CategoríaProsa

Desenlace

D

Silvia C.S.P. Martinson

Eles caminhavam à beira-mar em uma calçada que separava as areias, a água e as pedras do calçamento. Então, de repente, ela lembrou-se do que havia acontecido há tanto tempo.

Lembrou-se da noite em que estava sentada em sua sala de estar e o relógio, que havia sido de seu avô, começou a dar badaladas, 9 no total. O som deste relógio tão antigo era lindo, ela pensou. Todavia, ao mesmo tempo, estranhou: não podiam ser 9 horas da noite porque, na realidade, pela claridade ainda era dia. Talvez fossem realmente 7 horas da noite; era verão e, ao anoitecer, a escuridão costumava chegar bem mais tarde.

Que estranho, pensou ela então... Em dúvida, resolveu ir até o relógio para verificar se o horário das badaladas coincidia com o que marcavam os ponteiros. Realmente coincidia. Os ponteiros marcavam 9 horas e o toque havia acusado precisamente o mesmo horário. Ensimesmada, no entanto, resolveu conferir as horas em seu relógio digital e, com espanto, constatou que eram na realidade 7 horas da noite.

O que se passa, pensou ela então? Como poderia um relógio que sempre havia sido tão preciso adiantar-se em duas horas sem que alguém o houvesse alterado? Conjeturou, pensou em várias hipóteses, no entanto, não conseguiu chegar a nenhuma conclusão, seja razoável ou não.

Vivia sozinha em sua casa na época. Seu marido e sua filha viviam e trabalhavam em outra cidade longínqua. Não tinha parentes próximos, amigas, ou serviçais que pudessem ter acesso à sua casa a ponto de alterarem nela o antigo relógio.

Pensando assim, desligou-se do fato e continuou a ler o livro tão interessante que tinha adquirido há poucos dias. Tratava-se de "O Corvo", cujo autor era o renomado escritor Edgar Allan Poe. A leitura a entreteve por algum tempo, todavia, algo a incomodava, não sabia o quê, mas sentia uma enorme sensação física de desconforto, aliada a uma outra que não lembrava ter tido alguma vez: era angústia, como se algo lhe faltasse, uma ausência de algo que não conseguia identificar.

Seguiu lendo até que, cansada, resolveu dar uma pausa na leitura e ir comer algum lanche para depois dormir. Olhou novamente seu relógio de pulso. Ele marcava exatamente 19:30 horas (ou 19h30min).

Caminhou até a cozinha, preparou seu lanche favorito; não tinha o hábito de comer muito à noite. Sentou-se à mesa da sala de jantar depois de arrumá-la adequadamente para comer. Gostava de ter a mesa bem posta, mesmo que fosse somente para um lanche.

Neste momento, foi surpreendida pelo badalar do relógio da sala, que tocou 9 vezes com a harmonia de sempre, seu som inconfundível, tão bonito e conhecido por ela desde criança. Ela o herdara de seu avô e lhe dedicava extremo cuidado, uma vez que ele (o relógio) já tinha, na época, mais de 150 anos.

Era tradição em sua família, lembrou-se, passar o relógio ao filho ou filha mais velha quando o pai ou a mãe faleciam. Ao ouvir tocar as horas de forma errada, ela assustou-se, e o fato ficou definitivamente gravado em sua memória.

E, agora, enquanto caminhava na praia com seu amigo e companheiro, as recordações lhe voltaram à mente com uma nitidez impressionante.

Lembrou ainda que foi dormir, todavia, não conseguia conciliar o sono; estava inquieta e seu corpo respondia com tremores involuntários ao seu estado de ânimo. Eram exatamente 10 horas da noite, recordou, estava ainda acordada quando o seu telefone tocou insistentemente. Levantou-se e foi atendê-lo. Sua irmã lhe chamava.

Falava com a voz embargada por um choro quase convulsivo que a impedia de pronunciar bem as palavras. Aos poucos, ela foi se acalmando e conseguiu dar a notícia de que a mãe de ambas havia morrido de um infarto do coração precisamente às 9 horas daquela noite. Enquanto falavam, ainda chorando as duas, ela lembrou que o relógio da sala voltou a badalar, marcando 9 horas sem que ninguém nele tocasse.

