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A cobra que roubava leite de um bebê

A

Pedro Rivera Jaro

Traduzido para o português por Sílvia C.S.P. Martinson

Nos anos cinquenta quando eu era uma criança com poucos anos, as mamães com bebês lactantes costumavam dar-lhes de mamar em público, pois que então era considerado o mais natural.

Se, se encontravam cozendo na porta da casa junto a outras vizinhas e o bebê chorava porque tinha fome, pegavam o bebê nos braços, tiravam o peito fora de seu alojamento têxtil e punha o mamilo na boquinha para que sugasse o leite e acabasse sua fome.

Logo em seguida, dependendo de cada bebê e seu apetite podia ele saciar-se com o conteúdo de um seio ou seguia tendo fome ela guardava o seio vazio e continuava com o segundo em sua alimentação. Até que o bebê se cansasse de mamar e então a mamãe lhe limpava a boquinha e guardava a mama dentro de seu alojamento no corpinho.

Recordo que em uma ocasião estava minha querida mamãe dando de mamar a meu irmão Felix, quando eu tinha 5 anos, estava eu olhando como faziam e mamãe pegou seu mamilo entre os dedos e apertou dirigindo o jato de leite à minha cara que ficou molhada e pegajosa pelo leite projetado sobre ela. Minha mãe ria-se com força e eu também. O único que protestou foi meu irmão que havia notado como se interrompia sua comida.

É possível que a grande atração que exercem sobre mim os peitos das mulheres se encontre em meu subconsciente, que possivelmente guarda aquela recordação do seio materno, fonte natural de vida.

Porém agora queria contar-vos uma historia que nos contou a avó de meu amigo Ignacio, a ele e a mim.

Esta senhora era natural de um pequeno povoado de Toledo chamado Escalonilla e nos referiu uma historia de um menino que estavam criando em seu povoado com o leite de sua mamãe. O menino estava bonito porém nos últimos dias deixou de pegar peso e despertou o alarme a sua mãe e a sua avó.

A mamãe se sentava em um cômodo cadeirão no corredor de sua casa com o bebê nos braços dando-lhe o peito enquanto cochilava. Quando o leite se acabava em seus peitos ajudava o bebê a expulsar o ar dando-lhe umas palmadinhas nas costas e logo lhe deitava para que dormisse.

Naqueles últimos dias o menino chorava desconsoladamente depois de mamar e sua mamãe notou que não ganhava peso e comentou com sua mãe, a avó do bebê.

A avó calou quando ouviu o comentário e decidiu observar de um lugar escondido como se amamentava o bebê. O menino começou a mamar e a mamãe cochilou em seguida.

De imediato a avó observou que do olho de uma enorme fechadura que havia naquela velha porta de madeira começou a sair uma cobra bastarda que se aproximou até a boca do menino introduzindo nela a ponta de sua cola. Ao mesmo tempo que com sua boca começou a mamar na teta. Uma vez havendo terminado se retirou pelo mesmo orifício em que havia saído antes.

A avó despertou a sua filha e lhe explicou o sucedido. Esta ficou horrorizada com a explicação do que lhe estava passando.

No dia seguinte puseram um laço corrediço no olho da fechadura e quando a cobra saiu lhe capturaram e fim do problema. A levaram a grande distancia e a soltaram onde não pudesse voltar aquele corredor.

O menino voltou a recuperar seu peso e sua mamãe e sua avó sua tranquilidade e sossego.
Se a historia foi correta ou foi inventada somente para entreter-nos, a uns meninos, não tenho forma de saber, porém isso já é algo secundário. O importante é que esta história me impactou e nunca a esqueci. Por isso mesmo, agora, tenho o prazer de a dar a todos vós outros.

A pouco, alguém me contou outra historia parecida de outra serpente que mamava nos ubres de uma vaca que tinha um terneiro lactante, com tal suavidade que a vaca buscava a serpente para que lhe mamasse, até ao ponto que chegou a aborrecer a seu terneiro.

Minha pergunta é: Podia tratar-se da mesma serpente.

Pacha

P

Silvia C.S.P. Martinson

 
Meu tio, casado com a irmã de meu pai, era francês de nascimento, porém de família e formação alemã. Era muito culto e rico, às custas de sua inteligência e muito trabalho.
Viveu em muitos países antes e depois da 2ª guerra mundial. Casou com minha tia, irmã mais velha de meu pai e eram os únicos filhos de meus avós que nasceram no Brasil. Houveram outros mais velhos ainda, fruto do primeiro casamento de meu avô e que nasceram na Europa.
 
Vou dar a este tio, para que não seja identificado, um nome fictício, bem como a minha tia e seus dois filhos. Portanto, a partir de agora ele chamar-se-á Martin, sua mulher Ana e sus filhos André e Rosa.
 
Por certo que, com a personalidade forte e dominante de um professor, que também foi ademais de sua formação alemã, estes nomes certamente não lhe agradariam. Em sua casa, como na de meus avós, o idioma falado era somente o alemão. Meu pai escrevia e falava com perfeição este idioma, haja vista que estudara em um colégio tradicional onde além de uma excelente formação cultural, o idioma falado era o alemão.
 
Eu conheci esta escola em uma cidade que visitei e a mesma destinava-se a uma classe de pessoas mais abonadas.
 
Bem, prosseguindo com nossa história, tio Martin conduzia seus negócios e sua família com muita rigidez.
 
Tinham uma bela casa e muitíssimo conforto e modernidade para a época. Aos filhos não lhe faltava nada, inclusive belos e caros brinquedos.
 
