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A velha Alda

A

Silvia C.S.P. Martinson

Ela era velha. Tão velha que já não se podiam contar as rugas em seu rosto. Tampouco ela se recordava ao certo em que ano viera ao mundo e, em verdade, quantos anos tinha.

Vivia em um povoado antigo perto da cidade grande, onde morava em uma casa tão antiga quanto ela, porém bem conservada e com certo conforto. Nada lhe faltava. No povoado, todos a conheciam e a respeitavam, a chamavam de "a velha Alda". Quando pronunciado, soava de uma forma estranha porque era dito em voz baixa e de forma circunspecta por quem a pronunciava, quase como uma reverência a um santo.

A "velha Alda" havia nascido neste povoado, se criado, casado e também ali havia perdido todos os de sua família —o marido e filhos— em um acidente fatal de carro, onde somente ela sobreviveu. Isso se passou há muitos e muitos anos. A ela só restaram as boas lembranças e a grande capacidade que tinha para compreender a vida e superar os momentos duros e tristes que a todos acontecem.

Alda sabia o que ia acontecer, ela o previra. No entanto, nada pôde fazer para evitá-lo. O Destino, em toda sua força, se impôs a todas as orações e pedidos que ela fez para que tal não acontecesse. A sua dor foi enorme, todavia, com o passar dos anos e por causa do trabalho que exercia junto à comunidade, a tristeza da ausência se amenizou e deu lugar ao que realmente importava: aos dons que a "velha Alda" trazia consigo.

Sim, dons. Alda trazia o raro dom que acomete a algumas pessoas sem que se saiba nem por que, nem por que não. Ela previa os acontecimentos, fossem eles bons ou ruins. As pessoas do povoado a conheciam e respeitavam por sua capacidade de adivinhar. Era comum baterem à sua porta para consultá-la sobre suas vidas, seus anseios, suas perspectivas e suas dúvidas.

Ela a todos atendia com a mesma amabilidade de sempre e lhes dedicava o tempo que lhes parecesse necessário a fim de que, ao saírem de sua casa, estivessem mais confiantes e tranquilos. Ela não aceitava presentes e muito menos dinheiro em troca de seus conselhos. Não tinha necessidade disto.

O marido de Alda, ao morrer, lhe deixou uma pensão mensal razoável que lhe permitia viver com algum conforto e não depender da ajuda de outras pessoas, muito menos receber dinheiro por exercer seu dom em benefício dos demais.

O próprio cura do povoado a respeitava e nunca fez qualquer comentário desabonador sobre ela, até porque, há alguns anos, ela previra a morte do irmão dele em um acidente de avião, preparando-o psicologicamente para a perda que iria sofrer.

Para um residente da localidade, muito pobre, ela lhe disse: "Muito em breve você se tornará um homem muito rico." E assim aconteceu: ele comprou um bilhete de loteria que foi sorteado com o maior valor de dinheiro da época. O tal homem até hoje lhe agradece em pensamento e também destina doações para entidades de caridade que vestem e alimentam os pobres. Este foi um conselho que ela lhe deu na época.

Para uma jovem, previu que em sua vida apareceria, vindo de terras longínquas, um homem do qual se enamoraria e viria, com ele, a se casar. Também previu que teriam três filhos: uma menina e dois rapazes, sendo que a garota nasceria após o primeiro filho homem. Predisse ainda que esta menina se tornaria médica e ajudaria a salvar vidas em uma guerra que aconteceria em um lugar distante dali. Isto realmente aconteceu.

As crianças a adoravam porque, nas tardes, ela se sentava em um banco da pracinha que ali havia e, rodeada pelos pequenos, ficava horas a lhes contar histórias bonitas. Nelas, os anjos e os espíritos bons, nos quais acreditava, faziam com que elas crescessem, fossem felizes e alcançassem a maturidade compreendendo tudo e, agradecidas, admirassem o quão belo é viver.