Ao caminhar na praia com seu companheiro naquele momento, todos os fatos lhe voltaram à memória. Os dois pararam um instante para descansar e desfrutar da paisagem que tão lindamente se distinguia naquela manhã. Ela aproveitou aquele instante para contar a ele tudo o que se passara naquela triste noite e também para perguntar-lhe o que pensava sobre tais acontecimentos.

Ele a olhou intensamente, sorriu simplesmente, enigmaticamente e...

Não disse nada.

O observador

O

Silvia C.S.P. Martinson

Ele caminhava pelas ruas.
Ele tinha o hábito de fazê-lo todas as tardes, seja inverno ou verão. Saia de casa sempre por volta das 17 horas.
As 17 horas no inverno que, onde morava, era muito frio e quase noite. Neste horário o sol já quase sumira no horizonte, todavia era uma paisagem de rara beleza...
Enquanto caminhava ia recordando de fatos e momentos passados em sua vida, tanto familiares quanto profissionais.
Naquele instante voltou-lhe â lembrança de quando trabalhava em um banco que era ao mesmo tempo imobiliária. Diga-se, de passagem, â época era uma novidade de grande sucesso em sua terra.
Esse sistema de ter como clientes os proprietários de imóveis que ali colocavam as suas propriedades para alugar ou vender, além de inovador era de uma praticidade sem par. Esse sistema foi trazido da Europa pelo pai do atual administrador do banco quando o mesmo por razões políticas e religiosas foi obrigado a fugir do “Velho Mundo” com sua família face âs perseguições sofridas em uma guerra cruenta e discriminatória.
Um sorriso lhe veio a cara quando lembrou-se de duas colegas que ali, naquele banco, trabalhavam. As duas eram já um pouco adiantadas na idade, não totalmente velhas, todavia â época se costumava chamar as mulheres assim de “maduras”. Elas eram solteiras e não tinham companheiros ou namorados.
Haviam clientes do banco que só gostavam de serem atendidos por elas. Este era o caso das famosas irmãs Olivar, como eram conhecidas por seu sobrenome e também por serem descendentes diretas de espanhóis.
Eram ambas riquíssimas porque proprietárias de muitos edifícios e prédios que, mantinham alugados e foram herdados de sua família. Também as duas eram solteironas e já adiantadas em idade. Quando chegavam ao banco, as duas funcionárias que se chamavam respectivamente Estela e Nivea, deveriam deixar tudo o que estavam fazendo para atendê-las com prioridade.
Elas chegavam no balcão e chamavam com forçado carinho a Estela e a Nivea desta forma: - Estelita querida chegamos! E a Nívea assim: - Nini querida vens me atender, por favor!
As duas irmãs então ficavam a tarde toda, das 14 as 17,30 horas verificando suas contas, calculando o que haviam ganho perdido (isso quase nunca), somando inclusive os centavos, porque eram muito sovinas.
Absorviam totalmente a atenção de Nívea, não permitindo sequer que ela se afastasse do balcão.
Ao final da tarde se despediam e deixavam para Nívea e Estela um pacote de doce3s que haviam feito ha muito, muito tempo atrás e que as duas após a saída delas, colocavam no lixo tal o aspecto e o mau cheiro dos mesmos. Enquanto caminhava ele recordou, ainda, dos velhos companheiros de trabalho, especialmente de Gastão, um jovem que viera do interior do Estado e era descendente de italianos.
Gastão era muito dedicado ao banco e também muito ambicioso. Namorou muitas colegas que lhe pareceram mais ricas que ele, todavia as trocava assim que conhecia uma com mais poder aquisitivo.
E assim ocorreu até o dia em que Gastão conheceu a filha do dono do banco. Trocou a namorada que lhe queria muito por esta nova e rica jovem. Com ela veio a casar-se e se tornou, mais adiante, um gerente deste mesmo banco, trabalhando como um escravo para seu dono e sogro, que dele se aproveitava enquanto percorria o mundo em viagens com sua família, inclusive levando consigo a mulher dele, Gastão.
E assim andando e recordando dos fatos passados verificou que a noite já se fazia sentir.
O sol já desaparecia no horizonte deixando o céu cor de púrpura, prenunciando mais um frio e límpido anoitecer.
Lembrou ainda que as noites neste lugar, ao inverno, eram sempre de uma beleza sem par, milhões de estrelas a luzir nas profundezas do Universo, concitando os homens a sonhar.