A música era uma das prioridades da família, inclusive da minha. Os filhos estudaram e tocavam piano com maestria e a mãe era exímia em um instrumento que hoje quase poucas pessoas o conhecem, a cítara.
 
Bem continuando, voltemos a falar de Martin.
A ele encantava caçar e para tanto tinha em sua casa dois cachorros de raça, perdigueiros, os quais eram seus fiéis companheiros.
Um deles, de pelos brancos com pintas de cor marrom chamava-se Pacha. Era um cachorro muito bonito e dócil com as crianças pequenas, todavia, quando no campo, só obedecia cegamente a seu dono, fielmente cumpria com tudo a que aquele, em tom de mando, lhe ordenava. E assim se passava em todas as caçadas de tio Martin.
 
Porém um dia, tudo foi diferente. Vou lhes contar o que se passou.
 
Tio Martin com sua espingarda estava a caçar lebres no campo. Era um mato meio alto, cheio de arbustos a que não se permitia visualizar bem os entornos.
 
Porém com a precisão que lhe era peculiar, visualizou a lebre a correr entre os arbustos um pouco longe de onde se encontrava. Mirou a cabeça do animal e atirou com um único tiro de sua potente espingarda. O animal caiu entre as plantas. A seguir Martin ordenou a Pacha que fosse buscar a caça como estava este acostumado e treinado para fazer.
 
Pacha seguiu o rastro do bicho e quando chegou perto dele estancou e não o pegou na boca como sempre fazia para trazê-lo a seu dono.
 
Martin, espantado e ao mesmo tempo aborrecido, ordenou em voz alta que Pacha trouxesse a ele a caça. , Por fim o cachorro lhe obedeceu e lentamente voltou com a lebre entre os dentes.
 
Ao chegar perto de tio Martin caiu a seus pés com a caça e três picadas de cobras em seu focinho. A lebre ao ser morta havia caído sobre um ninho de jararacas e Pacha ao vê-las em princípio recuou, todavia, como era obediente e fiel a seu dono obedeceu a ordem de recolher o animal caçado. Pacha estava aos pés de Martin terrivelmente ferido e à morte.
 
Naquela época as cobras grassavam nos campos e era normal as pessoas serem picadas e morrerem por seus venenos.
 
Martin sempre que ia caçar levava entre seus pertences soro antiofídico o que já existia na época.
 
Tio Martin ao ver seu cachorro preferido naquele estado começou a chorar copiosamente. Amava aquele animal.
Mesmo desesperado aplicou o soro no cachorro, colocou-o em seu carro e voltou à cidade a toda velocidade que lhe permitiam as primitivas estradas de terra de então.
 
Pacha com os cuidados de um veterinário se salvou, não morreu, porém ficou cego até o fim de seus dias e quando pressentia a presença de seu dono, quando este chegava do trabalho à sua casa, o esperava deitado no portal abanando o rabo, ganindo e dos olhos cegos lhe caiam lágrimas.
 
E assim se passou até o final de seus dias.
 
Martin nunca mais foi caçar.

Confinada

C

Silvia C.S.P. Martinson

O prédio era alto, uns quinze andares. Moderna arquitetura. Amplas sacadas.
Portas-janelas que nas sacadas davam visão plena da rua.

Era azul e se confundia com o céu resplandecente que costuma acontece nestes pagos do Mediterrâneo, em Campello um “pueblo” de Alicante- Espanha.

Frente a ele há um grande parque arborizado e provido de muitos bancos para sentar e apreciar a placidez do ambiente.
Ali me sentava quase todos os dias para ler, pensar e observar.

Em uma manhã em que me encontrava sentada, depois de minha caminhada diária, em um banco frente a este prédio a vi...

De longe me pareceu mais ou menos jovem, cabelos castanhos, curtos, que reluziam ao sol.
Devia habitar o décimo ou décimo primeiro andar. Realmente não havia como calcular corretamente.

O que me chamou a atenção do lugar em que me encontrava na praça era que: ela entrava rapidamente por uma porta desaparecendo a seguir para sair por outra em poucos minutos depois. Isto sucessivamente, sem parar, por quase uma hora.

Voltei a caminhar pela praça nos dias seguintes como sempre fazia.

Aí, então, a curiosidade já me aguçava sobremaneira e passei diariamente, ao levantar os olhos, a observar a mesma cena. Meses a fio.

Queria saber quem era e o que fazia aquela mulher.

Dirigi-me ao prédio em que morava e falei com o porteiro que pouco soube me informar dizendo que não a conhecia e que esta nunca descia à rua.

A ele lhe parecia que era casada, todavia não tinha certeza.

O tempo passou e a cena se repetiu até que um dia não mais a vi.

Parecia-me de longe tão bonita.

Retornei ao prédio novamente e ao novo porteiro perguntei por ela.

Este era mais falador.

Contou-me então que a bela mulher vivia confinada em seu apartamento.
Que quando o marido saia trancava a porta e levava a chave com ele.

Era demasiadamente ciumento.

Um dia ao retornar a casa mais cedo encontrou em seu interior o antigo porteiro entabulando com a mulher amigável conversa.

Possuído pela desconfiança e pelo ciúme exacerbado puxou de um revólver que carregava consigo e aos dois, sem nada perguntar, matou.

Soube-se, segundo me narrava este último, que o antigo porteiro arrombara a porta, ao ouvir os gritos da mulher, para apagar um fogo que se instalara na cozinha e que logrou sucesso na empreitada.

Segundo alguns vizinhos ainda hoje se ouvem os passos da mulher a circular de um quarto a outro, sem parar, e que da praça quem olha para aquele apartamento a vê sempre da mesma forma, caminhando. Agora ao lado do antigo porteiro.

