CategoríaProsa

Dia especial

D

María Manuela Asenjo

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson

Afano-me diante do espelho com o delineado da pálpebra. Meu pulso trêmulo fez com que eu tivesse que limpá-lo duas vezes.

Primeiro o fundo branco, o de efeito boa aparência. A maquiagem um pouco espessa, blush…

Há anos não me maquio, leio as anotações pousadas na prateleira da pia com atenção, cumprindo cada passo, como se fosse a cola de uma garota do ensino médio: sombra escura na parte inferior em forma de noz que combine com o tom da íris ou da roupa… Ai que nervos!

Reflexos luminosos na parte superior… que o olhar resplandeça… Bom, estou ficando com uma cara melhor. Espera, um pouco mais de pó nas maçãs do rosto.

Olho o relógio pela enésima vez, é quase a hora. Em uns dez ou quinze minutos ele chegará. Tenho que estar impecável.

Retoco o contorno dos lábios, coloco a jaqueta do meu melhor terno sobre a blusa de seda. “Que diabos – digo à mulher do espelho enquanto pulverizo um pouco de laca –, você está espetacular. Deveria se arrumar mais vezes.”

Demorei para escolher que sapatos usar. Mas escolhi estes, os altíssimos, de camurça preta, estavam guardados no fundo do armário. A verdade é que me destroem os pés, mas são os mais sensuais. Hoje estou empenhada em que ele me veja deslumbrante, especialmente atraente…

Não terminei de calçar e ouço a chave entrar na fechadura. Saio do quarto ao mesmo tempo que ele fecha a porta. Ele vira, fica paralisado. Cravou os olhos em mim e não consegue desviá-los. Noto uma mistura de admiração, desejo e estranheza.

– E isso? – ele desconfia
– O quê? – sorrio nervosamente
– Esse seu aspecto, por que você se arrumou tanto?
– Queria te fazer uma surpresa
– E o menino?
– Levei-o para a casa da minha mãe. Queria ficar com você a sós.
– Não entendo, o que estamos celebrando hoje? Além disso, não vamos sair; você se esquece da minha torção, meu pé dói muito.

Ele continua parado segurando as chaves e a carteira, junto à entrada. Avanço em direção a ele do fundo do corredor, decidida.

Com meu sorriso mais sedutor, fico na ponta dos pés, aproximando minha boca de seu ouvido (detecto um leve brilho de temor em seus olhos?).
– Hoje é uma data muito importante, querido, faz exatamente sete anos, três meses e vinte dias que comecei a morar com você. E veja, teremos tido um filho, teremos passado por muitas coisas, você terá marcado um antes e um depois na minha vida, de fato, você deixou em mim marcas indeléveis. Mas hoje, finalmente, quero te agradecer. Não sei o que acontecerá amanhã, se poderei realizar meus projetos, nem mesmo se os tenho. O que eu te asseguro, querido, é: Jamais voltará a encostar a mão em mim.

Ele não tem tempo de reagir. Tenta agarrar meu braço, mas me solto energicamente. Pego minha mala e minha bolsa do armário da entrada e saio com passo firme, queixo erguido e olhar desafiador. Só eu noto como minhas pernas tremem, enquanto arrasto a bagagem, tomando cuidado especial para que as rodas passem por cima de seu pé dolorido.

Lá embaixo me esperam no carro, é o princípio da minha nova vida. Sei que amanhã, finalmente, terei despertado para sempre desses sete anos de pesadelo. Por isso retoco novamente minhas maçãs do rosto no elevador, para que não se note nem um resquício do passado.

O vigarista

O

Silvia C.S.P. Martinson

 

Havia um ruído intenso. Quase não se podia ouvir o que ele falava. Porém, continuava a fazê-lo sem parar.

O homem não tinha vergonha; pensava-se jovem, apesar dos 78 anos que tinha. Foi casado várias vezes, cinco para ser mais exato. Culpa as mulheres por suas separações. Em sua opinião, todas têm algum defeito: ou físico, intelectual ou moral. Impressionante.

