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Espanha en chamas

E

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

    É agora o mês de dezembro de 2022. Está chovendo profusamente por toda a Espanha e não ouvimos absolutamente nada na televisão, rádio e imprensa escrita sobre os terríveis incêndios que estão devorando nossas montanhas. É hora de fazer alguns comentários sobre esta questão.
Na Galícia, na província de Lugo, Folgoso do Courel e Pobra do Brollón. Na província de Orense, Carballada de Valdeorras e O Barco de Valdeorras, Candeda, Riodolas. 30.000 hectares de floresta destruídos.

Em Castilla León, provincia de Zamora, Losacio, San Martín de Tábara, Sierra de la Culebra. 52.000 hectares destruídos, e a morte de um brigadista de 62 anos. Província de Salamanca, Candelario, Las Batuecas, Monsagro, Peña de Francia. 9.000 hectares destruídos. Em Segóvia, Navafria. Em Ávila, Cebreros, Herradon de Pinares e Navalperal de Pinares, 4.000 hectares e 2.100 habitantes expulsos. Província de León, Luyego, Teleno. Província de Valladolid, Província de Burgos. Na Extremadura, Monfragüe, 6.000 hectares, Valle del Jerte e Las Hurdes, na província de Cáceres, na Catalunha, província de Barcelona, Pont de Vilomara-Bages, no Parque Natural de Sant LLorenc del Munt i l'Obac. Em Aragão, província de Zaragoza, Ateca, 14.000 hectares.

Em Madri, Guadarrama. Em Castilla La Mancha, provincia de Guadalajara, Valdepeñas de la Sierra. Na província de Albacete, Riopar. Finalmente, na Andaluzia, Serra de Mijas, em Málaga.

O número total de hectares de florestas queimadas neste verão ultrapassa 200.000. Sem contar a morte de várias pessoas, casas queimadas, estábulos, gado, animais selvagens, como linces, lobos, ninhos de águias, vinhedos, olivais, etc.

Culpar a mudança climática é muito fácil, senhores. Os Bombeiros do Ministério de Transição Ecológica, Associações de Bombeiros Florestais, Aviões, Helicópteros, Caminhões Tanque-Bomba e centenas de heróis anônimos que arriscam suas vidas para tentar apagar incêndios o mais rápido possível, não são suficientes, quando na floresta seca há combustível suficiente para queimar como árvores, arbustos silvestres, etc.

Os Engenheiros Florestais só procuram regular a atividade, para justificar seu trabalho, a partir de seus confortáveis escritórios oficiais, ignorando os habitantes das áreas rurais, que por gerações cuidaram e mantiveram os campos limpos, para seu sustento e onde criavam seu gado que comia grama e arbustos e plantavam ali seus pomares, olivais, vinhedos, etc. Eles realizavam a poda correspondente e os restos desta poda eram utilizados como combustível em suas casas, em suas cozinhas, em suas panelas de aquecimento, que eles acendiam com pinhas, vassouras e galhos. Outra parte era usada para fazer carvões de azinheira e de cisco. E o resto era queimado durante a estação chuvosa, em lugares onde não podiam iniciar incêndios. Eles limpavam os acessos e vielas de selvas e mato, e as montanhas se mantinham limpas deste combustível, que agora é proibido de ser removido a menos que um inspetor esteja presente, a pedido dos moradores locais. Imaginem pastores de ovelhas, cabras ou vacas, que conhecem o campo como ninguém, que, todavia acham as questões burocráticas um grande esforço, considerando que muitos deles não tiveram a oportunidade de passar tempo suficiente na escola. Tudo isso foi parte de um modo de vida que foi gradualmente abandonado à medida que o homem do campo se tornou um citadino, e a cada dia restam menos e menos habitantes nas áreas rurais.

Cavalheiros que se dizem ecologistas ensinam àqueles que cresceram na terra, cuidando dela e vivendo dela. Ecologistas dos vasos do terraço da mãe, que não permitem a exploração da floresta, que existe há centenas de anos.

Sob o pretexto de cuidar da vida selvagem, lobos e javalis estão tomando conta das montanhas, destruindo o sustento de nossos ancestrais e transformando a floresta em uma selva impenetrável, onde desde que um raio a atinja, um fósforo, um cigarro aceso, produzirá um desastre de proporções inimagináveis. A realidade é que existe abandono rural, o manejo florestal é praticamente inexistente, os corta-fogos estão em estado de semidestruição, cheios de matos que permitem o caminho do fogo de um lado ao outro.

Minha humilde opinião é que os incêndios se extinguem no inverno, através do trabalho preventivo de limpeza de matos e arbustos, o que significa que quando chega o verão, se um raio atingir e causar um incêndio, ele nunca poderá adquirir as dimensões que está adquirindo agora com as montanhas cheias de matos, combustíveis que impossibilitam a passagem dos bombeiros.

Como é possível que tenhamos milhões de desempregados na Espanha e que não sejam contratados trabalhadores diaristas desempregados para limpar as florestas, limpar os corta fogos e construir novos?

Lembro-me de ser um menino de 11 anos, em 1961, talvez 1962, no belo vilarejo de Las Rozas del Puerto Real, na província de Madri, no sopé da Serra de Gredos, de onde vinha a família de minha mãe (meus avós Pedro e Saturnina), e onde eu e meus irmãos passávamos o verão, aos cuidados de minha querida mãe, costumávamos passar o verão, estávamos um sábado à noite em Verbena de Alberto, assistindo ao cinema, projetado por um homem itinerante sobre um lençol branco em uma parede reta, quando a Guarda Civil apareceu e deu o alarme de incêndio nas proximidades do vilarejo. Todos os homens que estavam lá, com mais de 16 anos de idade, entraram no trailer do trator do filho de tia Fernanda, Pepe, e foram para onde o fogo estava queimando no mato, e com vassouras verdes, machados, vassouras, enxadas e baldes de água, todos eles trabalharam juntos até que o fogo fosse extinto.