Os dois todos os dias, por uma hora, pela manhã, faça sol ou chuva, entram por uma porta e saem pela outra, caminhando, sempre caminhando...
Incrivel! Hoje pela manhã me pareceu vê-los.

 

O pátio da minha casa

O

Pedro Rivera Jaro

Tradução para português de Silvia Cristina Preissler
 
As pessoas de fora de Madrid pensam que esta grande cidade sempre esteve constituída por enormes arranha-céus como os que existem na bela rua Gran Vía ou do Paseo de la Castellana, mas eu lembro-me desde a minha primeira infância, nas zonas dos bairros do sul de Madrid, na minha rua, que então se chamava Barrio de San José e mais tarde mudou para Calle de San Fortunato, havia uma maioria de casas térreas, em muitas delas não se dispunha dos serviços mais básicos, como água corrente ou esgotos, e as suas ruas não tinham pavimento e, quando chovia, formavam-se enormes lamaçais e grandes poças de água, onde nós, crianças, brincávamos até ficarmos salpicados de água embarrada e, quando chegávamos a casa, as nossas mães davam-nos umas boas palmadas nas nádegas.
 
A duzentos metros da minha casa, havia campos semeados com trigo ou cevada, em cujos sulcos procurávamos ninhos de cotovias, lagartos, lagartixas e cobras. Desfrutávamos dentro da grande cidade de coisas típicas do campo, como ouvir onde os grilos cantavam e descobrir o buraco onde se refugiavam ao ouvir o som dos nossos passos quando nos aproximávamos. Colocávamos uma pequena palhinha de legumes no buraco e, quando eles entravam no seu abrigo recuando, fazíamos-lhes cócegas na parte da frente e os obrigávamos a sair, momento em que nós outros aproveitávamos para os capturar. Logo os colocávamos em pequenas gaiolas feitas de telas metálicas redes mosqueteiras e lhes atirávamos folhas de alface para que comessem e nos deliciassem com o seu canto.
 
Naquilo que foi a minha casa, há hoje dois blocos de apartamentos de quatro andares, e a rua de que vos falei que era de terra está agora asfaltada, e todos aqueles campos de trigo e cevada são hoje blocos de apartamentos com todos os serviços e comodidades que a vida moderna impõe.
 
Na parte traseira da minha casa havia garagens onde o meu pai guardava o seu caminhão, com a sua bancada de trabalho, ferramentas e demais utensílios para o seu trabalho de transportador. Noutra parte havia um galinheiro, com algumas dúzias de galinhas poedeiras, um pombal na parte superior e, do lado de fora da cerca de metal do galinheiro, tínhamos três gaiolas de coelhos.
Tudo isto estava ao meu cuidado, pois tinha entre as minhas obrigações à alimentação e a limpeza de todos estes animais.
 
Um dia os contarei muitas outras coisas sobre o decorrer de minha infância, muito feliz, mas sublinho que nós, crianças, tínhamos então muitas obrigações para ajudar nas atividades familiares, ademais de estudar.
 
Na parte do meu pátio que dava para a janela da cozinha e à qual se acedia através da porta do corredor central da casa, havia uma enorme amoreira que o meu avô Pedro tinha plantado e que produzia amoras brancas muito doces, à volta de cujo tronco grosso havia sido posta uma grande mesa de madeira, onde aos domingos de verão costumávamos comer os seis membros da nossa família.
 
Quando eu fazia alguma travessura de criança e irritava a minha querida mãe, ela corria atrás de mim, de chinelo na mão, eu subia em cima da mesa e, subindo pelo tronco e ramos da árvore, escapava à fúria da minha mãe.
Tínhamos também uma figueira com figos brancos pescoço de dama, deliciosos, duas videiras para fazer sombra, uma roseira com rosas vermelhas e plantas de sândalo e hortelã, em volta de todo pátio, numa orla de terra ajardinada, e nas paredes, colocados em suportes de ferro pintados de verde, pendiam vasos de gerânios, pelargônios, cravos, etc., contra o fundo branco da cal, deslumbrando o olhar, como se estivéssemos num belo pátio andaluz.
 
E todo o resto do pátio era pavimentado com cimento, que antes esteve empedrado com pedra de apiário, onde eu pequeno tropeçava e feria os joelhos demasiadas vezes.
Na década de 1950, aproximadamente em 1955, em pleno mês de julho, tivemos um dia verdadeiramente tórrido.
Então não se falava de alterações climáticas, mas os garanto que era tão quente como é agora, com a agravante de que não termos ar condicionado.
 
O nosso frigorífico era um poço de água, com cerca de 12 metros de profundidade, em cujas águas límpidas e frescas, por meio de um balde atado a uma corda, fazendo-a deslizar por meio de um gancho de ferro se baixava uma garrafa de vinho, outra de gazosa e uma terceira de água, uns tomates e um melão.
 
Tudo isto era introduzido na água do poço e, quando chegava a hora do almoço, trazíamo-lo para cima, e o conteúdo ficava bem fresco.
Esse poço tinha sido escavado pelo meu avô Pedro, muito antes de eu ter vindo a este mundo, e ele tinha-o revestido com tijolo.
 
No cimo, a borda do poço tinha cerca de um metro de altura de todo ele estava revestido de cimento e caleado. Por cima tinha um arco metálico e na metade deste tinha soldado um gancho no qual se pendurava a garrucha.
Duas dobradiças estavam presas à borda do meio-fio com parafusos grandes, que se ligavam a um alçapão de chapa metálica que se ligava à borda circular da sua borda oposta.
 