Está bem fisicamente, apesar de não ser um homem atrativo, porque é baixo e de certa forma feio. Relativamente, tem algum charme: é simpático. É europeu, fala bem em francês e espanhol. Como companhia de beira de praia para um bate-papo, é até interessante.

Para seus amigos ricos é especialmente prestativo. Sim, para seus amigos ricos. Em verdade, é o que mais lhe agrada, ou seja, ter amigos e mulheres muito ricas com as quais possa conviver e partilhar de suas festas e ambientes requintados. Aparentemente, é uma pessoa simples e, é claro, quando expõe sua situação financeira, todavia, entre suas palavras e ações, denotam-se verdadeiramente suas intenções.

Aos amigos que estão na mesma situação que ele, quando não tem ninguém, aproxima-se para encobrir sua solidão. No entanto, a estes negligencia na primeira oportunidade quando surge alguém mais aquinhoado. A vida também, às vezes, prega suas peças. E assim se passou.

Por um chat de internet, aonde procura conhecer pessoas normalmente para travar relações pessoais, conheceu uma mulher latino-americana que parecia bem colocada financeiramente. Bonita, de alta estatura e relativamente jovem para ele. A diferença de idade entre os dois se aproximava em 20 anos a mais para ele.

Foi visitá-la em sua cidade, hospedaram-se em um hotel e lá mantiveram relações sexuais que lhe pareceram bastante satisfatórias. Convidou-a para passar uns dias em sua casa na praia.

Ela veio. Chegou toda charmosa, encontrou-o na estação, ele fora buscá-la como costuma acontecer com homens educados. A senhora pensou então que encontrara o homem de sua vida, aquele que haveria de satisfazê-la em todas as suas expectativas, que eram: casar-se com um europeu para obter a cidadania europeia, um homem mais velho que pudesse dominar, rico e proprietário de bens materiais que fizesse com que a vida lhe fosse cheia de regalias e sem problemas com que se preocupar.

Ledo engano. Quando constatou a dura realidade, quando não teve acesso aos restaurantes que pretendia, quando viu que o apartamento em que ele vivia era alugado e que a comida era feita em casa e escassa, pensou em como se descartar da situação criada.

Urdiu então e executou com frieza, calculadamente, seu plano. Começou bebendo todas as cervejas que ele tinha armazenado em sua casa, mais ou menos umas quinze. Depois delas, dormiu toda a noite em sua cama, ocupando o lugar dele inclusive.

No outro dia, foram à praia e depois almoçar em um restaurante simples, onde tomou novamente umas oito ou nove cervejas sem, no entanto, se tornar embriagada. Ante o que via, ele se tornou cada vez mais aborrecido e frustrado em seus desejos de grandeza.

Surtiu efeito o plano dela. Ao final do fim de semana, ela se despediu e lhe disse:

"Adeus, amor! Simplesmente não combinamos em nossos gostos. Eu gosto de Champanhe francês e você? De água. Sinto!"

Com mel se pegam moscas (e não com fel)

C

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por José Manuel Lusilla
 

Naquela manhã, apareceram por todo o bairro uma multidão de grafites. Portas de garagem, muros de edifícios e, em geral, qualquer pedaço de parede com cimento amanheceram com misturas artísticas de cores variadamente combinadas para obter composições luminosas, que os adornavam com grande acerto.

Por exemplo, em uma parede que ficava de frente para uns jardins, haviam pintado umas árvores que pareciam formar um pequeno parquinho vegetal.

Um segundo exemplo: em uma porta de garagem de uma comunidade de vizinhos, haviam pintado um precioso e reluzente automóvel vermelho, que parecia sair de dentro, com os faróis acesos.

Parece que vários vizinhos haviam observado, de suas janelas, grupos de adolescentes de uns 13 ou 14 anos, armados de sprays, pintando ao anoitecer, e esses vizinhos foram falar com o diretor da Escola Pública que ficava perto, porque pensavam que os jovens poderiam ser alunos dele.

O diretor os recebeu com um sorriso e, em seguida, pediu que o acompanhassem. Deu-lhes um passeio por todos os pátios traseiros do Colégio e lhes mostrou as paredes internas, que estavam igualmente cheias de grafites.