Não havia unidades de combate a incêndios, helicópteros, aviões ou caminhões pipa, mas o que havia era uma vontade firme de conservar a floresta e seu bosque.

Alguns anos depois pude observar também durante um inverno, na mesma aldeia de Las Rozas del Puerto Real, que vários grupos de trabalhadores diurnos da aldeia, contratados pelo ICONA, o Instituto para a Conservação da Natureza, que é equivalente ao que hoje é chamado de Meio Ambiente, limparam as encostas, caminhos, as ladeiras das estradas, etc., e lembro que durante os anos em que este trabalho foi feito, não houve um único incêndio na aldeia.

Depois de tudo isso, eles deixaram de contratar equipes e o matagal começou a tomar conta de toda a floresta. Perguntei a um grande amigo meu, um pequeno criador de gado, por que ele não limpou e queimou os arbustos, e ele respondeu que o Meio Ambiente havia proibido isso. Eles não podiam cortar arbustos a menos que tivessem solicitado previamente uma licença e, uma vez concedida, tinham que organizar um dia e uma hora para que um Agente Ambiental estivesse presente, para evitar supostos abusos quando se tratasse de queimar arbustos.

Parece que este agente conhecia a terra do meu amigo melhor do que ele, que tinha crescido e se preocupado com ela a vida toda.

Eles aborrecem as pessoas que vivem por e para a floresta com regras, que fazem pouco sentido. Os que sabem são os ecologistas de vasos no terraço, que transmitem seus falsos conhecimentos à pessoas que nasceram ali e aprenderam o respeito pela flora e fauna de seus pais e avós.rbustos, que permitem a passagem do fogo de um incêndio para o outro.

Ainda ontem eu estava ouvindo dois modestos agricultores e criadores de gado da Extremadura em uma sala de bate-papo, explicando o que está acontecendo com eles.

Um deles estava mostrando, enquanto pastava suas cabras e vacas, os restos de uma poda de oliveira, empilhados em um prado verde, depois que suas cabras tinham comido todas as folhas e partes tenras. De acordo com uma lei criada e publicada por aqueles que ele desdenhosamente chamou de "corbatines", ele assinalava a Guarda Civil e Florestal, a obrigação de denunciar e multar aqueles que queimaram tais restos, como tem sido feito por centenas de anos.

Ele recomendou que os agentes florestais olhassem para o outro lado e deixassem de lado os pequenos agricultores que continuam a resistir no campo, com seus animais e suas pequenas colheitas, porque se não, chegará o dia em que desistirão de produzir batatas, frutas, azeitonas, cabras, bezerros, etc., e então nas cidades comeremos cascalho.

Enquanto isso outro criador e agricultor, mostrou um olival que tinha mantido limpo e cultivado, entre outros olivais já abandonados e superprotegidos com ervas daninhas que neste verão tinham queimado completamente e só restaram os troncos nus. Este último não estava mais disposto a continuar lutando e falou em fazer lenha dos troncos para a fogueira em sua casa.

Sem destacar nenhum partido político, aqueles que governam de seus luxuosos escritórios deveriam aprender a falar com o povo, pois são os membros do povo que conhecem seu modo de vida, com a sabedoria transmitida de geração em geração e, finalmente, com suas contribuições, taxas e impostos, contribuem em grande parte para o pagamento de seus salários como funcionários públicos.

A velha faca

A

Silvia C.S.P. Martinson

Era uma vila pequena encravada nas montanhas da Espanha. Chamavam-na Pueblo.
 
Suficientemente grande para seus moradores que se contavam por mais ou menos 650. Pequena para ser considerada como uma cidade, todavia mantinha seu espírito de isolamento e privacidade tão apreciado por seus habitantes.
 
No entanto, tinha lá os seus encantos e conforto e os habitantes consideravam-se felizes por morar ali.
 
Raramente vinha algum “forasteiro” que é como eles chamavam os visitantes que porventura viessem para conhecer a vila.
 
Havia nela um castelo muito antigo feito ainda sob a dominação árabe. E este é que fazia com que, apesar de estar em ruínas, atraísse a atenção de algum visitante.
 
Este povoado tinha lá suas comodidades tais como: padaria, mercearia, açougue e até um pequeno mercadinho que abastecia a população local.
 
Sem contar ainda que possuía uma igreja medieval aonde o cura vinha de fora a rezar a missa todos os domingos. A igreja era bem conservada. Consequentemente tinha também um cemitério para enterrar os que morressem ali, pois que trasladar o corpo para outras cidades, além de caro o acesso por estradas de terra tornava a empreitada mais difícil.
 
O hotel então existente era pequeno mas aprazível para receber os visitantes, a comida era boa e os quartos bem arejados e limpos.
 
Os moradores todos se conheciam, desde o dono do mercadinho até o açougueiro, este último proveniente de uma família tradicional no ramo de cortar de fornecer carne àquele povo.
 
A população local estava ficando cada vez mais velha e exígua. Os jovens não queriam mais viver ali e buscavam as grandes metrópoles para estudar, trabalhar e algumas vezes constituir família.
 
Os que ali permaneceram se condicionaram a casar com as poucas raparigas locais quando não o faziam dentro da própria família, casando primos com primos, sobrinhas com tios, etc.
 