Desta forma, fechava-se a boca do poço e evitava-se qualquer acidente que pudesse acontecer a qualquer pessoa ou animal, e que pudesse cair ao fundo do poço, como aconteceu com uma perdiz vermelha, que eu mantinha solta no meu jardim, e que, assustada pelo meu irmão Javi, caiu depois de um curto voo no fundo do poço, e tivemos de a tirar com o balde, mas, como resultado dos golpes na cabeça quando caiu, ficou cega e em poucos dias morreu. Fiquei muito triste com a sua morte, porque tinha criado este animalzinho desde que era um pintainho e lhe tinha grande de carinho.
 
Ao lado da calçada do poço havia uma pia de pedra, que desaguava no esgoto, onde a minha mãe, uma vez cheia de água do poço, lavava a roupa, enquanto cantava as canções que ouvia cantar no rádio a Lola Flores, Juanita Reina, Marifé de Triana e outras celebridades da época.
 
As primeiras máquinas de lavar automáticas ainda não tinham chegado a Espanha.
Como já disse anteriormente, nessa tarde-noite o calor se fazia insuportável e o meu pai pensou que podíamos dormir no pátio, aonde à fresca das árvores a temperatura seria um pouco mais baixa.
Por isso, pôs uns tapetes no chão e, em cima deles, colocou um colchão com alguns lençóis e deitou-se nele.
Eu achei um pouco engraçado e perguntei-lhe se podia dormir com ele, e ele riu-se e disse que sim, e, eu dormi com ele.
Na metade da noite fomos acordados por uma tremenda tempestade com trovões e muita eletricidade.
De repente, começou a chover violentamente, obrigando-nos a recolher tudo e a correr para dentro de casa.
 
São coisas que acontecem na infância e que ficam profundamente gravadas na memória sem que se possa esquecê-las com o passar dos anos.
Passaram-se 69 anos e sigo recordando os gestos carinhosos de meu querido pai.

E DAÍ, AGORA SAI UM JOGUINHO?

E

Álvaro de Almeida Leão

 

Morlim, Oswaldo e Zecão diariamente se encontram para um carteado amigo no bar de seu Cardoso. Por lá ficam até as 23 horas. Como sempre acontece, Morlim é o primeiro a chegar e também o que mais vibra com as vitórias alcançadas. Seguidamente ganha. Ao perder fica fulo da vida.

Passado algum tempo, seu Cardoso recebe um telefonema:

- Alô, bar do Cardoso, às ordens.

- Oi, aqui é o Oswaldo. Quero falar com o Morlim, ele se encontra?

- Sim aguarde um momentinho. Morlim, telefone, é o Oswaldo.

- Alô, Oswaldo. Estão atrasados, já estou aqui há um tempão.

- Faleceu um amigo comum, meu e do Zecão. Estamos no velório e infelizmente hoje não podemos ir até aí para nossa diversão.

- Bah, amigo Oswaldo. Tô ralado e mal pago. Acostumado com o nosso jogo, nem sei o que fazer para passar esse resto de tempo.

- O mesmo está acontecendo aqui conosco. Estamos nos sentindo fora da casinha. Sabe como é, vício é vício, não é mesmo, Morlim?

- Claro, Oswaldo, eu que o diga. Estou sentindo comichões por todo o corpo. Já tomei um monte de cafezinhos. Enfim, fazer o quê? É da vida.

-- Era isso, Morlim. Até amanhã. Certo?

- Mais do que certo. Um abraço no  Zecão.

- Será dado.

 Morlim volta pra mesa em que se encontra, totalmente desnorteado. A falta que o estimado e amado joguinho está fazendo não tem no mapa. Daí para uma crise de nervos foi uma questão de minutos. Em dado momento, não se contém e apela para a bondade do Cardoso.

- Cardoso amigo, preciso que me faças um grande favor.

- Pois não, Morlim, se estiver no meu alcance, com muito prazer.

- Não queres jogar comigo? O movimento do bar está calminho.

- Não, obrigado, Morlim, não sou de jogo, nem conheço bem as cartas.

- Então, Cardoso, proponho: nós dois nos posicionamos aí atrás do balcão e jogamos quem consegue dar uma cuspida mais distante. Feito?

- Desculpe, mas não quero.

- Que achas, amanhã chove ou não chove? Escolhe. Ficarei com o contrário do que disseres. Combinado? Jogamos dessa feita?

- Não me leve a mal. Mas jogo é algo que não me atrai.

- Cardoso, me alcança um pedaço daquele queijo ali naquela prateleira do meio.

- Perdão, Morlim, o que há ali não é queijo, é sabão.

- É queijo.

- É sabão.

- E daí... agora sai um joguinho?

- Tudo bem. Me venceste pelo cansaço. Tá jogado.

- Joião. Beleza pura. Até que enfim. Eu digo que é queijo e tu dizes que é sabão.  Podes descer a mercadoria para vermos quem ganhou o jogo.

Cardoso vai até a prateleira em que se encontram os produtos de limpeza e traz a barra de sabão que o Morlim apontara como sendo queijo.

- Eis aí, proclama o vencedor.

Morlim, de posse de um naco do sabão, leva até a boca e, não se dando por vencido, -perder não é com ele –  diz com a maior cara de pau:

- Ganhei o jogo. Ganhei. Ganhei. É queijo com gosto de sabão.                                

...Perder não é com o Morlim. Não é mesmo!...

A morte da avò

A

Silvia C.S.P. Martinson

Ela morreu.
 
Não deixou herança significativa, todavia escreveu somente uma carta a seu único e querido neto.
 