Ele havia tentado obrigar os alunos a parar de rabiscar as paredes, ameaçando-os com castigos se fossem pegos fazendo isso, mas tais ameaças não conseguiram nenhum resultado. Os garotos continuaram borrando tudo, às escondidas, com suas tintas.

Os vizinhos voltaram para suas casas, mais surpresos do que quando foram se queixar ao Colégio.

O Diretor, que estava preocupado com a situação, passou vários dias meditando e, no final, elaborou um plano de ação.

Reuniu os alunos no Salão de Atos e propôs organizar um Concurso de Pintura no qual poderiam participar voluntariamente, selecionando previamente os melhores artistas dentre todos os alunos. Eles teriam que formar 10 equipes de pintura e fariam seus grafites nas paredes internas dos pátios do Colégio.

Em primeiro lugar, deveriam pintar todas as paredes de branco, fazendo assim desaparecer todas as pinturas feitas anarquicamente por todo o Colégio. Em seguida, pintariam os temas selecionados pelas equipes, e uma vez terminados, seriam julgados e avaliados por todos os alunos. Eles seriam classificados do primeiro ao décimo, e receberiam os correspondentes diplomas, em função das pontuações obtidas por cada um deles.

O resultado foi um sucesso esmagador, e não se viram mais grafites pelo bairro. Os artistas se sentiram valorizados por obra e graça de um diretor que utilizou sua hierarquia e seu intelecto para demonstrar mais uma vez que as moscas se caçam com mel, e não com fel. Onde a ameaça não funcionou, a inteligência triunfou.

Uma cesta de cornos

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Silvia C.S.P. Martinson

Nos anos 60, em Espanha, o amor à tauromaquia era muito mais acentuado do que atualmente. O crescimento dos adeptos contra touradas têm aumentado em detrimento dos adeptos das touradas, ao contrário dos adeptos do futebol, que foi crescendo cada vez mais até que atingiu o atual volume de seguidores a nível mundial.

Recordo-me quando, em criança, falava com Don Antonio, marido de Dona Luchi, que era engenheiro, um homem culto e que defendia a festa nacional, em ultraje ao futebol, argumentando que esta era espanhola, enquanto o futebol tinha sido inventado pelos ingleses.

Havia grandes mestres de toureio, e entre eles destacava-se um par de matadores que polarizavam os adeptos, tal como hoje acontece com as grandes equipas de futebol, onde um par está sempre em disputa pelo primeiro lugar.

Um dos matadores distinguiu-se por um estilo de toureio apressado, com movimentos acelerados e voltas bruscas em frente à cara do touro, foi gravemente ferido nas suas touradas porque arriscava o seu corpo ao aproximar-se demasiado do touro, ao ponto de, no final da tourada, o seu traje estar manchado de vermelho pelo sangue do touro. Os jovens preferiam o seu estilo de toureio às formas mais clássicas de toureio

Outro destes distinguia-se por um estilo de toureio muito mais clássico, sempre firme e sem perder a compostura, o que agradava muito mais aos aficionados mais velhos.
Não vou tomar partido por nenhum deles, porque gostei de ambos os toureiros no desenvolvimento do seu toureio, um pela sua seriedade e o outro pela sua alegria.

O fato é que houve algumas desavenças entre ambos por causa do tamanho dos touros e dos seus chifres e da proximidade dos toureiros à ponta dos chifres na realização das touradas.

Conta-se que um deles, que tinha sido casado com uma bela senhora de quem se tinha separado, aparentemente devido a alguns casos de infidelidade para com o seu casamento, enviou ao outro, como presente, um cesto cheio de cornos de touros bravos e enormes, gabando-se dos touros que costumava matar nas suas touradas, insinuando que os touros que o outro mestre matava eram touros com chifres pequenos, ao contrário dos que ele matava.

O outro mestre, em resposta, enviou-lhe uma cesta cheia de ovos, e dentro dela, um envelope com um bilhete escrito à mão por ele, onde se lia: “Cada um dá o que tem de sobra”.