A "velha Alda" viveu muitos e muitos anos. Um dia, desapareceu e nunca mais foi vista naquele povoado. No entanto, aqueles que a amavam, em uma noite límpida e serena, viram aparecer no céu uma nova e brilhante estrela. E sem saber, todos se emocionaram.

A curiosidade e o aprendizado

A

Celso Gonzaga Porto

O  pai entra no quarto e percebe que o filho, mesmo com um livro aberto sobre a mesa de estudos, tem o olhar perdido ao longe. A observação é óbvia:

— "Não adianta o livro aberto na frente e o pensamento perdido nas brincadeiras."

— "Estou exatamente refletindo naquilo que estou estudando. É a Bíblia. Estou a pesquisar sobre um trabalho para as aulas de Religião."

— "Pois bem. Então continue o estudo. Não quero atrapalhar. Se eu puder ajudar..."

— "Papai. O senhor e a mamãe frequentam a Igreja há anos. Participam de todas as atividades, inclusive reuniões quinzenais em que os casais se reúnem para o estudo da Bíblia, certo?"

— "Certo. Há quase dez anos sua mãe e eu participamos destes estudos."

— "Então me ajude a entender uma coisa. A Bíblia diz que a origem da humanidade está no primeiro casal que Deus fez, criando o homem de um boneco de barro e a mulher de uma costela do homem, certo?"

— "Certo. A humanidade surge de Adão e Eva. Alguma dúvida?"

— "Pois bem, papai. Aqui diz que Adão e Eva tiveram dois filhos homens. Para que surgissem mais seres a partir deles, uma de duas coisas deveria acontecer: ou os filhos tiveram relações com a mãe ou um dos dois era hermafrodita."

— "Bem... há coisas um pouco complicadas..."

— "Tem outra complicação ainda maior. Não só a religião, como é o caso da nossa, como também a ciência, condenam a relação entre irmãos e, pior ainda, entre filho e mãe."

— "Bem... É... é... é..."

— "O pai de um coleguinha outro dia explicou que, na verdade, a Bíblia não fala, mas Adão e Eva tiveram outros filhos, inclusive mulheres. Mas o problema continua. Se na origem tivesse sido normal a relação entre irmãos, não teria razão para ser proibido mais tarde. Outro coleguinha disse que, segundo o pai dele, haveria outra comunidade de pessoas em local próximo onde vivia a família do Adão e foram essas duas comunidades que se uniram, vindo a originar a humanidade. O que meu coleguinha não soube responder-me foi quando eu levantei a questão de que, se havia outra comunidade, a origem não poderia ser atribuída apenas a Adão e Eva. Que explicação o senhor teria para isso?"

— "Bem... acho que é preciso pesquisar um pouco mais."

— "Veja, papai, há outros detalhes que estão deixando-me a pensar. Há um trecho aqui em que Jesus diz a Tomé: 'Felizes os que creem, mas não veem'. Isso também não me parece real de ter acontecido."

— "Por que?"

— "Porque Jesus, segundo consta, era um ser bastante evoluído para a época. Ele já deveria saber então o que sabemos hoje, que a dúvida é que impulsiona o conhecimento e a evolução. Penso que ele jamais deixaria para a história uma frase que contraria esse princípio elementar, ainda mais prevendo que a humanidade se basearia mais tarde nas suas palavras e nos seus conceitos. O que lhe parece?"

— "Bem... acho que preciso estudar melhor a Bíblia."

— "Ora, papai. Na verdade, ninguém estuda a Bíblia. As pessoas decoram o conteúdo escrito nela e assimilam como verdades porque têm medo de contestar e ser condenado. As religiões assustam para isso. Na verdade, para estudar literalmente alguma coisa, é necessário que se vá colocando em dúvida as coisas que nos são apresentadas, tentando sempre buscar uma explicação lógica. O que lhe parece se na conclusão do meu trabalho eu apresentasse o teor desta nossa conversa?"