Rafael de quem vamos tratar e que na intimidade da vila onde nasceu e se criou era por todos chamado de Rafa.
 
Descendia de uma família conhecida por seu ofício, o que sói acontecer muito na Europa. Eles eram por profissão e herança açougueiros.
 
Tinham no centro da vila um prédio que transformaram em açougue desde os tempos de seus bisavós.
 
Neste açougue eram expostos e também conservados os mais diversos tipos de carnes como: cordeiros e cabritos, que criados eram criados em larga escala nesta localidade, haja vista que a formação de pastos e a serra apropriava-se a tal criação. Havia também em menor escala a criação de galinhas poedeiras e para abate, bem como, gado leiteiro com que se abastecia de leite e carne a população.
 
Assim que Rafael se criou vendo e aprendendo a arte de cortar, desossar, separar as partes nobres das mais inferiores a fim de que, conforme o poder aquisitivo de cada um, tudo fosse vendido e consumido pela população.
 
Outra coisa que aprendeu foi manter o seu ambiente de trabalho impecavelmente limpo visando a não contaminação das carnes.
Igualmente, a arte de amolar facas também lhe foi transmitida, fazendo com que, bem afiadas, elas facilitassem seu trabalho.
 
Quando morreu seu pai entre os bens que recebeu como herança, por ser o primogênito da família, lhe foi passada a melhor e mais antiga faca do açougue.
 
Esta faca era tratada com carinho e respeito desde os seus ancestrais. Era considerada uma preciosidade dada a qualidade de seu aço, forjado na Alemanha, que apesar de ser afiada constantemente nunca perdeu sua forma original, tampouco sua capacidade de corte.
 
Esta faca passou de geração em geração sendo utilizada. Rafael pretendia passá-la a seu filho mais velho quando se aposentasse.
 
No entanto, o rapaz não quis seguir com a profissão do pai, preferindo ir à metrópole estudar e se tornar engenheiro.
 
Estando então Rafael já velho e cansado resolveu vender o açougue, mas não a faca.
Quando seu filho voltou para casa Rafael tentou lhe dar a faca ao que ele se recusou a recebê-la, dizendo que em sua profissão ela era absolutamente desnecessária.
 
Neste momento algo estranho aconteceu, o aço da faca brilhou intensamente, ouviu-se então um estalido e ela simplesmente partiu-se ao meio.
 
Rafael quedou-se profundamente perturbado, uma lágrima lhe rolou pelo rosto e com as duas metades na mão pediu que o dia em que morresse fosse com ele enterrada, em seu caixão, a faca.
 
E, alguns anos mais tarde, assim foi feito.
 

Aquelas semanas santas

A

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

  Hoje é domingo de Páscoa Florida, ou como também costumamos dizer Domingo da Ressureição.

Hoje os costumes para a maioria dos cidadãos espanhóis são muito diferentes ao que conhecíamos durante os anos de minha infância e de minha adolescência.
Naqueles anos de minhas recordações infantis, finais de cinquenta e princípio dos sessenta, começamos pela Quarta-feira de Cinzas, dia em que nos levavam ao colégio da Igreja Paroquial de San Fermin, a todos bem arrumados, por recomendação de nosso professor.

Na igreja o cura pároco Don Antonio nos dava um sermão sobre o significado desse dia em recordação ao final do período de Jesus Cristo no deserto, e a cinza que simboliza a morte e a pequenez do ser humano ante a grandeza do Criador e nos recordava da vaidade das coisas. Vinha a recordar-nos, igualmente, que somos pó e cinza, unicamente.

Mais tarde chegava o Domingo de Ramos. Era um dia festivo para nós outros os meninos, porque íamos com as palmas as procissões e também estreava-mos algo novo, porque segundo rezava um dito popular: “Hoje que é Domingo de Ramos a quem não estreie algo novo, as mãos se lhe cairão.” Simbolizava a entrada de Jesus em Jerusalém montado ao lombo de uma burrinha, quando os habitantes daquela cidade lhe aplaudiam arrojando a seu passo ramos de oliveira e prostrando-se ao seu passo.

Nos dias seguintes se sucediam: a Última Janta, a Oração na Horta das Oliveiras, o de Getsemani e a prisão de Jesus. Posteriormente era julgado pelos sacerdotes do templo e condenado a ser açoitado e executado. Logo foi levado perante Pilatos que, depois de lavar as mãos o deu à escolha do povo e este escolheu que libertasse Barrabás, o ladrão, e crucificasse a Jesus. Na Quinta-feira Santa foi crucificado.

Tudo isso se representa dentro das igrejas com as imagens de Santos e Virgens cobertos com panos de cor roxa, figurando o luto pela morte de Jesus Cristo.

Naqueles dias não se podia pôr música, a rádio punha música clássica, na televisão somente víamos filmes de temas sagrados como: Quo Vadis, A Túnica Sagrada, Os Dez Mandamentos, Ben Hur, Rei dos Reis, Barrabás, etc.

Até que chegássemos ao Sábado de Glória e os meninos íamos à igreja com recipientes cheios de água, o cura benzia a água, que depois se salpicava pelos rincões da casa. Naquela noite ressuscitava e saia do túmulo.

Por fim chegava o Domingo da Ressurreição no qual voltávamos à normalidade.

Eu recordo que em Madri era o dia de estreia de novos filmes, nos cinemas da Gran Via, que então se chamava Avenida de José Antonio e da Glorieta de Bilbao.

Eram tempos de Nacional Catolicismo, as igrejas se superlotavam de fiéis e não cabia nenhuma alma mais. Muito diferente do que ocorre hoje em dia que não se vêem nunca cheias.