Não mencionarei os nomes de nenhum dos dois toureiros, mas qualquer fã da época sabe quem eram eles e também sabe que o combate foi muito falado publicamente e celebrado nos anos 60.

Distraídas

D

Silvia C.S.P. Martinson

A rua estava repleta de pessoas que caminhavam apressadamente umas, outras, no entanto, mais devagar. Estas últimas iam a seu passo, apreciando as vitrines das lojas que já se encontravam abertas.
 
Era a semana que antecede o Natal. As lojas em sua grande maioria estavam com suas vitrines cheias de sugestões bonitas a fim de que as pessoas se interessassem de comprar algum objeto, ou roupas, ou brinquedos para ofertar, como presentes, aos seus queridos na noite de Natal. Costume este tão comum em certos países.
 
Os três caminhavam na mesma calçada, cada um a seu ritmo. André mediava os 65 anos e ia andando com certa pressa, ao mesmo tempo em que atendia, em seu celular, uma chamada de seu neto, o qual lhe recomendava comprar a ele uma bicicleta que havia visto em uma determinada loja e que lhe agradara muitíssimo, acima de tudo uma vez que a mesma preenchia sobremaneira às suas expectativas e necessidades para quando se deslocasse à universidade em que estudava.
Ela, Lidia, deslocava-se tranquilamente, olhando as pessoas que passavam ao mesmo tempo em que se recordava de fatos ocorridos em seu passado. Um desses fatos a fez lembrar-se de que aos 20 anos, agora com 65, se apaixonara por um jovem e ele por ela. Este se chamava André. Estavam ambos já na universidade, cursavam distintas matérias uma vez que ele pretendia ser advogado e ela médica.
 
Lembrou ainda que ao final do curso de cada um, ambos, se separaram. Cada qual seguiu seus objetivos em especializar-se em cursos de pós-graduação em outras universidades.
Eventualmente se encontraram, todavia a vida, os compromissos e outros interesses acabaram por separá-los.
 
Mais atrás e em sentido contrário vinha pela mesma calçada um homem de idade mais avançada, apoiava-se em uma bengala, haja vista que o peso dos anos já se lhe faziam sentir mais fraco, trôpego, sem a higidez da juventude.
 
Chamava-se Francisco este velho homem que caminhava lentamente. Havia sido professor na universidade.
 
Ao olhar aquelas duas criaturas que vinham tão distraídos e ensimesmados, recordou-se imediatamente de seus alunos André e Lidia aos quais ele sempre olhava com certa inveja face a juventude e beleza que ambos tinham àquela época.
 
Notou ainda que, ainda assim, os dois apesar da idade mantinham traços de beleza que o tempo não lhes roubou.
 
Francisco observou que ambos andavam sem separado, não como antes na universidade quando então enamorados caminhavam de mãos dadas e seguidamente os via, pelas esquinas, abraçados a beijar-se.
Francisco tentou chamar-lhes naquele momento. Lidia olhava distraída uma vitrine de uma loja de roupas. André estava ocupado atendendo sua chamada no celular, completamente absorto.
 
André e Lidia simplesmente não se haviam dado conta da presença de um ou outro naquela rua.
 
Francisco emocionado ante tantas lembranças tentou uma vez mais chamar a atenção de seus ex-alunos, no entanto a voz se lhe tornou embargada, os olhos se lhe encheram de lágrimas. Uma forte dor no peito fez com que se acomodasse em um banco que havia na calçada.
 
Francisco ali adormeceu para sempre enquanto as pessoas, cada uma, seguiam seus caminhos, seus destinos pelas estradas da vida, total e absolutamente distraídas.

NA MINHA CASA EU MANDO (Quando minha esposa não está)

N

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao portugués por SIlvia Cristina Preissler

Conta a lenda de Rozas do Porto Real que Majadillas, que era uma aldeia adjacente a Cadalso de los Vidrios, foi abandonada no primeiro terço do século XIX porque as formigas a comeram. Seja verdade ou não, o que é certo é que estava situada em um lugar muito bonito, próximo ao ribeirão Tórtolas, e que do local se conservam de pé as ruínas de sua igreja de São Pedro. Além da igreja, neste pequeno povoado havia 22 casas e 1 taberna. A população era de 20 vizinhos que viviam dedicados à agricultura.