— "Eu não te aconselho, filho."

— "Por que, papai?"

— "Certamente tua nota seria zero."

Perdido

P

Silvia C.S.P. Martinson

 
Caminhava, lentamente, pelas avenidas que cruzava sem prestar a mínima atenção ao perigo de um trânsito que felizmente, àquela hora não havia. Era noite, madrugada, melhor dizendo.
 
Sim, caminhava, porém não se dava conta do que fazia. Sua mente vagava em mil lembranças, em fatos ocorridos a tanto tempo que lhe ficaram marcados na alma, implicados em sua maneira de agir, pensar e em sua postura perante a vida. Nascera em meio a uma família pobre, cercada de irmãos maiores primeiramente e depois dele outros 3 menores.
 
O pai trabalhava como guarda-noturno de um prédio onde viviam pessoas abastadas e das quais às vezes recebia alguma ajuda na forma de sobras de comida e ou roupas usadas, as quais distribuía entre os filhos mais necessitados.
 
Eram pobres, porém asseados, vivendo em uma casa humilde construída por ele, o pai, em um bairro afastado.
 
A mãe, apesar dos muitos filhos, se mantinha uma mulher atraente e bonita a quem todas as mulheres poderiam invejar apesar de sua pobreza evidente.
 
Ela era costureira, aprendera a profissão, quando ainda muito jovem, encaminhada por sua madrasta que à época não tinha capacidade e nem vontade de proporcionar uma educação mais apurada, porque esta mulher pensava que o colégio estava destinado somente às pessoas ricas e que aos pobres somente cabia trabalhar e ter uma profissão. Assim então eram os pais dele.
 
Enquanto caminhava, entre tantos pensamentos ele os recordara.
 
Ao andar, outros pensamentos, lembranças, lhe acorreram à memória, sobre sua juventude, quando então invejava aos outros de sua idade por terem mais gozos e condições financeiras enquanto, ele, trabalhava de dia e ao mesmo tempo à noite estudava para tentar um futuro melhor.
 
Valeu a pena. Formou-se em Economia. Era inteligente e dedicado aos estudos.
 
Sua vida amorosa, no entanto, se pautou por altos e baixos várias vezes. Houve ocasiões em que foi muito feliz, outras tantas profundamente decepcionado por suas escolhas equivocadas.
 
Caminhou em direção de amores que lhe pareceram sinceros, deu-se por inteiro a quem não o merecia.
 
Desiludido e sofrido não soube reconhecer a quem lhe verdadeiramente queria bem. Fez padecer, a outros, o que havia sofrido: negligencia, egoísmo, descaso e falta de afeição verdadeira.
 
E nesta caminhada pelo tempo, pela vida, deixou lembranças e também consigo as carregou.
 
Ao final da estrada, naquela madrugada, quando não havia mais nada, constatou que estava perdido, adormeceu ao impacto imaginando o quanto poderia ter sido feliz se mais simples e menos exigente houvera sido.
A buzina do carro se fez alta, o barulho do freio ao travar foi estridente.
 
Ele... Não acordou nunca mais.