Viveu intensamente, alegremente cada dia. Com a alegria de alguém que recebe a dádiva da vida.
 
Sofria de dores como qualquer velho que, com o passar dos anos e o desgaste natural do corpo, as tinha.
 
Teve alguns amigos que também manteve até o fim de seus dias. Aqueles que se afastaram por razões da vida o fizeram sem alarde. Alguns deixaram lembranças amargas que com bom senso ela guardou bem escondido no escaninho da memória, no lugar das coisas perdidas.
 
E assim dia a dia, semana a semana, meses e anos se passaram sem que ela se desse conta da história registrada na eternidade que paulatinamente escrevia.
 
E agora chegando ao fim deixa a seu neto, para que conheça, a versão não contada de sua longa caminhada em uma carta somente a ele endereçada que começava assim:
Querido neto.
 
Amo-te acima de tudo. Fostes e és a lembrança mais querida que carrego comigo.
 
Eis que meu fim chega. Eu o sinto.
 
Fui alegre, fui feliz.
 
Amei e fui amada.
 
E agora te conto o que se passou em minha longa estrada.
 
Eu .......
 
A mão lhe tombou, a caneta escorregou, o sorriso aos poucos apagou-se em seus lábios, os braços lhe caíram ao longo do corpo, os olhos se lhe fecharam suavemente.
 
Não terminou a carta.
Imersa em seus sonhos e lembranças adormeceu para sempre.
 

O mesmo

O

Silvia C.S.P. Martinson

Mais um verão, todos diriam.
 
Assim começa a nossa história.
 
Todavia ela se passa a quase 50 anos atrás.
 
Sim era verão. Um verão como todos os outros.
Diferente então eram os caminhos e as situações que conduziam ao merecido descanso de um ano de trabalho árduo.
 
Meus pais trabalhavam muito para manter a casa que compraram com sacrifício e muita economia. Bem como, para proporcionar conforto e uma educação mais esmerada à suas duas filhas. Ou seja, minha irmã e eu.
Tínhamos uma vida modesta, porém cercadas de muita cultura.
 
A música clássica permeava nossos dias, enchendo a casa de sonoridade e beleza.
A leitura de bons livros e autores era uma constante em minha casa. Minha mãe era uma leitora insaciável.
 
Isso quando criança nos parecia um tanto aborrecido, porém com o passar dos anos vimos a entender o quanto nos ajudou, tanto em nossa vida profissional, quanto em nossas relações pessoais e interpessoais, ou seja, no convívio social.
 
E assim s passavam os dias e nós crianças fomos crescendo, aprendendo e também sendo corrigidas, às vezes severamente, quando necessário.
 
Os invernos em minha cidade, aquela época, eram rigorosos. Nos assolava o frio com fortes geadas, muita chuva e humidade.
 
Minha mãe tinha um fogão a lenha que mantinha aceso dia e noite e que nos proporcionava, feitos por ela, deliciosas comidas e calor verdadeiramente acolhedor a toda a casa.
 
Enfim, assim se passavam os dias invernais sempre na expectativa da chegada da primavera, que por consequência era o prenuncio de sempre um verão alegre e muito quente. E essa expectativa se renovava a cada ano.
 
Era a época que aguardávamos com ansiedade, isto porque, todos os anos meus pais costumavam alugar uma casa diferente sempre, na praia, em qualquer balneário onde encontrassem uma, dentro de suas possibilidades financeiras.
 
Recordo que num desses anos eles alugaram, segundo um anúncio feito no jornal domingueiro, uma casa no balneário de Cidreira no Rio Grande do Sul- Brasil.
 
Quando ali chegamos, meus pais tiveram uma enorme surpresa. A casa se localizava ao fundo de um terreno um pouco distante do mar e para maior insatisfação tratava-se de um quase galpão, ou seja, uma peça grande onde estavam todos os móveis de uma casa ali alinhados.
 
Sala, quartos e cozinha tinham uma sequência normal. O banheiro se localizava no quintal era primitivo e somente melhorou de aparência pelos trabalhos de higienização efetuados por minha mãe e meu pai. Ambos extremamente caprichosos.
 
A casa era alta do chão. Havia um enorme espaço entre o piso dela, que diga-se de passajem, era de madeira e o chão de areia do quintal.
 
Depois do almoço íamos fazer a sesta debaixo da casa. Ali meu pai colocara umas tábuas sobre as quais nos deitávamos à dormir.
 
Eu costumava ficar mirando o céu para ver nas nuvens figuras que, na minha imaginação, eu criava tais como: bichos, monstros, fadas, duendes e montanhas que faziam parte deste mundo. E com isso ao poucos adormecia devagarinho.
 
Para nós crianças foi, naquele verão, uma experiência inesquecível.
 
Até hoje recordo de tudo como se eu estivesse ali, agora, neste exato momento.

Urgente, urgente o plano CP SN

U

 Álvaro de Almeida Leão

Decisão do torneio amador de futebol de campo entre bairros de Porto Alegre. Evento oficial do calendário esportivo da cidade. A equipe do Menino Deus está tentando o tricampeonato e a do Caminho do Meio fazendo pela primeira vez a final. Juízes e bandeirinhas credenciados pela Federação Citadina de Futebol. Bom público entusiasmado e participativo.

O Menino Deus joga pelo empate, ao Caminho do Meio, só a vitória interessa. O Menino Deus é o time mais credenciado do torneio, conta com o artilheiro do campeonato, a melhor defesa e o goleiro menos vazado. É treinado pelo professor Aldo Leão e seu fiel escudeiro, o auxiliar técnico Rafael. O Caminho do Meio classificou-se na sua chave, por ser o time menos ruim. Seus únicos destaques são o goleiro Carlos Augusto, e o Richard, volante de bom drible.