A tristeza de Martha

A

Lorena Fontoura

Estamos no ano de 2012, mais precisamente, no dia 13 de janeiro, quando Martha leu a triste notícia na internet, que Ricardo estava morto. Mas quem é Martha? Martha é uma mulher casada, com três filhos adolescentes, trabalhadora, esposa e mãe dedicada, porém encontrava-se entediada da rotina e da falta de sonhos e perspectivas na vida.

Quem é Ricardo? era um homem honesto, trabalhador e bem sucedido. Morava longe de sua família, esposa e filho devido ao trabalho, sentia-se muito só com a distância entre eles. Era diabético, sedentário, gostava de comer muito e beber coca cola, não bebia nada de álcool, não fumava e dormia cedo. Seus hábitos eram nada saudáveis e seu trabalho estressante demais.

Mas vamos voltar no tempo para entender o que aconteceu realmente. Em meados de 2011, Ricardo conheceu pela internet uma mulher casada e apaixonou-se por ela, esta mulher é a Martha.

Ele assim que a viu pela primeira vez, ficou encantado por ela, e com o passar dos dias ficou completamente apaixonado por Martha, não pensava em outra coisa, apenas na mulher de internet. Passava o dia e a noite enviando emails, sms com mensagens de amor e carinho.

Por estarem verdadeiramente apaixonados, ambos se tratavam por seus nomes verdadeiros, mesmo Ricardo sendo um homem público, uma celebridade, que seguidamente estava estampado nas revistas, jornais e internet, devido ao seu trabalho. Já Martha era uma pessoa comum.

Os dias e meses foram passando e os dois sempre conectados num romance virtual, ambos carentes e amando-se loucamente. No início ela não vibrava na mesma intensidade por Ricardo, mas ele com a maturidade de seus 50 anos tratou de seduzir, encantá-la, até que Martha ficou completamente apaixonada por ele.

Falavam-se todos os dias a todo momento e todas as noites viam-se pelo skype. Tudo transcorria lindo, maravilhosos, divino até chegar o mês de dezembro, quando a família de Ricardo viajou em seu encontro, onde juntos viajariam para as férias e festas de final de ano.

 Ele não pode mais falar com sua amada durante 20 dias, período que sua família permaneceu em sua cidade. Raramente um email mencionando a saudade e fortalecendo a promessa de retomarem o contato em janeiro do próximo.

Então chegou o tão esperado dia 08 de janeiro de 2012 quando ele regressa sozinho a sua cidade...e sem esperar um segundo, chama sua amada na internet. O coração de Martha quase saiu pela boca, quando recebeu a mensagem em seu celular, correu para seu computador e os amantes acabaram com a saudade conversando, fazendo amor virtual.

Os dias foram passando, os dois trocando suas mensagens apaixonadas, naquele dia 13 de janeiro Ricardo envia um email no final do dia perguntando a sua querida amada como havia passado Martha, como de costume, responde e também pergunta sobre o dia de trabalho de seu amado, mas desta vez não obteve resposta.

Nada aconteceu no dia seguinte e, no outro e nos próximos. Nenhum retorno por dois meses.

Desesperada, triste a desiludida, Martha acessa a internet, na esperança de obter alguma informação e descobre que seu amado havia falecido no dia 13 de janeiro, logo após o envio da última mensagem dele para ela.

Martha chora, mas chora muito e em silêncio, pois seu romance era secreto, sabe que jamais sentirá o toque, cheiro, gosto e calor de seu amado agora morto.

Mas ela é uma mulher forte e se recuperará para continuar sua jornada, porém agora longe dos caminhos da internet, apenas com a lembrança de uma promessa de amor que a morte interrompeu.