Liberta a saudade

L

Daizi Vallier 

Acordo com imensa saudade. Tomo meu café, com o ritual de sempre, depois visto um abrigo e saio em direção ao Parque Farroupilha. Atravessei da Av. João Pessoa para a Av. Osvaldo Aranha e vice versa, por longo tempo. De mãos dadas com ele. Caminhei empurrando carrinhos de bebês, eram horas de prazer. Andamos os quatro de bicicleta, primeiro eram duas, as meninas muito pequenas, na nossa carona, depois cada um na sua. Lembro-me de alguns incidentes, onde ficavam com joelhos e mãozinhas raladas. Sorrio. Andávamos de patos barcos, assim elas denominavam os barquinho no lago. Uma lágrima salta. Seco com o espaldar da mão. Sento-me em um banco perto do chafariz. Parece que as vejo correndo a volta dele, fingindo estarem na chuva. Elas cresceram. Nós dois continuamos passeando pelo parque, o chimarrão e os amigos que encontrávamos no Bric aos domingos, eram nossas novas companhias. Enquanto estou sentada ali, deixando as lembranças aflorarem, um ou outro frequentador conhecido, ao passar na sua caminhada diária, me cumprimenta.
Chegou o dia em que me vi sozinha, em caminhadas ou atravessando o Parque, tão cheio de recordações. As nossas meninas, quando casaram, foram morar em outro ponto da cidade. Anos depois, nós sentimos necessidade de separar nossos caminhos, e eu optei por continuar no que chamo meu bairro.
Hoje é um daqueles dias em que resolvi dar guarida, por algum tempo, a saudades, e o lugar, no calor agradável do início da manhã, com seu cheiro de grama, caturritas a cantar e a visão dos ipês floridos, é um ambiente acolhedor, próprio para deixar minhas lembranças aflorarem. Saciada de distantes visões e sensações, resolvo estar na hora de voltar ao aqui e agora. É quarta-feira, dia em que almoço com as filhas, uma combinação para que tenhamos umas horas, as três sozinhas. É quando compartilho com elas o meu dia a dia e ouço opiniões sobre dúvidas que tenho na administração da minha própria vida. São momentos de afeto. Tenho consciência de ser preciso aproveitar o presente, deixando o passado nas recordações de belos momentos. Esperando o futuro com fé e alegria.

O aniversàrio de Vitor

O

Silvia C.S.P. Martinson

Esta data era sempre muito esperada por todos os amigos. Vitor era o mais velho de dois irmãos e também o mais ativo e desembaraçado dos dois meninos. O que vamos contar se passou quando ele estava a completar 10 anos de idade. Os pais de Vitor eram amigos de meus pais, que, também, eram vizinhos e amigos da avó materna dele. Eles viviam em uma bela casa grande e confortável em um bairro próximo ao em que nós morávamos. A educação que recebíamos à época difere totalmente da que é dada às crianças hoje, pelo menos em nossas famílias. Devia-se ao chegar à casa dos anfitriões, da festa, bem vestidos e muito recomendados à educadamente cumprimentar os pais do aniversariante e a este sem dúvida. Não deveríamos sentar à mesa sem sermos convidados desde que autorizados por nossos pais. Eu sempre fui muito alta e aparentava, consequentemente, mais idade do que tinha em realidade. Nesta época com 10 anos eu tinha a aparência de ter 15 ou 16 . A dona da casa, mãe de Vitor, era exímia cozinheira e acima de tudo costumava fazer doces inigualáveis, tanto em sabor quanto em beleza. Lembro ainda que a mesa da sala de jantar estava coberta de doces e salgados que apeteciam prova-los, afora que ao centro dela se encontrava um enorme bolo de aniversário belissimamente decorado, que aos nossos olhos de crianças era uma verdadeira tentação. Os adultos foram acomodados em outro setor da casa onde lhes foram servidos bebidas e alguns petiscos antes da mesa dedicada à comida dos mais velhos, o que se daria mais tarde. As crianças eram servidas mais cedo junto ao aniversariante, para que cantassem o Parabéns a Você e ele apagasse as velinhas que então acesas no bolo estavam em número exato dos anos que cumpria Vitor. E foi o que aconteceu.
A mãe de Vitor chamou para compor a mesa todas as crianças convidadas, quando chegou a minha vez ela simplesmente me disse que como eu era já uma jovem deveria aguardar para sentar-me a mesa com os adultos.
Assim que deu-me uma cadeira para sentar-me e ali ficar esperando. As crianças alegremente sentaram-se não antes de saudar o aniversariante e após o que “atacaram”, este é o termo correto, literalmente as guloseimas que ali estavam postas. O tempo passou e eu estava cada vez com mais vontade de comer, porém a minha educação à época não permitia, sob hipótese nenhuma, atrever-me a solicitar alguma coisa. Mais tarde os adultos foram convidados a acercar-se da mesa que estava novamente coberta das mais diferentes e apetitosas guloseimas.
Todavia algo para mim inesperado se passou: a dona da casa se esqueceu do que me havia dito e não me convidou a passar à mesa dos adultos.
Então, discretamente, acerquei-me a minha mãe que já estava comendo e bebendo e lhe pedi um pedaço do lindo bolo que ela comia. Ela simplesmente respondeu-me olhando-me seriamente: - Já não comestes? E sem esperar a minha resposta disse: - Vai sentar-te com as crianças que ali é o teu lugar e não importunes a nós ou a dona da casa com a tua falta de educação! Retirei-me como me havia mandado com muita vergonha e muita fome também. Voltamos para nossa casa já noite cerrada e eu com raiva só chorava ao que minha mãe àquela hora não quis saber o porquê. Fui dormir com fome. Quando no dia seguinte lhe contei o que se passara ela me proibiu contar à mãe de Vitor ou a ele o que ocorrera. Até hoje guardo na memória aquela linda mesa coberta de doces com as guloseimas que me apeteciam e apetecem tanto.