Continuamos contando, segundo a lenda, que à aldeia de Majadillas chegou um dia uma expedição enviada pela Irmandade Provincial de Pecuaristas, interessados em aumentar ali o número de cabeças de gado, que aparentemente tinha os pastos muito desaproveitados. Essa expedição levava vacas e cavalos para doar aos habitantes locais, e o critério que adotaram para distribuí-los baseava-se no fato de que aqueles lares onde a direção da casa era exercida pela mulher receberiam uma vaca leiteira, e nos lares em que o homem dirigia o lar, seria presenteado com um cavalo.

O resultado de toda a operação foi que em todas as casas a dona de casa mandava, exceto na casa de Juan, o Carvoeiro, que afirmou que em sua casa ele mandava. Em cada casa deu-se uma vaca, exceto na casa de Juan, o Carvoeiro, a quem deram um cavalo totalmente branco, que levou para sua casa puxado pela guia e o prendeu no anel de ferro que havia junto à porta de entrada de sua casa.

Quando sua esposa viu o cavalo branco em sua porta, perguntou a Juan sobre ele. Ele explicou que havia escolhido um cavalo porque assim poderia usá-lo para carregar os sacos de carvão vegetal que produzia. Sua esposa respondeu que o cavalo branco deveria ser trocado por outro que fosse negro, primeiro porque ela gostava mais daquela cor, e segundo, porque com o pó negro do carvão, sempre estaria sujo.

O carvoeiro voltou com o cavalo e disse ao responsável pela distribuição dos animais que ele deveria trocar por um cavalo negro, porque sua mulher gostava mais daquela cor. O responsável imediatamente disse ao seu assistente: “A ESTE, RECOLHA O CAVALO E DÊ-LHE UMA VACA, PORQUE EM SUA CASA MANDA SUA MULHER, POR MUITO QUE ELE DIGA QUE MANDA”.

Convite

C

Silvia C.S.P. Martinson

Me convidas a viver, a querer-te
e te sigo sem parar
iludida em sonhar
que poderás querer,
em algum tempo,
em algum lugar,
deixar em meu corpo
do teu ardor as marcas.
E, eu, como tua amante,
ficarei para sempre
e cada vez mais
a te desejar
eternamente, a tua espera
a vibrar e a te amar.

Tio Raimundo e o escorpião

T

Silvia C.S.P. Martinson

Tio Raimundo como sempre chegava de mansinho sem fazer alarde de sua presença.
Quando nos dávamos conta ele estava sentado em uma cadeira frente a grande mesa de mármore que havia no terraço coberto nos fundos da casa de sua sobrinha.
 
Quando víamos lá estava ele sentado quietinho, com um sorriso esboçado na cara, como adivinhando que estávamos nos aproximando. Normalmente isto ocorria depois do almoço. Ele nunca vinha para almoçar. Já o fizera em sua casa.
 
Tomava de um barco, porque vivia em uma ilha próxima da capital e chegava à primeira hora da tarde, ou para ir aos médicos, porque já era velhinho, ou para visitar os parentes, quando então era sempre por todos bem vindo.
 
As crianças o adoravam pelas histórias que sempre tinha para contar. Em uma dessas visitas contou que se encontrava em uma pescaria na beira do rio e como havia muitos peixes que pescara resolveu limpá-los ali mesmo, acocado em um barranco de areia, junto à água.
 
Enquanto limpava os peixes não percebeu que um escorpião lhe subia pela perna.
Somente quando sentiu a picada do bicho e a dor que lhe causou é que se deu conta do perigo que isto representava. As pessoas que vivem no campo conhecem o quanto é mortal a picada de certas cobras ou escorpiões.
Aquele escorpião, segundo contou Tio Raimundo, era dourado e conforme ele disse, estes são os mais mortais, porque altamente venenosos.
 
E assim narrando foi que contou como se salvou. Disse que sacou de um facão que sempre carregava consigo e cortou de um só golpe um pedaço de carne da canela, deixando o osso exposto onde o bicho lhe havia picado.
 