Os jovens de então, em nossa adolescência opinávamos que era exagerada àquela situação e alguns nos convertemos em transgressores daquele luto.

À medida que saímos dos anos sessenta, íamos perdendo o medo de transgredir aquelas normas.

No ano 1968, ou talvez em 1969, nos reuníamos na Semana Santa na serra na Urbanização Entrepinos, pertencente ao precioso povoado de Las Rozas del Puerto Real. Entre os pinhais com um toca-discos que funcionava a pilhas, escutávamos e dançávamos a música Los Brincos, Diana Ross e as Supremas e outros grupos daquela época.

CINCO ÓRFÃOS DE MÃE

C

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

  Em Gerindote um pequeno povoado da província de Toledo, muito próximo a Torrijos, que era o núcleo principal daquela comarca em que se localizavam ambos os povoados, nasceram meus avós paternos, Apolonio e Isabel.

O matrimonio formado por Isidoro Rivera Martin e Luisa Soriano Yepes trouxe ao mundo em 1887 um varão a quem puseram o nome de Ignacio Apolonio, na rua Hurtada, número 4, onde viviam e tinham seu domicilio.

Três anos mais tarde, em 1890, veio ao mundo minha avó Isabel, filha do matrimonio formado por Emeterio González Palomo e Petra Rivera Sánchez-Aparício, na rua do Norte, número 7.

Meu avô trabalhou toda sua vida em trabalhos agrícolas, salvo o parêntese do serviço militar, que cumpriu na guerra de Melilla e que conto em outro lugar. Depois de voltar da África voltou a trabalhar para um dos proprietários de terras do povoado, na mesma casa em que também trabalhava minha avó Isabel. Ali se enamoraram e em 1914 se casaram.

Naquela casa meu avô ganhava 5 pesetas diárias. Em 1927 o matrimonio já tinha 5 filhos e decidiram que Apolonio viesse trabalhar em Madri, aonde começou ganhando 8 pesetas diárias e em pouco tempo depois, seu chefe considerou que era um homem muito trabalhador e muito responsável, por cujas razões lhe subiu o salário para 10 pesetas diárias.

Um ano depois, em 1928, buscou uma casa em Madri, aonde pudessem viver os sete juntos e trouxe a avó Isabel e os cinco filhos. Lucia de 13 anos, Luis de 11, Emeterio de 9, Felix de 5 e Victor de 3 anos.

A avó adoeceu muito rápidamente e meu pai Felix me contou como recordava que o médico foi duas vezes a casa para revisa-la. Muito pouco depois Isabel e os filhos voltaram a Gerindote, aonde a bisavó Petra, que era sua mãe, cuidou dela e dos cinco meninos, até que pouco depois faleceu, naquele verão com somente 36 anos. Muito jovem e demasiados filhos.

No dia que faleceu, tio Luis, com 12 anos estava trabalhando no povoado Torrejón de Velasco, levando com uma burra, a comida e utensílios a uma gangue de ceifeiros, ganhando 20 duros(100 pesetas, 0,60 euros) por todo o verão.

Era assim a vida de um menino então. Todos desde pequenos deviam contribuir à manutenção da família.

Recordo que meu pai me contava que com 5 ou 6 anos ganhava 1 peseta ao dia pastoreando ovelhas ou debulhando a colheita no verão.

Um dia que estava em Pradolongo e que chovia a oceanos, no mesmo lugar, aonde, 38 anos depois, eu ia jogar aos sábados o futebol com meus companheiros de bacharelado do Colégio Central, meu pai estava ali com as ovelhas e havia estreado suas alpercatas de lona e cânhamo, aquele mesmo dia, ao pisar o barro santo que se grudava nelas em grande quantidade, começou a chorar amargamente, porque suas alpercatas se iam destroçar. Pobre menino meu pai que não se dava conta, todavia de que, muito mais importante que as alpercatas, havia, perdido a sua querida mãe.

Digo mãe, porque assim o diziam eles, que não estilizaram dizer mamãe, como dizemos agora.
Se algum de nós outros, meus irmãos e eu, cometíamos o erro de responder mal o desobedecer a mamãe e meu pai o presenciava, se montava em cólera e nos repreendia dizendo-nos que não tínhamos nem a mais remota ideia do que significava ter uma mãe.

Isso e depreciar as comidas que nos fazia mamãe, tendo em conta a fome que havia passado ele, eram os mais graves motivos que podiam despertar sua raiva contra nós outros, a quem de outra parte, adorava.

Algum dia que já havia terminado suas tarefas de trabalho, e olhem bem que estou me referindo a um menino de 6 anos, e saia à rua a jogar com outros meninos de sua idade ou parecida e saiam as mães de outros meninos a dar-lhes a merenda, meu pai se metia em casa e se punha a chorar em solidão, porque ele não tinha aquela mãe que tanto quis e que já não podia dar-lhe sua merenda, nem seus beijos, nem seus abraços.

Nunca esqueceu a recordação de sua mãe, a quem sempre mencionava com um tremendo carinho, que se desenhava no brilho de seus olhos e no sorriso de toda sua cara.

Meu avô Apolonio com seus 42 anos ficou viúvo e com 5 criaturas, das quais a maior era minha tia Lucia, a única fêmea, que tinha 13 anos. O mais pequeno dos irmãos era meu tio Victor, com 3 anos. E ela se converteu na responsável de todos, porque meu avô não quis nunca que seus filhos tivessem madrasta.

E assim foi até seu falecimento. 