 

A velha Alda

A

Silvia C.S.P. Martinson

Ela era velha. Tão velha que já não se podiam contar as rugas em seu rosto. Tampouco ela se recordava ao certo em que ano viera ao mundo e, em verdade, quantos anos tinha.

Vivia em um povoado antigo perto da cidade grande, onde morava em uma casa tão antiga quanto ela, porém bem conservada e com certo conforto. Nada lhe faltava. No povoado, todos a conheciam e a respeitavam, a chamavam de "a velha Alda". Quando pronunciado, soava de uma forma estranha porque era dito em voz baixa e de forma circunspecta por quem a pronunciava, quase como uma reverência a um santo.

A "velha Alda" havia nascido neste povoado, se criado, casado e também ali havia perdido todos os de sua família —o marido e filhos— em um acidente fatal de carro, onde somente ela sobreviveu. Isso se passou há muitos e muitos anos. A ela só restaram as boas lembranças e a grande capacidade que tinha para compreender a vida e superar os momentos duros e tristes que a todos acontecem.

Alda sabia o que ia acontecer, ela o previra. No entanto, nada pôde fazer para evitá-lo. O Destino, em toda sua força, se impôs a todas as orações e pedidos que ela fez para que tal não acontecesse. A sua dor foi enorme, todavia, com o passar dos anos e por causa do trabalho que exercia junto à comunidade, a tristeza da ausência se amenizou e deu lugar ao que realmente importava: aos dons que a "velha Alda" trazia consigo.

Sim, dons. Alda trazia o raro dom que acomete a algumas pessoas sem que se saiba nem por que, nem por que não. Ela previa os acontecimentos, fossem eles bons ou ruins. As pessoas do povoado a conheciam e respeitavam por sua capacidade de adivinhar. Era comum baterem à sua porta para consultá-la sobre suas vidas, seus anseios, suas perspectivas e suas dúvidas.

Ela a todos atendia com a mesma amabilidade de sempre e lhes dedicava o tempo que lhes parecesse necessário a fim de que, ao saírem de sua casa, estivessem mais confiantes e tranquilos. Ela não aceitava presentes e muito menos dinheiro em troca de seus conselhos. Não tinha necessidade disto.

O marido de Alda, ao morrer, lhe deixou uma pensão mensal razoável que lhe permitia viver com algum conforto e não depender da ajuda de outras pessoas, muito menos receber dinheiro por exercer seu dom em benefício dos demais.

O próprio cura do povoado a respeitava e nunca fez qualquer comentário desabonador sobre ela, até porque, há alguns anos, ela previra a morte do irmão dele em um acidente de avião, preparando-o psicologicamente para a perda que iria sofrer.

Para um residente da localidade, muito pobre, ela lhe disse: "Muito em breve você se tornará um homem muito rico." E assim aconteceu: ele comprou um bilhete de loteria que foi sorteado com o maior valor de dinheiro da época. O tal homem até hoje lhe agradece em pensamento e também destina doações para entidades de caridade que vestem e alimentam os pobres. Este foi um conselho que ela lhe deu na época.

Para uma jovem, previu que em sua vida apareceria, vindo de terras longínquas, um homem do qual se enamoraria e viria, com ele, a se casar. Também previu que teriam três filhos: uma menina e dois rapazes, sendo que a garota nasceria após o primeiro filho homem. Predisse ainda que esta menina se tornaria médica e ajudaria a salvar vidas em uma guerra que aconteceria em um lugar distante dali. Isto realmente aconteceu.

As crianças a adoravam porque, nas tardes, ela se sentava em um banco da pracinha que ali havia e, rodeada pelos pequenos, ficava horas a lhes contar histórias bonitas. Nelas, os anjos e os espíritos bons, nos quais acreditava, faziam com que elas crescessem, fossem felizes e alcançassem a maturidade compreendendo tudo e, agradecidas, admirassem o quão belo é viver.

A "velha Alda" viveu muitos e muitos anos. Um dia, desapareceu e nunca mais foi vista naquele povoado. No entanto, aqueles que a amavam, em uma noite límpida e serena, viram aparecer no céu uma nova e brilhante estrela. E sem saber, todos se emocionaram.