Richard é o capitão do Caminho do Meio e seu líder, pouco finaliza mas, quando o consegue, quase sempre marca. No jogo anterior, foi decisiva sua atuação, marcou o gol da classificação. Quanto aos atletas do Menino Deus, são tão iguais no trato com a bola que não há uns melhores que outros. É um time coeso e solidário

Mas, jogo de futebol é jogo de futebol, nem sempre o melhor ganha.

Precavido, o professor Aldo arquitetou três planos: o A; o B e o CP, SN, este se estritamente imprescindível. Como no caso de vida ou morte. O plano CP, SN apenas o professor Aldo, os dois zagueiros e o goleiro do Menino Deus sabem de que se trata. Após cada coletivo, esses quatro permanecem em campo para treinamentos específicos do plano CP, SN..

Na preleção inicial do professor Aldo, o plano A: jogar sério, respeitar o adversário. Até agora, não ganhamos nada. E é tudo conosco. Rumo ao título.

Findo o primeiro tempo, zero a zero, creditado à excepcional atuação do goleiro do Caminho do Meio, o Carlos Augusto, que pegou todas. Ao Menino Deus, faltou competência. Inconcebível, inconcebível mesmo, tantos chutes a gol sem converter.

No intervalo para o segundo tempo, no vestiário do Menino Deus, o plano B: jogar com mais dedicação ainda. Melhorar e muito a pontaria das finalizações. Defesa com atenção redobrada. E, se nada disso der certo, jogar pelo regulamento.

Reiniciada a partida, o Menino Deus está com cuidado mais do que o desejado. O time atua mais se defendendo. Com isso, o Caminho do Meio está crescendo no jogo ao natural.
As palavras proferidas pelo professor Aldo: jogar pelo regulamento, resultaram o entendimento de mais ou menos, jogar pelo empate, ou seja, na retranca.

Trinta minutos do segundo tempo e ainda o zero a zero. A essa altura, um gol do Caminho do Meio seria um desastre. Sinal vermelho. O perigo ronda o Menino Deus. Então o professor Aldo decide substituir um atacante por um jogador de meio de campo e pede que este avise aos seus dois zagueiros e ao goleiro que coloquem urgente, urgente o plano CP, SN.

Cientes do recado, os zagueiros postam-se um em cada lado do canto da pequena área, enquanto o goleiro um pouco atrás, atento e ligado, torcendo para que o jogo logo termine como está, pois o empate o favorece.

E o Richard? Ah! O Richard está bem na partida. Faltando apenas cinco minutos para o término do jogo, ele, ao passar por todo o meio do campo adversário, dribla um dos zagueiros e em seguida o goleiro e quando, então, ia chutar a gol, o outro zagueiro do Menino Deus, na sobra, sentindo o pior, dá um chutão nas pernas do Richard que o levanta com bola e tudo, fazendo com que ele não conclua a jogada, que, certamente, resultaria em gol. O zagueiro leva a pior, tropeça e cai, com seu tórax sobre a bola. Proteção de pescoço e demais cuidados até que possa ser retirado dali.

Resoluto, o juiz marca o pênalti e aguarda que o zagueiro se recupere para expulsá-lo do jogo.
Enquanto isso, Richard não se escala para bater o pênalti, por ser um traumatizado em relação a cobranças de pênaltis. De uma feita, num outro time, desperdiçou três pênaltis em duas partidas seguidas. Na última, assim como agora, era fazer o gol e se candidatar a ganhar o campeonato.

Os times do Caminho do Meio e do Menino Deus amarelam, por motivos distintos: Menino Deus com medo de perder o campeonato e o Caminho do Meio. de ganhar. Como assim? Justificam-se, por serem times amadores.

O Richard, chateado, comprova que seus jogadores se afastam cada vez mais uns dos outros. Pensa ser pelo fato de que, se ficassem próximos, tratariam do assunto pênalti. E é tudo o que eles, possivelmente, não querem.
Uma coincidência que ninguém engoliu: os dois jogadores do Caminho do Meio que sempre são os batedores de pênaltis desmoronam no gramado. Um voltando a sentir antiga contusão na coxa e o outro, o joelho incomodando. Atitudes logo entendidas pelo Róger, técnico do Caminho do Meio, e pelo capitão Richard. Então restou solicitar um voluntário para a cobrança do pênalti.

O lateral esquerdo do Caminho do Meio, conhecido por Trapalhão, nem precisa dizer a razão do apelido – é o seu pior jogador, disparado. Joga por não existir outro na posição. Rapidamente raciocina: ao se candidatar a bater o pênalti e o converter, será considerado um herói. Todo o seu passado de perna-de-pau será esquecido. Assim convencido se escala para cobrar o pênalti
Não, não, qualquer um menos ele. Fazer o quê? Só resta rezar e rezar.

Trapalhão estava se dirigindo para a marca da cal, quando torcedores do Caminho do Meio, no alambrado, se alternam nas manifestações de suas insatisfações ante a desastrada atitude do Trapalhão em se oferecer para bater o pênalti:

-Pô, Trapalhão, te enxerga. Pede para atender ao telefone e te manda daí.
-Quem avisa amigo é: caso percas o pênalti, te capo e faço a festa dos cachorros.
-Que tu eras trapalhão eu sabia, agora louco varrido, pra mim, é novidade.
-Trapalhão, Trapalhão, olha aqui: estou no regime semiaberto, para eu apagar mais um ou menos um tanto faz. Perde o pênalti e verás o que irá te acontecer.
-Oh, seu Trapalhão, filho de uma mãe, sairás daqui hoje pelos braços da galera, de um jeito ou do outro. Se fizer o gol, consagrado.
-Se errar, de pés juntos e num envelope de madeira.