Sombras

S

Silvia C.S.P. Martinson

Eram dois.
 
As árvores já apresentavam nova brotação, as roseiras já floreciam.
 
O ar era leve e o perfume das flores se espalhava trazendo mais frescor ao mesmo tempo em que as abelhas, em profusão, voavam em busca do néctar tão precioso. Era primavera.
 
O céu de azul intenso confundia-se com o verde das árvores, atraindo aos olhos dos passantes um multicolorido sui generis.
 
Eles caminhavam lentamente.
 
Observavam tudo com atenção enquanto ele explicava a ela a história daquele parque, por quem e porque fora criado, detendo-se em cada lugar onde o tempo e os fatos deixaram suas marcas.
 
Ela ouvia, atentamente, porque com ele conseguia viajar no tempo.
 
Ele lhe descrevia os detalhes, as nuances e os fatos ocorridos em cada sitio. O fazia de forma tão natural como se ali estivera e vivivenciara tudo em seus mínimos detalhes.
 
Ao mesmo tempo os dois embevecidos usufruíam da presença mútua um do outro.
 
Era um momento de intensa ternura e encantamento e que os fazia sorrir ante tanto envolvimento.
 
Havia como um que de lembranças aflorando às suas mentes.
 
Caminhavam lentamente.
 
Ao aproximarem-se de um portal que dava acesso ao parque depararam com uma placa que há via no solo.
 
O sol agora estava forte.
 
O passeio tão ansiado, programado e permitido estava no fim. Eles o sentiam e anteviam a dor da separação sem, no entanto, comunicá-la um ao outro.
 
Caminhavam lentamente.
 
Dirigiram-se até a placa, olharam a data nela inserta. A memória se lhes aclarou, entenderam enfim que retornavam ao lugar onde sempre se encontravam quando queriam estar juntos, isso a muito e muito tempo.
 
Por sobre a placa beijaram-se e concluíram o que se passava finalmente.
 
Eram tão somente... Duas sombras do passado.

O estilingue do "pastilhas"

O

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

    Lá pelo mês de julho de 1960, quando haviam acabado os estudos e recebidas as notas, meus pais preparavam todo o necessário para nos mover ao belíssimo povoado de Las Rozas de Puerto Real, o povoado de meus avós maternos Pedro e Saturnina, onde meus pais , um ano antes, haviam comprado um pequeno lote de 300 metros quadrados de terreno e haviam construído um pequeno chalé. Em principio tínhamos que transportar móveis e roupas de nossa casa em Madri, que carregávamos no caminhão de meu pai até a nova casa do povoado, no sopé da Sierra de Gredos.

Na cabina do caminhão subiam mamãe com os dois pequenos, Félix e Javi, acompanhando a papai que o conduzia. Meu tio Luis junto com minha prima Luisita, minha irmã Maribel e eu, viajávamos sentados na caixa, sobre uma almofada e sem levantarnos, para que a Guarda Civil da estrada não nos multasse.

Meu pai normalmente aproveitava a festividade de 18 de julho em que se permitia levar pessoas nas caixas de caminhão, porque se faziam excursões ao rio Alberche. Guadarrama e ao Pantano de San Juan, para passar o aniversário do levantamento dos Generais contra a II República, para nos levar ao povoado.

À exceção de meu pai e de meu tio Luis, que regressavam a Madri para trabalhar, todos os demais ficavam em Las Rozas de Puerto Real até o começo das classes no colégio, na primeira dezena de setembro. Ou seja, que durante quase dois meses desfrutávamos de nossa estadia e atividades de verão.

Uma das atividades que eu praticava habitualmente era a prática da caça. Naquela época, à cultura e costumes populares diferiam, em boa medida, das que hoje se consideram normais. Por exemplo: se considerava normal que os meninos caçassem passarinhos pelas vinhas, oliveiras e montes, para que uma vez desplumados e destripados fossem cozidos e servissem de comida.

Meu amigo Antonio, que todos chamávamos Pastillas, tinha um estilingue daqueles que fazíamos com uma forquilha de madeira de oliveira, dois elásticos vindos de rodas velhas de bicicletas, um sapato de couro velho para guardar a porcelana que era o projétil.

Antonio aonde colocava o olho punha a porcelana. Eu ao contrário atirava com uma escopeta de ar comprimido de 4,5mm de calibre e marca Norica, que disparava um tiro de cada vez.

Observávamos aonde pernoitava os bandos de pássaros, vigiando-os ao final da tarde e aonde os localizávamos, nos acercávamos pela noite com uma lanterna de pilhas. Focávamos a lanterna sobre as ramas baixas aonde dormiam as aves e em um tempo já tínhamos umas quantas em nosso poder.

Uma noite saltamos a vala de um vinhedo cerca da igreja do povoado e nas ramas de uma figueira, próxima da torre do campanário, que foi ha séculos, torre Albarrana, localizamos com a lanterna um galo branco dormindo com suas penas muito brancas. Meu querido Pastillas não me deu tempo pra dizer-lhe que não atirasse. Em um instante havia atirado e acertado o galo que caiu ao solo cacarejando com grande estrondo e alvoroço.

Justo, neste momento, estavam saindo umas senhoras da igreja e ao escutar os cacarejos, começaram a dar gritos, motivo pelo qual meu amigo e eu saímos correndo pelas videiras escapando pelo campo a toda, abandonando o galo no lugar onde havia caido, que supus se recuperaria da pedrada.