A curiosidade e o aprendizado

A

Celso Gonzaga Porto

O  pai entra no quarto e percebe que o filho, mesmo com um livro aberto sobre a mesa de estudos, tem o olhar perdido ao longe. A observação é óbvia:

— "Não adianta o livro aberto na frente e o pensamento perdido nas brincadeiras."

— "Estou exatamente refletindo naquilo que estou estudando. É a Bíblia. Estou a pesquisar sobre um trabalho para as aulas de Religião."

— "Pois bem. Então continue o estudo. Não quero atrapalhar. Se eu puder ajudar..."

— "Papai. O senhor e a mamãe frequentam a Igreja há anos. Participam de todas as atividades, inclusive reuniões quinzenais em que os casais se reúnem para o estudo da Bíblia, certo?"

— "Certo. Há quase dez anos sua mãe e eu participamos destes estudos."

— "Então me ajude a entender uma coisa. A Bíblia diz que a origem da humanidade está no primeiro casal que Deus fez, criando o homem de um boneco de barro e a mulher de uma costela do homem, certo?"

— "Certo. A humanidade surge de Adão e Eva. Alguma dúvida?"

— "Pois bem, papai. Aqui diz que Adão e Eva tiveram dois filhos homens. Para que surgissem mais seres a partir deles, uma de duas coisas deveria acontecer: ou os filhos tiveram relações com a mãe ou um dos dois era hermafrodita."

— "Bem... há coisas um pouco complicadas..."

— "Tem outra complicação ainda maior. Não só a religião, como é o caso da nossa, como também a ciência, condenam a relação entre irmãos e, pior ainda, entre filho e mãe."

— "Bem... É... é... é..."

— "O pai de um coleguinha outro dia explicou que, na verdade, a Bíblia não fala, mas Adão e Eva tiveram outros filhos, inclusive mulheres. Mas o problema continua. Se na origem tivesse sido normal a relação entre irmãos, não teria razão para ser proibido mais tarde. Outro coleguinha disse que, segundo o pai dele, haveria outra comunidade de pessoas em local próximo onde vivia a família do Adão e foram essas duas comunidades que se uniram, vindo a originar a humanidade. O que meu coleguinha não soube responder-me foi quando eu levantei a questão de que, se havia outra comunidade, a origem não poderia ser atribuída apenas a Adão e Eva. Que explicação o senhor teria para isso?"

— "Bem... acho que é preciso pesquisar um pouco mais."

— "Veja, papai, há outros detalhes que estão deixando-me a pensar. Há um trecho aqui em que Jesus diz a Tomé: 'Felizes os que creem, mas não veem'. Isso também não me parece real de ter acontecido."

— "Por que?"

— "Porque Jesus, segundo consta, era um ser bastante evoluído para a época. Ele já deveria saber então o que sabemos hoje, que a dúvida é que impulsiona o conhecimento e a evolução. Penso que ele jamais deixaria para a história uma frase que contraria esse princípio elementar, ainda mais prevendo que a humanidade se basearia mais tarde nas suas palavras e nos seus conceitos. O que lhe parece?"

— "Bem... acho que preciso estudar melhor a Bíblia."

— "Ora, papai. Na verdade, ninguém estuda a Bíblia. As pessoas decoram o conteúdo escrito nela e assimilam como verdades porque têm medo de contestar e ser condenado. As religiões assustam para isso. Na verdade, para estudar literalmente alguma coisa, é necessário que se vá colocando em dúvida as coisas que nos são apresentadas, tentando sempre buscar uma explicação lógica. O que lhe parece se na conclusão do meu trabalho eu apresentasse o teor desta nossa conversa?"

— "Eu não te aconselho, filho."

— "Por que, papai?"

— "Certamente tua nota seria zero."

Perdido

P

Silvia C.S.P. Martinson

 
Caminhava, lentamente, pelas avenidas que cruzava sem prestar a mínima atenção ao perigo de um trânsito que felizmente, àquela hora não havia. Era noite, madrugada, melhor dizendo.
 
Sim, caminhava, porém não se dava conta do que fazia. Sua mente vagava em mil lembranças, em fatos ocorridos a tanto tempo que lhe ficaram marcados na alma, implicados em sua maneira de agir, pensar e em sua postura perante a vida. Nascera em meio a uma família pobre, cercada de irmãos maiores primeiramente e depois dele outros 3 menores.
 