Um chafariz de refresco

U

Celso Gonzaga Porto

Das reminiscências do meu tempo de infância, surge na lembrança a história de um antigo chafariz. Ele ficava na confluência das avenidas João Pessoa e Azenha, junto a uma estátua de Bento Gonçalves, um dos heróis da Revolução Farroupilha, cujo monumento foi inaugurado em 15 de janeiro de 1936 sendo instalado ali, na Praça Piratini em 1941. Na década de cinquenta, esse chafariz era todo iluminado à noite. Holofotes instalados no contorno interno da sua estrutura, direcionados em ângulo aos bicos que faziam a água jorrar, davam a conotação de que a água saía em jatos coloridos. O cenário é um ambiente característico do bairro Azenha, cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. E por ali, circulavam os antigos bondes, transporte elétrico sobre trilhos cuja extinção aconteceu em 08 de março de 1970 dando passagem ao transporte de ônibus, administrados pela Companhia Carris Porto Alegrense, a mesma que administrava desde 1872 o serviço de bondes, sendo que 10 de março de 1908, marca a data do primeiro bonde elétrico a circular pela cidade. Mas voltando às reminiscências, vejo-me andando com meus pais no bonde Teresópolis, cuja linha passava por aquele chafariz. Várias foram as vezes que circulamos por ali à noite. Na minha fantasia infantil, ficou a ideia de que naquele chafariz, jorrava refresco. Comentei isso com meu pai e ele, tentou explicar-me que não era isso que acontecia dizendo passo a passo como ocorria aquele efeito.
Ele não teve muito sucesso no seu trabalho. Na mente de fantasia, formava-se um sentimento de estar sendo enganado. Provavelmente, por não querer descer do bonde para que aquele refresco pudesse ser saboreado. Como eram várias cores, poderia ter ali muitos sabores diferentes; quem sabe limão, laranja, morango ou até algum sabor novo ainda desconhecido.
Os anos se passaram e com ele, a desilusão do meu chafariz de refresco. A maturidade mostrou que meu pai tinha razão. A água mantinha as suas características inatas de ser incolor, inodora e insípida. Todo o efeito não passava de luzes artificiais jogadas sobre os jatos d’água que jorravam de bicos estrategicamente posicionados de maneira artística com propósito de formar uma ilusão de ótica propícia à fantasia de criança. Nunca consegui passar caminhando próximo ao chafariz, mas uma coisa acompanhou-me pelos tempos. A certeza de que, se passasse por perto, certamente tentaria burlar a atenção dos adultos e, com as mãos em concha, apanhar um volume pequeno daquela água que proporcionasse um gole ou um bochecho, para ter a certeza de que aquilo, realmente não era refresco.