Outra tarde, observávamos muitos pássaros sobre um curral de ovelhas que tinha o pai de meu amigo Angelillo em um beco que subia ao Barrio de Las Eras desde a Fuente Morisca, junto a casa de Nicomedes.
Naquela noite fomos até ali e entramos no beco. Debaixo das figueiras estivemos um tempo caçando entre as ovelhas.

Quando consideramos que devíamos ir e pulamos a rede de imediato começamos a notar umas picadas nas pernas, por isso nos iluminamos com a lanterna e descobrimos que nossas pernas estavam negras de pulgas e por isso fomos correndo até uma fonte pública perto em cujas pias estivemos nos lavando, totalmente nus, até conseguir desvencilhar-nos daqueles chatos animaizinhos.

A revolucão

A

Silvia C.S.P. Martinson

Isto se passou em 1964.
 
Havia em Porto Alegre então um cinema que se chamava Imperial. Bom cinema aquele. Era o mais luxuoso da capital. Ali vimos muitos filmes que ficaram em nossas lembranças e até hoje são famosos tanto por suas histórias ali contadas como por seus diretores e atores que neles atuaram. Sempre que íamos às aulas de piano de minha irmã por ali passávamos.
 
A época como todo jovem inexperiente, idealista e confiante nas teorias políticas e nos políticos, eu era aficionada das ideias socialistas, daquelas que pregam igualdade entre os homens, bem estar e educação à toda população.
 
Havia então uma grande manifestação no centro de Porto Alegre a favor do presidente da república, que, diga-se de passagem, era um homem rico, dono de fazendas de gado, e outras propriedades, chamado João Goulart.
Esta manifestação visava dar-lhe apoio para que se mantivesse no poder, uma vez que os militares o queriam destituir. O que finalmente veio a ocorrer.
 
Ignorávamos, no entanto, que apesar de o povo estar lhe apoiando nesta manifestação, o mesmo já havia fugido do país e se exilado em uma de suas fazendas no vizinho Uruguai.
 
Naquela tarde retornávamos da aula de piano em pleno centro da cidade, mais precisamente na “rua da Praia” comumente chamada assim a rua dos Andradas, quando em frente ao cinema Imperial formos surpreendidas pela tal manifestação popular.
 
As pessoas portavam cartazes, bandeiras e se manifestavam pelos megafones então existentes. Ali paramos e ficamos extasiadas observando tudo, na maior inocência e sem nos darmos conta do perigo que corriámos.
 
Tudo aconteceu muito rapidamente. Surgiram então militares montados em cavalos que à força de baionetas e outros aparatos, dispersavam a população, impulsionados por seus animais que iam a galope.
 
Minha irmã e eu , quando um desses militares vinha em grande velocidade em nossa direção, fomos agarradas pelos braços e puxadas para dentro de um prédio ao lado do cinema.
Desses braços fortes que nos salvaram até hoje me lembro.
 
Eram de um senhor de cuja fisionomia não me recordo face ao terror que nos assaltou naquele momento. Ele nos puxou para dentro do edifício e imediatamente trancou a porta da entrada e nos disse que ali permanecêssemos até que as coisas se acalmassem.
 
Ouvíamos os gritos na rua e pelas vidraças da porta, que eram grossas, viamos as pessoas correndo em várias direções, sendo pisoteadas pelos cavalos ou sendo presas.
 
Permanecemos naquele prédio, todos em absoluto silêncio, até que a noite chegou e com ela os distúrbios cessaram.
Saímos dali com todo cuidado e nos dirigimos ao ônibus que nos levaria à nossa casa.
 
Naquela época não existiam celulares e não tínhamos como nos comunicar com nossos pais.
 
Quando chegamos à casa minha mãe e meu pai nos abraçaram e choraram muito de alegria, porque estávamos enfim a salvo, haja vista que tomaram conhecimento do que se passara através das noticias dadas pelas rádios locais.
 
Meu pai nos deixou presas em casa por vários dias, inclusive sem ir à escola, por algum tempo, porque os distúrbios ainda se davam com frequência e havia muito perigo nas ruas.
Agradeço aquele homem, mentalmente, até hoje por haver-nos salvo a vida.
 
Éramos duas crianças a mercê de contendores que não mediam forças para impor aos demais suas filosofias políticas que, ao fim e ao cabo, até hoje, perduram sem que o povo veja realmente os benefícios que ambas propugnam.
 
A luta pelo poder ainda hoje continua e os políticos continuam a prometerem o que na verdade não costumam cumprir, usando de falácias, tudo em nome do povo.

Um dia diferente

U

Silvia C.S.P. Martinson

Caminhava pela rua quando e não sei bem porque, lembrei-me de um fato que ocorreu em minha infância.
 
Era dia 24 de dezembro. Dia de Natal.
Neste dia às 12 horas da noite o Papai Noel costumava deixar presentes debaixo da árvore de Natal. É o dia em que se comemora o nascimento de Jesus Cristo.
 
Em minha casa esta tradição sempre foi obedecida. E nas casas de meus vizinhos também.
 
Naquele tempo não havia lâmpadas próprias para enfeitar a árvore de Natal. Somente existiam bolas coloridas que eram de vidro ou cerâmica e se quebravam facilmente.
Várias vezes ao enfeitar a árvore com estas bolas as deixamos cair e se quebraram em mil pequenos pedaços.
 
Por muitos anos as tive guardadas como lembrança em minha casa.
 
As guirlandas de enfeite eram caras e feitas de papel alumínio quando prateadas, ou havia outras de papel tingido de verde e mais baratas.
 
Os enfeites luminosos se constituíam de pequenas velas de cera coloridas, que eram acesas com fósforos e se queimavam lentamente, proporcionando ao ambiente uma luminosidade bruxuleante que a todos encantava, apesar do perigo que ofereciam.
As ávores sempre eram pinheiros colhidos nas matas locais.
 