O pai trabalhava como guarda-noturno de um prédio onde viviam pessoas abastadas e das quais às vezes recebia alguma ajuda na forma de sobras de comida e ou roupas usadas, as quais distribuía entre os filhos mais necessitados.
 
Eram pobres, porém asseados, vivendo em uma casa humilde construída por ele, o pai, em um bairro afastado.
 
A mãe, apesar dos muitos filhos, se mantinha uma mulher atraente e bonita a quem todas as mulheres poderiam invejar apesar de sua pobreza evidente.
 
Ela era costureira, aprendera a profissão, quando ainda muito jovem, encaminhada por sua madrasta que à época não tinha capacidade e nem vontade de proporcionar uma educação mais apurada, porque esta mulher pensava que o colégio estava destinado somente às pessoas ricas e que aos pobres somente cabia trabalhar e ter uma profissão. Assim então eram os pais dele.
 
Enquanto caminhava, entre tantos pensamentos ele os recordara.
 
Ao andar, outros pensamentos, lembranças, lhe acorreram à memória, sobre sua juventude, quando então invejava aos outros de sua idade por terem mais gozos e condições financeiras enquanto, ele, trabalhava de dia e ao mesmo tempo à noite estudava para tentar um futuro melhor.
 
Valeu a pena. Formou-se em Economia. Era inteligente e dedicado aos estudos.
 
Sua vida amorosa, no entanto, se pautou por altos e baixos várias vezes. Houve ocasiões em que foi muito feliz, outras tantas profundamente decepcionado por suas escolhas equivocadas.
 
Caminhou em direção de amores que lhe pareceram sinceros, deu-se por inteiro a quem não o merecia.
 
Desiludido e sofrido não soube reconhecer a quem lhe verdadeiramente queria bem. Fez padecer, a outros, o que havia sofrido: negligencia, egoísmo, descaso e falta de afeição verdadeira.
 
E nesta caminhada pelo tempo, pela vida, deixou lembranças e também consigo as carregou.
 
Ao final da estrada, naquela madrugada, quando não havia mais nada, constatou que estava perdido, adormeceu ao impacto imaginando o quanto poderia ter sido feliz se mais simples e menos exigente houvera sido.
A buzina do carro se fez alta, o barulho do freio ao travar foi estridente.
 
Ele... Não acordou nunca mais.

Liberta a saudade

L

Daizi Vallier 

Acordo com imensa saudade. Tomo meu café, com o ritual de sempre, depois visto um abrigo e saio em direção ao Parque Farroupilha. Atravessei da Av. João Pessoa para a Av. Osvaldo Aranha e vice versa, por longo tempo. De mãos dadas com ele. Caminhei empurrando carrinhos de bebês, eram horas de prazer. Andamos os quatro de bicicleta, primeiro eram duas, as meninas muito pequenas, na nossa carona, depois cada um na sua. Lembro-me de alguns incidentes, onde ficavam com joelhos e mãozinhas raladas. Sorrio. Andávamos de patos barcos, assim elas denominavam os barquinho no lago. Uma lágrima salta. Seco com o espaldar da mão. Sento-me em um banco perto do chafariz. Parece que as vejo correndo a volta dele, fingindo estarem na chuva. Elas cresceram. Nós dois continuamos passeando pelo parque, o chimarrão e os amigos que encontrávamos no Bric aos domingos, eram nossas novas companhias. Enquanto estou sentada ali, deixando as lembranças aflorarem, um ou outro frequentador conhecido, ao passar na sua caminhada diária, me cumprimenta.
Chegou o dia em que me vi sozinha, em caminhadas ou atravessando o Parque, tão cheio de recordações. As nossas meninas, quando casaram, foram morar em outro ponto da cidade. Anos depois, nós sentimos necessidade de separar nossos caminhos, e eu optei por continuar no que chamo meu bairro.
Hoje é um daqueles dias em que resolvi dar guarida, por algum tempo, a saudades, e o lugar, no calor agradável do início da manhã, com seu cheiro de grama, caturritas a cantar e a visão dos ipês floridos, é um ambiente acolhedor, próprio para deixar minhas lembranças aflorarem. Saciada de distantes visões e sensações, resolvo estar na hora de voltar ao aqui e agora. É quarta-feira, dia em que almoço com as filhas, uma combinação para que tenhamos umas horas, as três sozinhas. É quando compartilho com elas o meu dia a dia e ouço opiniões sobre dúvidas que tenho na administração da minha própria vida. São momentos de afeto. Tenho consciência de ser preciso aproveitar o presente, deixando o passado nas recordações de belos momentos. Esperando o futuro com fé e alegria.

