada coisa em seu devido lugar a senhora começou a trabalhar na limpeza da casa e do jardim interno colocando ali, depois de todo pasto arrancado, mudas de verduras e das flores que apreciava.

Com o tempo passando foram eles notando algumas coisas diferentes que aconteciam ali.
A menina não conseguia mais dormir a noite e continuamente chorava e falava.

O quarto em que ela dormia por mais aquecimento que ali se colocasse estava sempre, sempre gelado.

Os pais não tinham mais o descanso merecido a que estavam acostumados na antiga cidade onde viveram, uma vez que a criança chorava a noite e por incrível, se manifestava em outros idiomas desconhecidos até então a ela e aos pais.

As janelas internas de madeira da sala e da cozinha por mais aferrolhadas que estivessem à noite, pela manhã encontravam-se abertas dando passagem à luz.

Um dia o pai já desesperado tomou de um martelo e pregos enormes e pregou as janelas dizendo que agora elas não se poderiam mais abrir sozinhas.

Na manhã seguinte os pregos jaziam no chão e as janelas, todas, sem exceção, estavam abertas.

Os negócios começaram ir de mal a pior, inclusive na relação com os sócios que não eram tão honestos quanto pareceram no início.

Após algum tempo em contato com uma família vizinha que sempre os observava com certa curiosidade ficaram sabendo que aquela casa se encontrava a muitos anos desabitada, porque ali ninguém conseguia morar.

O último inquilino saiu correndo da casa, deixando ali seus pertences, roupas, móveis velhos e calçados. Saiu literalmente com a roupa do corpo em seu carro e nunca mais voltou.

Contaram ainda que nesta casa se passou, anos atrás, uma tragédia.

Na dependência onde se localizava o quarto da menina, ali, depois de uma grande discussão, por ciúmes, dos donos da casa o homem matou a mulher a punhaladas, deixando-a estirada no solo completamente ensanguentada e fugiu, desaparecendo completamente daquela cidade.

Os vizinhos com o mau cheiro do cadáver foram alertados e após algum tempo chamaram a policia ficando o fato devidamente esclarecido.

O casal, já aborrecido e impedido por circunstâncias financeiras, de continuar com os negócios naquela cidade mudaram-se novamente para a capital de onde haviam nascido e crescido.

Com o tempo e em contato com outras pessoas ficaram sabendo que nesta cidade antiga tais histórias e tais fatos não são incomuns. Cada casa velha onde habitaram e viveram muitas pessoas, isto há mais de 500 anos, as mesmas ali deixaram suas histórias marcadas em cada rua, em cada esquina em cada canto.
Dizem que é perigoso andar sozinho ali pela noite, é o que dizem...

Mistèrio

M

Sílvia C.S.P. Martinson

Os dois eram amigos inseparáveis desde que se conheceram quando ainda eram jovens.

Frequentavam os mesmos lugares tais como bailes e festas em sociedades onde podiam comprar seus ingressos e também, como a cidade em que moravam ainda não tinha o porte de uma metrópole conseguiam, com certa facilidade, penetrar nestes ambientes.

Pois foi em uma noite de baile, naquele tempo de então, quando as moças acompanhadas de seus pais ou no mínimo de suas mães iam dançar no clube. Estas sentavam as mesas já antecipadamente compradas para aquele evento.

Normalmente os bailes davam-se ao som de conjuntos musicais cujos artistas eram contratados para tocar quase toda a noite até a madrugada do dia seguinte, quando então as pessoas se recolhiam aos seus lares.

Nesses bailes as jovens costumavam ir bem vestidas e maquiadas e sentavam-se, entre sorrisos matreiros e sedutores, às mesas, aguardando que algum jovem mancebo as viesse convidar para uma dança.

Era considerado como uma grande grosseria uma jovem negar-se a dançar com um homem que lhe fizesse um convite ao qual se negasse aceitar.

O máximo que cabia à mulher então era dançar uma única música e pedir para ser levada à sua mesa, alegando, com delicadeza, estar com dor nos pés ou cansada.
Normalmente após isso era comum a dita jovem não ser convidada por mais nenhum homem naquela noite.

Os homens se comunicavam entre si narrando o ocorrido com eles e como uma forma de vingança, nenhum deles tirava mais a moça para dançar.

Bem continuando com a nossa história, os jovens mancebos de que falamos no início se chamavam respectivamente, André e Ricardo.
André e Ricardo foram, uma noite, a um baile em que se comemorava a entrada da primavera.

Vestiram-se à rigor e seguiram para o clube que se chamava Barroso.

Lá entre uma dança e outra conheceram duas jovens bastante bonitas que se encontravam, as duas, ne mesma mesa. Eram irmãs.
Com elas dançaram a noite toda, e as acompanharam juntamente com sua mãe, até a sua casa.

Deste baile e deste conhecimento resultou que ambas, Alice e Magda, vieram a se casar alguns anos depois com estes dois amigos.

Os dois amigos gostavam de ir pescar ou caçar juntos quando de preferencia longe de suas mulheres, quando então aproveitavam para tomar umas cervejas ou vinhos além da conta, ou seja, passar dos limites no consumo das bebidas e depois ficavam tão embriagados que não reconheciam nem a si mesmos.

Os anos passaram, tiveram filhos e netos. Também se aposentaram de seus trabalhos e começaram a desfrutar de um pouco mais de descanso.

O filho de um deles comprou uma casa no litoral para que a família, no verão, aproveitasse das férias junto ao mar, fugindo do calor da cidade que, havia crescido muito e se tornado uma grande e cansativa metrópole.

Em um desses verões enquanto os filhos e netos ainda não gozavam das férias, os dois amigos e cunhados dirigiram-se ao litoral e à casa do filho de André para, supostamente, prepará-la para a chegada da família, uma vez que a mesma estivera fechada por todo o período de inverno.

Grata liberdade tiveram os dois...

Foram no carro de um deles e lá chegando dirigiram-se a um bar e compraram além de comida, frutas, verduras, material de limpeza e várias garrafas de vinho e cervejas.
A noite prepararam seu jantar ao mesmo tempo em que consumiam os vinhos e mais alguma bebida alcóolica que encontraram na casa.

No dia seguinte quando a família chegou encontrou-os ajoelhados no chão da casa rezando e se benzendo.

Espantados todos os familiares lhes perguntaram o que tinha se passado, ao que eles disseram que a casa era “mal assombrada” por espíritos malignos, e por tanto, era necessário que rezassem e fizessem todos o sinal da cruz pedindo que os anjos limpassem aquele ambiente.

Arguiram que a noite toda ouviram ruídos e sons vindos dos quartos e do teto e de todas as peças da casa.

O filho de André, dono da casa, ao ouvir tal narração começou a rir sem parar sendo admoestado por seu pai que lhe disse: que com estas coisas não se brinca.

O filho que se chamava Vicente então parou de rir e contou que em verdade há muitos anos, habitavam o sótão da casa um casal de bichos e seus filhotes que somente saiam à noite para caçar morcegos e ratos e se alimentar haja vista que de dia esta raça costumava dormir.

Os dois velhos não acreditaram muito. Todavia depois de tanta bebida e de terem passado a noite rezando na “casa mal assombrada” foram enfim se deitar para dormir e se curar do susto e mais ainda da bebida pródigamente consumida.

A história se espalhou pela família e em sentido de pilhéria, cada vez que um ia ao litoral dizia:

- Vou para lá. A casa mal assombrada me espera!

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