Nosso vizinho o senhor Osvaldo primava por fazer todos os anos uma bela árvore de Natal.
Pelo que me recordo, cada vizinho procurava fazer a sua mai8s bonita b que a dos outros, mais alta, mais iluminada, mais enfeitada e com um lindo presépio em sua base.
 
Este presépio constituía-se de imagens de cerâmica representando o nasciento do menino Jesus, sua família, o estábulo onde nascera, os reis magos e a paisagem ao seu derredor.
 
Havia entre os vizinhos e isto hoje me parece uma quase competição, não manifestada, porém evidente, de quem fazia a árvore mais bonita daquela rua. Até porque depois da meia noite tinham o hábito de visitar a casa de um e de outro para os devidos abraços e cumprimentos pela data natalícia, quando então admiravam e elogiavam, não sem um pouco de inveja, os trabalhos executados.
 
As árvores eram adquiridas em determinadas ruas onde ficavam expostas por vendedores que ali se postavam a fim de vendê-las.
Lembro-me que os preços variavam de acordo com o porte e beleza da árvore exposta.
Os homens da vizinhança saiam cedo para comprá-las.
 
As mulheres se detinham nas cozinhas a preparar a ceia de Natal, que normalmente se constituía de um peru assado acompanhado de saladas, arroz e frutas cristalizadas por aqueles que as podiam comprar.
 
A nós crianças, cabia-nos ajudar a enfeitar a árvore o que nos dava muita alegria quando solicitados a fazê-lo.
 
Pela tarde tomávamos banho e nos arrumávamos para a tão esperada ceia.
Esperada sim, porque depois dela éramos induzidos a sair para a Missa do Galo que se dava as 12 horas da noite.
 
E para “surpresa” de todas as crianças de minha época o Papai Noel já havia passado por nossas casas e deixado ao pé da árvore um presentinho que variava, hoje sei, de qualidade conforme as posses de cada família.
 
No entanto, lembro ainda, daquele Natal em especial em que o senhor Osvaldo preparou uma grande árvore e nela colocou muitas velas acesas a arder e foram cear na sala de janta. E ali estavam quando sentiram um forte cheiro de queimado.
 
Dirigiram-se à sala onde estava a dita árvore e esta simplesmente ardia em chamas já altas queimando quase tudo a sua volta.
A casa era de madeira, as chamas já alcançavam o teto que, felizmente, tinha um “pé direito” muito alto.
 
Com grande esforço toda família e vizinhos ajudaram a apagar o fogo.
 
O Natal se quedou triste para todos os amigos da vizinhança que de uma forma ou outra auxiliaram esta família pelo menos no conforto espiritual, já que os festejos para eles estavam acabados.
 
Eram meus amigos de infância, os pais trabalhavam muito e eram pessoas que se esforçavam para dar o sustento e educação aos seus filhos.
E como tudo na vida...
Assim se passou.
 

Dar un passeio

D

Pedro Rivera Jaro

Traducido al portugués por Silvia C.S.P. Martinson

Antes do início da guerra civil espanhola em julho de 1936, meu pai, Félix, tinha 13 anos de idade. Quando eu era criança ele me contava em segredo, porque naquela época todas as coisas relacionadas à República eram proibidas, como, à noite, as vans chegavam aos campos de trigo e cevada perto do Barrio de la Perla e Colonia Ferrando, no sul de Madri, que, naquela época, pertenciam à cidade de Villaverde, onde viviam, carregando as pessoas que iam executar, com um ou vários disparos. O que eles chamavam de "dar-lhes a carona".

Meu pai e seus amigos que moravam por perto, observavam tudo em silêncio, deitados no chão, escondidos para que não pudessem ser descobertos. Então, pela manhã, minha mãe, que tinha a mesma idade que meu pai e que vivia no vizinho Bairro de San José, ao lado da Colônia Popular Madrileña, que antes se chamava Colônia de Alfonso XIII, e que hoje é a Colônia de San Fermín, caminhava ao longo das calçadas dos campos à procura dos corpos daqueles que haviam sido baleados e que haviam ouvido à noite.


- Olhe, aqui está um, e ali vejo outro.
- Olha, eles puseram um punhado de espigas de milho em sua boca, como se ele fosse comê-las.

Foi outra humilhação, comparando uma pessoa a uma mula ou a um burro, por comer a mesma comida.

Em outra noite, quase anoitecendo, em uma terra onde os detritos estavam sendo descarregados e transformados em pilhas sucessivas, eles se esconderam quando notaram a aproximação de uma van. As pessoas na van pararam o veículo e cinco pessoas saíram da mesma. Três dessas pessoas estavam carregando pistolas em seus respectivos coldres. Haviam outros dois, um estava vestido de macacão escuro, e como o quinto estava desarmado. O homem de macacão escuro não parava de gritar, uma e outra vez:
- Só quero que me diga por que vai me matar?
Depois de perguntar várias vezes, um dos homens com uma arma lhe respondeu:
- Você se lembra da dança que fez em sua garagem no dia de San Isidro, e quando eu quis entrar, você não me deixou? O de macacão respondeu:
- Sim, eu me lembro.
E aquele que tinha a arma respondeu em voz alta:
- Bem, é por isso que vamos matá-lo agora.

Então aquele com o macacão escuro lhe deu um forte empurrão com as mãos e o jogou para trás e imediatamente começou a correr através das pilhas de terra e para longe dali, na direção do lugar onde meu pai e seus amigos estavam escondidos.