O aniversàrio de Vitor

O

Silvia C.S.P. Martinson

Esta data era sempre muito esperada por todos os amigos. Vitor era o mais velho de dois irmãos e também o mais ativo e desembaraçado dos dois meninos. O que vamos contar se passou quando ele estava a completar 10 anos de idade. Os pais de Vitor eram amigos de meus pais, que, também, eram vizinhos e amigos da avó materna dele. Eles viviam em uma bela casa grande e confortável em um bairro próximo ao em que nós morávamos. A educação que recebíamos à época difere totalmente da que é dada às crianças hoje, pelo menos em nossas famílias. Devia-se ao chegar à casa dos anfitriões, da festa, bem vestidos e muito recomendados à educadamente cumprimentar os pais do aniversariante e a este sem dúvida. Não deveríamos sentar à mesa sem sermos convidados desde que autorizados por nossos pais. Eu sempre fui muito alta e aparentava, consequentemente, mais idade do que tinha em realidade. Nesta época com 10 anos eu tinha a aparência de ter 15 ou 16 . A dona da casa, mãe de Vitor, era exímia cozinheira e acima de tudo costumava fazer doces inigualáveis, tanto em sabor quanto em beleza. Lembro ainda que a mesa da sala de jantar estava coberta de doces e salgados que apeteciam prova-los, afora que ao centro dela se encontrava um enorme bolo de aniversário belissimamente decorado, que aos nossos olhos de crianças era uma verdadeira tentação. Os adultos foram acomodados em outro setor da casa onde lhes foram servidos bebidas e alguns petiscos antes da mesa dedicada à comida dos mais velhos, o que se daria mais tarde. As crianças eram servidas mais cedo junto ao aniversariante, para que cantassem o Parabéns a Você e ele apagasse as velinhas que então acesas no bolo estavam em número exato dos anos que cumpria Vitor. E foi o que aconteceu.
A mãe de Vitor chamou para compor a mesa todas as crianças convidadas, quando chegou a minha vez ela simplesmente me disse que como eu era já uma jovem deveria aguardar para sentar-me a mesa com os adultos.
Assim que deu-me uma cadeira para sentar-me e ali ficar esperando. As crianças alegremente sentaram-se não antes de saudar o aniversariante e após o que “atacaram”, este é o termo correto, literalmente as guloseimas que ali estavam postas. O tempo passou e eu estava cada vez com mais vontade de comer, porém a minha educação à época não permitia, sob hipótese nenhuma, atrever-me a solicitar alguma coisa. Mais tarde os adultos foram convidados a acercar-se da mesa que estava novamente coberta das mais diferentes e apetitosas guloseimas.
Todavia algo para mim inesperado se passou: a dona da casa se esqueceu do que me havia dito e não me convidou a passar à mesa dos adultos.
Então, discretamente, acerquei-me a minha mãe que já estava comendo e bebendo e lhe pedi um pedaço do lindo bolo que ela comia. Ela simplesmente respondeu-me olhando-me seriamente: - Já não comestes? E sem esperar a minha resposta disse: - Vai sentar-te com as crianças que ali é o teu lugar e não importunes a nós ou a dona da casa com a tua falta de educação! Retirei-me como me havia mandado com muita vergonha e muita fome também. Voltamos para nossa casa já noite cerrada e eu com raiva só chorava ao que minha mãe àquela hora não quis saber o porquê. Fui dormir com fome. Quando no dia seguinte lhe contei o que se passara ela me proibiu contar à mãe de Vitor ou a ele o que ocorrera. Até hoje guardo na memória aquela linda mesa coberta de doces com as guloseimas que me apeteciam e apetecem tanto.