Me fui

M

María Manuela Asenjo

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson

E eu me fui.

E, no mesmo instante, você crispou num rictus amargo seu rosto lívido.

E depois vagou, contemplativo, pelas ruas escuras. Sem entender.

Muito tempo depois, ainda chorava lágrimas de aturdimento e regava o jardim com água salgada.

Num canto, num não sei, num porquê.

Inclusive você, ateu convicto, encomendou novenas em meu nome, pela minha alma. Que alma!

Agora, inimigo e ignorante da tecla e da técnica, você aprende Photoshop às pressas.

Retocando minhas melhores fotos, para conseguir a perfeita que presida esse altar.

Com velas, com rosas-chá, daquelas minhas, minhas preferidas, as que nunca conseguimos que crescessem.

Acorda suado de mil pesadelos.

Você, insociável incorrigível, solta frases de amor pela minha pessoa, louvores inúteis e tardios a todo ouvido que queira recolhê-las.

Agora, digo, agora… se eu soubesse, ironia no ar, não teria ido.

Mas eu me fui, e nunca cheguei a ver os altares, nem a me molhar com as lágrimas, nem a cheirar as rosas, nem a escutar as palavras que, por outro lado, você nunca teria dito se eu não tivesse ido.

Assim, a meu pesar… eu me fui.

Lembranças

L

Silvia C.S.P. Martinson

 

Enquanto estava ela sentada em um dos quatro cantos que havia imaginado para interiorizar-se e fugir do mundo real que a cercava, começou a recordar fatos ocorridos em seu passado.

Lembrou-se de uma casa que seus pais haviam alugado em um bairro, que não aquele em que, posteriormente, praticamente, viveu quase toda sua infância e juventude.
Esta moradia era uma casa de madeira simples, porém localizada em uma rua tranquila que também tinha, nela, um grande quintal onde passava horas ali a brincar e a sonhar, como sempre, com seus amigos imaginários.

Tinha ela então 4 ou 5 anos de idade.
Sentada na terra do quintal gostava de observar as formigas trabalhando em grandes carreiros a conduzir pedacinhos de verduras para dentro de seus ninhos. Imaginava que aloi estavam com seus filhotes à alimentá-los, como fazia sua mãe quando recolhia a ela e a seus irmãos na hora de comer. Lhe encantava vê-las trabalhar, muito mais quando carregavam folhas bem maiores do que elas próprias.
Seu pensamento retrocedeu também a um fato ocorrido naquela época com seu irmão mais novo, chamava-se ele Gustavo que tinha então 4 anos.

Ele foi à casa de uma vizinha amiga para brincar com a filha dela por quem ele tinha especial afeição.

Os dois brincaram bastante e quando ele retornou à sua casa foi prontamente para debaixo do assoalho, uma vez que a moradia se distanciava do solo e ali, naquele espaço, haviam muitos utensílios guardados.

Ela lembrou ainda de que a mãe os chamou para jantar aos que os dois prontamente atenderam , uma vez que ela não permitia que suas ordens não fossem cumpridas imediatamente.

Após a janta ambos foram para seus quartos para prepararem-se para dormir.
Naquela época as crianças iam cedo para a cama sem maiores resmungos ou aborrecimentos.

No dia seguinte a mãe da menina tocou a campainha da casa chamando pela mãe de Gustavo, pois tinha que com ela conversar.
As duas encontraram-se no portão de entrada, todavia a outra senhora não quis entrar apesar de ser convidada ee com alguma brusquidão relatou a mãe de Gustavo que ele havia roubado de sua filha uma pulseira de ouro.

A mãe deste estarrecida chamou-o e o inquiriu sobre o que havia feito. Ele concordou com o fato de ter ficado com a pulseira, todavia arguiu que a menina lhe havia ofertado, contou ainda que havia guardado a jóia debaixo do porão em uma caixinha de madeira onde guardava as moedas que recebia de presente em seu aniversário.