O sangue lhe correu aos borbotões e ele que sempre levava consigo, em suas pescarias, algodão e compressas, fez ali mesmo seus curativos, após o que recolheu tudo e foi para um hospital na cidade a fim de ser tratado.
Com o tempo e muito atendimento médico curou-se.
 
Todavia o mais interessante e inexplicável de tudo é que todos os anos, no mesmo lugar da picada a pele que ali cresceu ficava avermelhada e ardia muitíssimo, causando-lhe dores e muitos cuidados para que aquela não se rompesse novamente deixando o osso da perna exposto.
 
E assim contando Tio Raimundo levantou a perna da calça que usava e mostrou às crianças a grande cicatriz que ali se encontrava.
As crianças ficaram de boca aberta e olhos arregalados enquanto Tio Raimundo lhes mostrava o que sucedera e ao mesmo tempo aproveitou para aconselhar:
 
- Crianças queridas nunca se aproximem de um escorpião dourado, ele é bonito, todavia traiçoeiro e malvado.
 
E sorrindo, deu adeus, levantou-se e tranquilamente, como sempre, foi embora.

 

¡ Mundo Mundo!

¡

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Sílvia C.S.P. Martinson

Havia uma família em Las Rozas del Puerto Real que tinha um cachorro chamado Mundo.

Naqueles dias haviam realizado a matança de porcos, criados durante o ano e cevados com castanhas e bolotas, tão saborosas e que existem em seus montes.

Foram elaborados chouriços e morcelas curados nas cordas e varas que se conservavam na cozinha e consumidos durante todo ano juntamente com presuntos, paletas, lombo de toucinho, cara e orelhas e lombos curtidos igualmente.

Se utilizava para curtir estas peças além do sal, pimenta de Vera, alhos das Pedroñeras e a erva chamada orégano que se cria nas ladeiras dos montes que tem uma qualidade extraordinária e serve para a conservação das carnes.

Aconteceu que uns dias depois o pai da família enfermou e morreu repentinamente.

Naquela época se costumava velar os mortos, pelos familiares e amigos em sua própria casa, durante vinte e quatro horas, até o dia seguinte quando se procedia enterrar o cadáver.

Mundo, o cachorro, levava todo dia sem comer por conta do esquecimento de sua dona. E estando esfomeado subiu em uma mesa e alcançou uma réstia de chouriços e os levou à boca cruzando a sala do velório onde a dona da casa dando gritos lastimosos começou a dizer: “Ah! Mundo, Mundo, como os estas levando! E dos melhores!”

O cômico destas frases está em que a mulher se referia aos embutidos que havia roubado o esfaimado animal e em troca os assistentes ao velório acreditavam que a mesma se referia às pessoas que iam falecendo no correr do tempo.

Um chão chamado Tenazas

U

Pedro Rivera Jaro

Traduzido ao português por Sílvia C.S.P. Martinson
 
A avó paterna de Estrella, minha esposa, se chamava Concepción.
 
Era filha mais velha do primeiro matrimonio do avô León , que posteriormente ficou viúvo. Veio este a casar-se em segundas núpcias com uma jovem chamada Leonor com quem teve muitos filhos.
 
O avô León estando viúvo costumava levar muitos convidados para comer em sua casa e cabia a Concepción, como filha mais velha, preparar comida ao pai e a seus convidados, o que já estava farta de fazê-lo.
 
E pensando que se fizesse mal os alimentos, os convidados deixariam de vir a sua casa e de dar-lhe trabalho. Então preparou umas batatas cozidas carregadas em pimentas que efetivamente o convidado não se atreveu a seguir comendo e tampouco voltou a sua casa.
As batatas as colocou para comer ao seu cachorro de nome
 
Tenazas, que cheio de fome se avançou ao recipiente, cheio, para comer. Dando a primeira bocada, o cão, soltou um grunhido queixoso e saiu correndo da casa e até hoje não voltou.
 
Conce, como a chamava-mos todos, era uma mulher cheia de vida e de maneiras graciosas.

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