Diante de tantas amabilidades, Trapalhão foi acometido por uma forte vontade de urinar. Só deu tempo de se abaixar, fazendo de conta que irá amarrar os cadarços das chuteiras, e a todo custo se conter para deixar fluir a urina, e só a urina, nada além da urina. Não foi fácil, apenas urinar, mas enfim conseguiu. Ao voltar a caminhar, sacudiu as pernas, uma de cada vez, para que o resto da urina se esvaísse. As chuteiras ensopadas fazem com que seus pés encharcados como que se movimentem dentro delas, produzindo os conhecidos sons: ploft...ploft...ploft.

Envergonhado e humilhado sob todos os aspectos, Trapalhão dialoga com Richard.

-Capitão, eu desisto de bater o pênalti. Arruma outro. Estou sem condições morais e psicológicas. Por favor, me poupe de mais vexames.

-Tiveste coragem pra te oferecer pra bater. Agora vais bater, por bem ou por mal.

-Então eu vou bater com o pé que não é o bom, o direito, tentando enganar o goleiro.

-Faz como achares melhor. Desde que convertas o pênalti, tudo bem.

Esses diálogos, embora em vozes baixas, foram sempre captados por jogadores do Menino Deus que se encontravam por perto.
Então, um deles disse para o goleiro do Menino Deus que o Trapalhão iria bater o pênalti com pé direito.
Enfim, o juiz autorizou a cobrança.

Trapalhão, que nunca bateu pênalti na sua vida, bastante nervoso e ainda mais angustiado pelo incômodo da vontade de urinar que voltou mais forte ainda, não calculou corretamente em que distância se posicionaria e, ao correr para bater o pênalti, a sua última passada foi insuficiente para chegar junto a bola, em condição ideal para a cobrança, então, desequilibrado, só deu para tocar de leve a bola e de bico mesmo, sem força alguma, ao invés de chute forte e com o peito de pé, o que daria direção ao trajeto da bola. Resultado, a bola passa bem devagar, a mais ou menos meio metro, do lado da goleira. O goleiro vai a passo visando o canto certo e só acompanha a bola ir para fora. Se em direção ao gol, defenderia tranquilamente.

Trapalhão olha para os seus pretensos algozes e os vê costeando o alambrado para em seguida entrarem no gramado. À frente, o apenado, já exibindo o revólver engatilhado e o torcedor que afirmou que iria capá-lo, brandindo no ar uma afiada faca, seguido dos demais. Cada um mais brabo do que o outro.

Trapalhão, sentindo-se prestes a sofrer uma mutilação e, logo após, sua iminente morte, corre em direção aos policiais fardados que se encontram à beira do campo e pede socorro:
- Senhores ilustres e dignos militares, sou o assassino de dois crimes ainda não desvendados pela polícia civil, estou me entregando, me prendam, me levem para uma delegacia. Aquelas pessoas que estão vindo ali querem me matar, sem que eu saiba o porquê. Salvem minha vida, salvem minha vida, imploro, pelo amor de Deus.

A Polícia Militar conteve os agressores, serenou os ânimos e resolveu o problema. Atendendo ao pedido do Trapalhão, levaram-no, em segurança, para uma delegacia.
Nova saída para os cinco minutos finais mais seis minutos de acréscimo. O Menino Deus, reencontrando seu verdadeiro futebol, cresceu na partida e ainda conseguiu fazer dois belos gols. O tri estava mais que garantido.

Na volta olímpica, o auxiliar técnico Rafael, alegando sua condição de compadre do Aldo, não se contém e pergunta o que vem a ser o CP, SN.
O Aldo responde com uma pergunta:

-O que fez o nosso zagueiro?
-Cometeu pênalti.
-Então temos o CP. E qual é a única condição aceitável de se cometer pênalti?
-Se necessário.
-E agora o SN.
-Cometer Pênalti, Se Necessário. C P, S N. Bem bolado. Inusitado. É isso aí.
-Satisfeito? Somos tri. Somos tri, ninguém nos segura. Viva o Menino Deus. Viva nossa equipe. Viva nossa diretoria, rumo ao tetra. Vida longa pra todos nós. Mais do que merecemos. Viva, viva, mil vezes viva.

Bairro

B

Silvia C.S.P. Martinson

 
Vivia, quando criança, em um bairro afastado do centro da cidade que era a capital do estado. Na verdade era a última rua habitada daquele bairro que se chamava Passo da Areia.
Levava este nome porque um pouco mais distante, em tempos muito antigos, ali passara um riacho de águas límpidas margeado por areias muito brancas, assim me contaram.
 
Sobre este riacho pairava uma lenda muito bonita que contava a história de uma índia que em disputa com outra havia perdido o amor de sua vida e por tanto chorar de tristeza, de suas lágrimas, resultou o riacho que ali existe até hoje. Porém por ser tão forte a correnteza e a cidade ter crescido tanto foi o mesmo encanado a fim de unir os bairros que se expandiram.
 
Resta desta lenda a escultura que mostra Ubirici, a índia, a chorar.
 
Diante da estátua se localizava um centro de saúde que atendia às necessidades daquela região e ao qual muitas vezes fui levada por meus pais. O bonde então aquela época tinha ali seu fim de linha.
 