Ante tal fato a mãe envergonhada fê-lo buscar a caixa e devolver à vizinha a tal pulseira.
Enquanto lembrava do fato ocorrido, ela, recordou ainda que até a data em que ali residiram, nunca mais foi permitido a estas duas crianças, Gustavo e sua amiguinha, brincarem juntos. Os pais de ambos passaram, a se ignorar mutuamente.

A Gustavo, hoje um homem de respeito e joalheiro famoso, os objetos coloridos e brilhantes sempre lhe chamaram a atenção.
Não tinha ele noção à época do valor exato das coisas, apesar de ser ensinado em sua casa que não deveria nunca pegar algo que não lhe pertencesse.

Realmente ele era muito inocente.

Dia especial

D

María Manuela Asenjo

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson

Afano-me diante do espelho com o delineado da pálpebra. Meu pulso trêmulo fez com que eu tivesse que limpá-lo duas vezes.

Primeiro o fundo branco, o de efeito boa aparência. A maquiagem um pouco espessa, blush…

Há anos não me maquio, leio as anotações pousadas na prateleira da pia com atenção, cumprindo cada passo, como se fosse a cola de uma garota do ensino médio: sombra escura na parte inferior em forma de noz que combine com o tom da íris ou da roupa… Ai que nervos!

Reflexos luminosos na parte superior… que o olhar resplandeça… Bom, estou ficando com uma cara melhor. Espera, um pouco mais de pó nas maçãs do rosto.

Olho o relógio pela enésima vez, é quase a hora. Em uns dez ou quinze minutos ele chegará. Tenho que estar impecável.

Retoco o contorno dos lábios, coloco a jaqueta do meu melhor terno sobre a blusa de seda. “Que diabos – digo à mulher do espelho enquanto pulverizo um pouco de laca –, você está espetacular. Deveria se arrumar mais vezes.”

Demorei para escolher que sapatos usar. Mas escolhi estes, os altíssimos, de camurça preta, estavam guardados no fundo do armário. A verdade é que me destroem os pés, mas são os mais sensuais. Hoje estou empenhada em que ele me veja deslumbrante, especialmente atraente…

Não terminei de calçar e ouço a chave entrar na fechadura. Saio do quarto ao mesmo tempo que ele fecha a porta. Ele vira, fica paralisado. Cravou os olhos em mim e não consegue desviá-los. Noto uma mistura de admiração, desejo e estranheza.

– E isso? – ele desconfia
– O quê? – sorrio nervosamente
– Esse seu aspecto, por que você se arrumou tanto?
– Queria te fazer uma surpresa
– E o menino?
– Levei-o para a casa da minha mãe. Queria ficar com você a sós.
– Não entendo, o que estamos celebrando hoje? Além disso, não vamos sair; você se esquece da minha torção, meu pé dói muito.

Ele continua parado segurando as chaves e a carteira, junto à entrada. Avanço em direção a ele do fundo do corredor, decidida.

Com meu sorriso mais sedutor, fico na ponta dos pés, aproximando minha boca de seu ouvido (detecto um leve brilho de temor em seus olhos?).
– Hoje é uma data muito importante, querido, faz exatamente sete anos, três meses e vinte dias que comecei a morar com você. E veja, teremos tido um filho, teremos passado por muitas coisas, você terá marcado um antes e um depois na minha vida, de fato, você deixou em mim marcas indeléveis. Mas hoje, finalmente, quero te agradecer. Não sei o que acontecerá amanhã, se poderei realizar meus projetos, nem mesmo se os tenho. O que eu te asseguro, querido, é: Jamais voltará a encostar a mão em mim.