Um chafariz de refresco

U

Celso Gonzaga Porto

Das reminiscências do meu tempo de infância, surge na lembrança a história de um antigo chafariz. Ele ficava na confluência das avenidas João Pessoa e Azenha, junto a uma estátua de Bento Gonçalves, um dos heróis da Revolução Farroupilha, cujo monumento foi inaugurado em 15 de janeiro de 1936 sendo instalado ali, na Praça Piratini em 1941. Na década de cinquenta, esse chafariz era todo iluminado à noite. Holofotes instalados no contorno interno da sua estrutura, direcionados em ângulo aos bicos que faziam a água jorrar, davam a conotação de que a água saía em jatos coloridos. O cenário é um ambiente característico do bairro Azenha, cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. E por ali, circulavam os antigos bondes, transporte elétrico sobre trilhos cuja extinção aconteceu em 08 de março de 1970 dando passagem ao transporte de ônibus, administrados pela Companhia Carris Porto Alegrense, a mesma que administrava desde 1872 o serviço de bondes, sendo que 10 de março de 1908, marca a data do primeiro bonde elétrico a circular pela cidade. Mas voltando às reminiscências, vejo-me andando com meus pais no bonde Teresópolis, cuja linha passava por aquele chafariz. Várias foram as vezes que circulamos por ali à noite. Na minha fantasia infantil, ficou a ideia de que naquele chafariz, jorrava refresco. Comentei isso com meu pai e ele, tentou explicar-me que não era isso que acontecia dizendo passo a passo como ocorria aquele efeito.
Ele não teve muito sucesso no seu trabalho. Na mente de fantasia, formava-se um sentimento de estar sendo enganado. Provavelmente, por não querer descer do bonde para que aquele refresco pudesse ser saboreado. Como eram várias cores, poderia ter ali muitos sabores diferentes; quem sabe limão, laranja, morango ou até algum sabor novo ainda desconhecido.
Os anos se passaram e com ele, a desilusão do meu chafariz de refresco. A maturidade mostrou que meu pai tinha razão. A água mantinha as suas características inatas de ser incolor, inodora e insípida. Todo o efeito não passava de luzes artificiais jogadas sobre os jatos d’água que jorravam de bicos estrategicamente posicionados de maneira artística com propósito de formar uma ilusão de ótica propícia à fantasia de criança. Nunca consegui passar caminhando próximo ao chafariz, mas uma coisa acompanhou-me pelos tempos. A certeza de que, se passasse por perto, certamente tentaria burlar a atenção dos adultos e, com as mãos em concha, apanhar um volume pequeno daquela água que proporcionasse um gole ou um bochecho, para ter a certeza de que aquilo, realmente não era refresco.

Me fui

M

María Manuela Asenjo

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson

E eu me fui.

E, no mesmo instante, você crispou num rictus amargo seu rosto lívido.

E depois vagou, contemplativo, pelas ruas escuras. Sem entender.

Muito tempo depois, ainda chorava lágrimas de aturdimento e regava o jardim com água salgada.

Num canto, num não sei, num porquê.

Inclusive você, ateu convicto, encomendou novenas em meu nome, pela minha alma. Que alma!

Agora, inimigo e ignorante da tecla e da técnica, você aprende Photoshop às pressas.

Retocando minhas melhores fotos, para conseguir a perfeita que presida esse altar.

Com velas, com rosas-chá, daquelas minhas, minhas preferidas, as que nunca conseguimos que crescessem.

Acorda suado de mil pesadelos.

Você, insociável incorrigível, solta frases de amor pela minha pessoa, louvores inúteis e tardios a todo ouvido que queira recolhê-las.

Agora, digo, agora… se eu soubesse, ironia no ar, não teria ido.

Mas eu me fui, e nunca cheguei a ver os altares, nem a me molhar com as lágrimas, nem a cheirar as rosas, nem a escutar as palavras que, por outro lado, você nunca teria dito se eu não tivesse ido.

Assim, a meu pesar… eu me fui.

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