A nós crianças era um prazer seguir até ali para então voltar à casa atravessando um parque arborizado que se encontrava em meio a um condomínio, se assim podemos denominá-lo, chamado de IAPI. Ali foram feitos vários edifícios para habitação e destinados aos assegurados Inativos Aposentados do Instituto de Previdência. Daí o seu nome IAPI.
 
Esta praça que é dedicada ao lazer e para a prática de esportes chama-se Alim Pedro, pelo que me recordo. É bonita, nela há um declive muito arborizado que permitia uma sombra agradável aqueles que queriam ali desfrutar de momentos de paz e tranquilidade e também uma boa visão do campo de futebol que se localizava mais abaixo e onde aos fins de semana sempre havia um campeonato ao qual os aficionados também compareciam para apreciar e torcer.
 
Em um edifício deste grande complexo nasceu Elis Regina, cantora desde criança que se apresentava nas matines aos domingos e que ficou famosa por sua voz e estilo inolvidáveis, em todo país e até no exterior.
 
Lindas músicas gravou e nos deixou até sua morte, infelizmente prematura, restando-nos uma saudade eterna de ouvi-la.
 
Na última rua da cidade de Porto Alegre – Rio Grande do Sul – Brasil eu nasci e me criei. Chamava-se Dr. Eduardo Chartier em homenagem a um grande médico de antanho.
Ali me eduquei junto a minha família a quem a música e o teatro e a educação eram cultivados com amor e respeito
 
Ali cresci tendo por hábito sonhar de olhos abertos - em uma casa com amplo pátio, muitas árvores de frutas diversas e flores abundantes cultivadas por minha mãe - pelo que muitas vezes fui chamada a atenção por ela que dizia:
- Silvia para de sonhar e estuda!
 
Tinha então razão, naquela época, por certo.
Estudei como queriam me tornei advogada, às minhas expensas trabalhando. Formei-me com distinção e exerci minha profissão com denodo e muito trabalho.
 
Todavia, continuo a sonhar, a imaginar e em mil ilusões a criar meus contos, poesias e personagens.
 
É por isto que admiro a Natureza, os homens em sua complexidade, a vida em sua total beleza.
Motivo pelo qual sempre escrevo com muita paixão. Talvez o faça até o fim, quem sabe...

O velho intolerante

O

Silvia C.S.P. Martinson

Ele foi jovem como qualquer jovem.
 
Brincou, riu, cantou, se apaixonou, desiludiu-se e voltou a apaixonar-se muitas vezes.
Foi chamado a atenção por seus pais e superiores muitas vezes. Algumas com razão, outras não.
 
Foi trabalhar muito cedo, havia necessidade. Seus pais não eram ricos. Tinha que tratar de sua subsistência e de sua família. Eram muitos irmãos.
 
Estudou, formou-se.
 
Fez um concurso público e foi trabalhar na Telefônica, galgou por competência, rigidez e esforço cargos relativamente importantes.
Por fim enamorou-se de uma colega, que lhe pareceu bonita o suficiente e com ela veio a casar-se.
 
Tiveram filhos.
 
Educou-os a sua maneira.
 
Proporcionou-lhes a escolaridade necessária a que pudessem trabalhar e progredir com menos dificuldade que ele.
 
A mulher acompanhou-o em sua caminhada, sendo-lhe companheira e ajudando-o nas lides domésticas quanto na educação dos filhos, como sói acontecer com algumas mulheres de sua terra.
 
Ao todas, porque há seu tempo às mulheres não se educavam e também não demonstravam muito ânimo de fazê-lo. Não consideravam que educação e trabalho fora de casa fossem importantes.
 
Conformavam-se em casar e exercer a função de mães, esposas, as vezes amantes e empregadas domésticas , submissas à vontade do marido, aos seus apetites e caprichos.
Deve-se isto a sua total dependência financeira.
 
Consequentemente lhes apavorava e até hoje à algumas, sair às ruas para trabalhar e serem independentes. Muitas vezes sofrendo humilhações, maus tratos e desprezo por parte dos maridos.
 
E assim a vida deste homem transcorreu com altos e baixos.
 
Envelheceu.
 
A mulher outrora bonita tornou-se gorda e desinteressante a seus olhos.
Ele por sua vez, ficou cada vez mais implicante e aborrecido.
 
Todos lhe pareciam errados, os jovens de agora os tinha como mal educados, a todos criticava, olhando somente, segundo seus conceitos, o lado negativo das pessoas.
 
Não lhe vinham à boca elogios ou palavras amáveis às outras pessoas. E se o fazia era somente com o intuito de arrebanhar adeptos para não se sentir tão isolado e só no mundo.
 
A solidão o aterrorizava.
 
Um dia um trio de jovens franceses estava na praia muito cedo. Provavelmente não haviam dormido e vieram encerrar a noitada naquele lugar aprazível.
 
Estes meninos não faziam mal a ninguém, cantavam e expandiam a sua juventude, felizes e indiferentes a quem passava.
 
Por uma mulher que lhes ouvia encantada foram solicitados a cantar o hino de sua terra.
Contentes acederam ao pedido e cantaram com respeito e dignidade, as mãos no peito, a Marselhesa.
 
Ela recordada de sua juventude na escola os acompanhou até o fim.
 
O homem aborrecido com o que via e ouvia tentou lhes criticar.
 
A mulher contestou ao implicante lhe dizendo:
- A nós os velhos, nos causam estes jovens muita inveja, porque são belos, têm saúde, vitalidade e acima de tudo lhes resta ainda o senso de liberdade que somente a inocência da juventude lhes impregna e permite.
 
Quanta inveja a nós decrépitas criaturas eles nos causam!
 
O homem calou-se e não voltou a falar.
 

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