Ele não tem tempo de reagir. Tenta agarrar meu braço, mas me solto energicamente. Pego minha mala e minha bolsa do armário da entrada e saio com passo firme, queixo erguido e olhar desafiador. Só eu noto como minhas pernas tremem, enquanto arrasto a bagagem, tomando cuidado especial para que as rodas passem por cima de seu pé dolorido.

Lá embaixo me esperam no carro, é o princípio da minha nova vida. Sei que amanhã, finalmente, terei despertado para sempre desses sete anos de pesadelo. Por isso retoco novamente minhas maçãs do rosto no elevador, para que não se note nem um resquício do passado.

O vigarista

O

Silvia C.S.P. Martinson

 

Havia um ruído intenso. Quase não se podia ouvir o que ele falava. Porém, continuava a fazê-lo sem parar.

O homem não tinha vergonha; pensava-se jovem, apesar dos 78 anos que tinha. Foi casado várias vezes, cinco para ser mais exato. Culpa as mulheres por suas separações. Em sua opinião, todas têm algum defeito: ou físico, intelectual ou moral. Impressionante.

Está bem fisicamente, apesar de não ser um homem atrativo, porque é baixo e de certa forma feio. Relativamente, tem algum charme: é simpático. É europeu, fala bem em francês e espanhol. Como companhia de beira de praia para um bate-papo, é até interessante.

Para seus amigos ricos é especialmente prestativo. Sim, para seus amigos ricos. Em verdade, é o que mais lhe agrada, ou seja, ter amigos e mulheres muito ricas com as quais possa conviver e partilhar de suas festas e ambientes requintados. Aparentemente, é uma pessoa simples e, é claro, quando expõe sua situação financeira, todavia, entre suas palavras e ações, denotam-se verdadeiramente suas intenções.

Aos amigos que estão na mesma situação que ele, quando não tem ninguém, aproxima-se para encobrir sua solidão. No entanto, a estes negligencia na primeira oportunidade quando surge alguém mais aquinhoado. A vida também, às vezes, prega suas peças. E assim se passou.

Por um chat de internet, aonde procura conhecer pessoas normalmente para travar relações pessoais, conheceu uma mulher latino-americana que parecia bem colocada financeiramente. Bonita, de alta estatura e relativamente jovem para ele. A diferença de idade entre os dois se aproximava em 20 anos a mais para ele.

Foi visitá-la em sua cidade, hospedaram-se em um hotel e lá mantiveram relações sexuais que lhe pareceram bastante satisfatórias. Convidou-a para passar uns dias em sua casa na praia.

Ela veio. Chegou toda charmosa, encontrou-o na estação, ele fora buscá-la como costuma acontecer com homens educados. A senhora pensou então que encontrara o homem de sua vida, aquele que haveria de satisfazê-la em todas as suas expectativas, que eram: casar-se com um europeu para obter a cidadania europeia, um homem mais velho que pudesse dominar, rico e proprietário de bens materiais que fizesse com que a vida lhe fosse cheia de regalias e sem problemas com que se preocupar.

Ledo engano. Quando constatou a dura realidade, quando não teve acesso aos restaurantes que pretendia, quando viu que o apartamento em que ele vivia era alugado e que a comida era feita em casa e escassa, pensou em como se descartar da situação criada.

Urdiu então e executou com frieza, calculadamente, seu plano. Começou bebendo todas as cervejas que ele tinha armazenado em sua casa, mais ou menos umas quinze. Depois delas, dormiu toda a noite em sua cama, ocupando o lugar dele inclusive.

No outro dia, foram à praia e depois almoçar em um restaurante simples, onde tomou novamente umas oito ou nove cervejas sem, no entanto, se tornar embriagada. Ante o que via, ele se tornou cada vez mais aborrecido e frustrado em seus desejos de grandeza.

Surtiu efeito o plano dela. Ao final do fim de semana, ela se despediu e lhe disse:

"Adeus, amor! Simplesmente não combinamos em nossos gostos. Eu gosto de Champanhe francês e você? De água. Sinto!"

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