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O sonho interminável

O

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

    A cidade de Ocaña, na província de Toledo, é uma pequena cidade cheia de história, refletida em sua praça principal  com pórticos, suas igrejas e conventos monumentais, suas casas ancestrais e seus luxuosos palácios antigos. Maria, minha falecida sogra, que descanse em paz, nasceu e foi criada nesta cidade. Ela era uma mulher com uma grande inteligência natural, e com grande graça quando se tratava de contar as experiências de sua juventude, como a história da criança inquieta que dormiu tranquila por 24 horas seguidas.

  O menino teria cerca de 5 anos de idade na época. Ele era o mais jovem de 4 irmãos de uma família de Ocaña bem estabelecida financeiramente, e cuidado como seus irmãos e irmãs haviam sido antes, pela Sra. Carmen.

O nome do menino era Angel, mas na realidade ele não era um grande anjo. Hoje diríamos que ele era uma criança hiperativa, mas em sua época costumavam dizer que ele era uma "cauda de lagarto", aludindo que gira e se move em todas as direções, o apêndice do réptil, quando ele é separado de seu corpo. Carmen, que trabalhou como interna na mansão, foi a que mais sofreu com a hiperatividade do garotinho.

O garoto fazia todo tipo de travessuras que você possa imaginar. Um dia ele misturava sal no pote de açúcar, outro dia ele adicionava água ao pote de vinho sobre a mesa, no dia seguinte era no leite que ele despejava a água. Um dia ele esmagou algumas das pimentas mais fortes e as adicionou à panela onde o cozido estava sendo feito. O anjinho era imperdível.

   Para completar, à noite ele dormia no quarto de Carmen, enquanto seus pais dormiam pacificamente em outro quarto. Angel não dormia nem mesmo à noite, porque acordava chorando e, é claro, também não deixava Carmen dormir, que se encontrava exausta com suas muitas tarefas diárias de cuidar da casa e das quatro crianças.

  Um dia, surpreendentemente, a criança não acordou pela manhã.    Aparentemente, a criança estava bem, só parecia estranho que estivesse dormindo tanto. Quando chegou o meio-dia e Angelito ainda dormia tranquilamente, seus pais perguntaram a Carmen por que a criança não se sentava para comer com todos à mesa da família. Ela lhes disse que ele ainda estava dormindo e que havia dormido a manhã toda. Os pais ficaram surpresos, conhecendo o caráter da criança. Imediatamente chamaram Don Amancio, o médico de família, para vir até a casa com urgência e examinar a criança. O médico o fez, e não encontrou sintomas de doença na mesma. Ele recomendou que a criança fosse deixada para dormir e que se veria quando acordasse à tarde.

  Eles o fizeram, embora com receio. Mas aconteceu que por volta das 20 horas, a criança ainda estava dormindo profundamente e os pais ficaram muito alarmados e começaram a preparar uma viagem no carro da casa, com a criança, para levá-la ao Hospital em Madri.

  Naquele momento, Carmen, que de outra forma adorava a criança, confessou que com o leite de chocolate que ela havia preparado antes de colocá-lo na cama, havia misturado um pouco de pó de semente de papoula, para ver se ela conseguiria descansar naquela noite, e agora ela chorava de medo de que "meu filho", como ela o chamava, não acordasse.

  Mas, enquanto estavam nisso, ouviram as vozes que Angelito começou a proferir, proclamando que estava muito faminto. E aqui temos a todos correndo para que a criança coma e satisfaça sua fome.

  Nota: Os frades dominicanos do Convento de Santo Domingo de Ocaña eram missionários no continente asiático e de lá, trouxeram para usos medicinais, a semente de papoula, que minha sogra, Sra. Maria, chamou de papoula real, e que produziam lindas flores brancas e quando perdiam suas pétalas, suas cabeças permaneciam nas pontas dos caules,  dentro dos quais se  continha o látex branco de onde o ópio está incluído.