Os homens com as armas começaram a atirar na tentativa de abater o homem em fuga, sem sucesso, mas meu pai me disse que eles viram os flashes de cada tiro na escuridão da noite em avanço, e que eles ouviram as balas assobiando sobre suas cabeças e aterrorizados eles colaram seus corpos à terra e permaneceram imóveis.

Depois de um tempo, aqueles homens tinham saído na van e o silêncio caiu. Meu pai e seus amigos se levantaram, ainda assustados e partiram para casa. Pensei muitas vezes sobre a injustiça que eles queriam cometer contra aquele homem que conseguiu escapar. Também pensei que quando a guerra terminasse, aquele homem, se ainda estivesse vivo, buscaria vingança sobre aquele que o quisera matar?

A volta

A

Silvia C.S.P. Martinson

Quando estudava à noite na Universidade para tornar-me advogada, costumava voltar à casa bem tarde pois que as classes normalmente acabavam por volta das 10,30 ou 10,40horas.
 
Como tantos alunos também retornava à casa de ônibus, pois que a Universidade se localizava a mais ou menos 30 ou 40 km em uma cidade chamada São Leopoldo que distava da capital onde eu residia.
 
Saíamos juntos e lotávamos o último ônibus que ficava a esperar-nos ao lado da Faculdade.
 
Procurávamos sentar-nos juntos no coletivo aqueles que desceriam no mesmo ponto.
 
Como precisava ainda tomar outra condução para ir a minha casa isto me obrigava a descer no centro da capital e cruzar por ruas escuras, onde as prostitutas faziam seu “metier”, até chegar ao abrigo onde se encontrava o coletivo que me levaria ao meu destino.
 
Antonio a Vera eram sempre os companheiros de viagem. Quando não era um era o outro.
Antonio estava no último ano da faculdade assim como eu, porém ele na Economia e Vera juntamente comigo na de Direito. Éramos inseparáveis.
 
Ele um moreno carioca muito bonito e simpático já era casado, recém-casado com uma garota bonita, filha de pais portugueses e vinda do norte de nosso país.
 
Vera e eu éramos solteiras, porém já compromissadas com nossos futuros maridos.
Em uma dessas noites de retorno tivemos duas experiências inesquecíveis.
 
A primeira deu-se quando Antonio e eu chegamos ao centro da cidade e, como sempre, precisamos atravessar as ruas onde se localizavam os prostíbulos.
 
Caminhávamos rapidamente evitando as “senhoritas” que ali já se encontravam quando, uma delas seminua se adiantou e me empurrou contra uma parede dizendo-me que ali eu não poderia “trabalhar”, porque estava lhe fazendo concorrência desleal. Ao que de imediato se agarrou ao braço de Antonio tentando conduzi-lo para o seu “habitat”.
Antonio que era um enorme brincalhão começou a rir em alto e bom som e com agilidade desvencilhou-se dela, pegou a minha mão com força e começou a correr fugindo dali.
 
Chegamos à parada do ônibus que me cabia esbaforidos e ao mesmo tempo em que entre risos comentávamos o ocorrido. Após o que cada um seguiu seu caminho.
 
Hoje ele vive ao norte de nosso país, está velho. Mantemos a amizade de mais de trinta anos e penso que talvez ainda recorde o que se passou naquela noite.
 
O outro fato aconteceu com Vera e eu quando retornávamos uma noite pelo mesmo caminho. Não havia outro por onde pudéssemos cruzar para ir ao nosso destino.
Vera, era muito bonita e vistosa, de um gênio forte e sem peias na língua. Quando tinha que responder mal a uma pessoa que porventura ousasse lhe agredir verbalmente, o fazia de forma muito rápida e inteligente. Era incrível a versatilidade e criatividade dela.
 
Tornou-se uma grande advogada.
Bem, sem mais delongas vamos contar o que se passou em outra noite com nós duas.
Descemos do ônibus e dirigimo-nos às malfadadas ruas.
 
Uma “senhorita” nos interpelou, interrompendo nossa caminhada, porque estávamos ali?
 
Furiosa nos ameaçou com um punhal - penso que estava drogada – dizendo que as mulheres que poderiam estar ali eram as de sua “profissão” e que, portanto, nos ia apunhalar, ao que Vera rapidamente lhe dissuadiu dizendo que ela estava enganada.
 
Disse-lhe simplesmente – Não vês querida que não somos mulheres? Somos homens disfarçados procurando outros para fazer-nos companhia...
 
A prostituta surpreendida com tal resposta guardou o punhal e pôs-se a rir desmesuradamente.
 
Saímos rapidamente daquela rua rumo às conduções que nos levariam, depois de um dia árduo de trabalho e de uma noite de dedicação aos estudos às nossas casas e ao merecido descanso.
 
Até hoje me recordo com alegria daquele tempo e das boas e tantas experiências vividas.
De Vera nunca mais tive noticias.
A cidade mudou, bem como seus hábitos e costumes.
 
Os prostíbulos cerraram suas portas, as prostitutas de então se não morreram estão velhas e desgastadas.
 
As novas prostitutas já não circulam pelas ruas somente a noite, hoje fazem-no em dia claro e se comunicam, confortavelmente, por celular onde postam suas fotos mais sedutoras pela internet em páginas em que expõem a sua “profissão”.
 
Não esquecendo que com a disseminação das drogas e o livre acesso dos traficantes a estas mulheres, a policia também se tornou mais atenta, inclusive às vezes tendo de usar mais energia do que é legalmente permitido para dispersar estes agrupamentos altamente perniciosos.

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