 Por muitos anos, eu não sabia o que realmente eram essas plantas, mas as tive plantadas nas jardineiras das janelas do meu terraço em Zarzaquemada, Leganés, por causa das belas flores que produziam.

 

O ovo

O

Silvia C.S.P. Martinson

 
Há coisas que por incrível que pareça às vezes voltam à memória e não tens ideia do por que.
Estava conversando outro dia com um amigo escritor, que me narrava fatos de sua infância os quais me pareciam importantes e dignos de serem contados em uma estória e foi o que lhe sugeri.
E, eis que, não sei por que voltaram a mim lembranças de fatos que aconteceram quando eu era muito pequena e talvez na hora em que ocorreram deixaram em meu cérebro marcas tão profundas, que sem dar-me conta lá permaneceram adormecidas até aquele momento. Provavelmente eu teria três ou quatro anos quando aconteceu.
 
Fato este que ficou registrado nos anais da família em uma foto que, depois de tantos anos, ainda guardo.
 
Vou contá-lo, agora, conforme presenciei e vivenciei então.
 
Não sei porquê, nem como, meus pais compraram uma rifa de um ovo de chocolate que seria sorteado na Páscoa.
Pois das poucas coisas que em sorteio meus pais ganharam na vida, a não ser o que adquiriram com seu trabalho, foi este ovo de Páscoa.
 
Ele foi confeccionada à época pela grande e conhecida, em minha cidade, fábrica de doces, balas e chocolates Neugebauer, fundada por imigrantes europeus em 1891 chamados: Franz Neugebauer, Max Neugebauer e Fritz Gerhardt com o nome de Neugebauer Brothers & Gerard Company . A primeira fábrica de chocolates no Brasil.
 
Conheci essa indústria quando estudava e cursava o 2º grau na escola Cãndido José de Godói localizada no bairro então denominado de 4º Distrito.
 
A fábrica era imensa e nela trabalhavam muitíssimos empregados, inclusive vizinhos de nossa família e amigos de meu pai.
 
Lembro ainda que, por muitos anos, desses amigos recebíamos, seguidamente, balas e chocolates que eram distribuídos aos empregados por estarem um pouco avariados, o que impossibilitava sua venda no varejo.
 
Bem, voltando a história do ovo, por incrível que pareça, meus pais foram sorteados com o prêmio e o receberam em casa numa grande caixa de papelão embrulhada em papel celofane que permitia ver seu conteúdo.
 
Para nós era grande, era enorme, era bonito!
Um amigo de meu pai e seu compadre que considerávamos como tio e o chamávamos assim, tirou a foto para nós e para a posteridade, onde estamos minha irmã, o ovo e eu.
 
Pois bem, na Páscoa, minha mãe partiu o ovo, lembro que a casca do chocolate era muito grossa e tinha que ser cortada em pequenos pedaços para que pudesse ser comida.
O ovo era totalmente recheado de bombons e balas de diversos sabores.
 
Nossos olhos de crianças arregalaram-se face a tantas guloseimas oferecidas.
 
Não lembro o quanto comi. Deve ter sido muito, porque fiquei doente e acamada, penso, por alguns dias.
 
Só lembro de que, deitada na cama, pedi a minha mãe mais chocolate ao que ela me alcançou um pedaço não muito grande e disse:
- Não tem mais chocolate! O ovo acabou! Terminou! Hoje verificando a foto concluo que não era verdade a sua afirmativa. Ela o fez para que não ficássemos doentes de tanto comer doces.
 
Entretanto, creio, minha mãe e meu pai devem ter comido por muito tempo ainda e escondidos de nós o famoso e indescritível...
Ovo de Páscoa.
 
Agora, depois de tantos anos, aquele último e inolvidável pedaço de chocolate me sabe na boca, ainda, ao gosto de ausências e de tempos que não voltam mais.

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