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Os frutos da figueira

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Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

 Quando eu tinha aproximadamente 12 anos, mais ou menos, em 1962, tive uma conversa com minha tia Cruz, que era a irmã mais nova de meu avô Pedro, na maravilhosa vila de Las Rozas del Puerto Real.

Era um dia em que tínhamos selado seu burro com sua cabeçada, sua sela de peito duplo, uma de cada lado e sua circunferência, e tínhamos descido até seu pomar, no que chamamos de Arroyo del Valle, muito perto da fronteira de uma aldeia vizinha, Cadalso de los Vidrios. Ela tinha um belo pomarzinho com algumas figueiras que produziam frutas deliciosas, que ela chamou de Pescoço Dama.

Ela tinha plantas como: morangos, feijão, tomate, batata, algumas videiras e algumas outras árvores frutíferas, como ameixeiras, pessegueiros, cerejeiras ácidas e assim por diante. Ao entrar por uma pequena porta na parede de pedra encaixadas sem cimento entre elas, que rodeava todo o pomar, do lado esquerdo havia três figueiras grandes, a cerca de cinco metros de distância, na frente do lado direito havia um poço de água muito limpa e fresca, com vários metros de profundidade, com a qual regávamos o pomar, tirando a água com uma haste que balançava para cima e para baixo, havia um caldeirão de chapa galvanizada amarrado ao final da haste e na parte de trás desta era amarrado outro balde cheio de pedras que atuava como contrapeso quando o caldeirão cheio de água era levantado, que esvaziado onde começava a calha carregava a água para baixo, seguindo sua própria inclinação para os sulcos da horta.

Acho que foi em um dia no final de agosto quando estávamos colhendo figos.

As figueiras têm galhos flexíveis que permitem aproximá-los do solo para que os figos possam ser colhidos e encherem os cestos de vime aonde eram guardados. Ela fez para mim uma ferramenta a partir de um ramo de árvore que chamou de rabisco, que, nada mais era do que uma espécie de gancho cortado logo acima, onde o ramo mais grosso encontrava um de seus rebentos. Com este gancho enganchávamos os galhos da figueira e os puxávamos para baixo para alcançar os figos, que tinham que ser cortados sem arrancar o mamilo, que tinha que permanecer com o figo.

Minha tia e eu estávamos fazendo isso quando perguntei a ela por que a figueira deu um primeiro fruto maior, que era chamado de "breve" quando alguns meses depois os outros figos amadureciam, enquanto que as outras árvores frutíferas que eu conhecia produziam apenas um fruto.

Ela riu com a alegria de poder me ensinar coisas que eu não sabia e me contou uma história que sua avó materna lhe havia contado:
- Nos anos em que Jesus Cristo e seus Apóstolos estavam pregando a Doutrina Sagrada nas margens do Jordão e estando cansados e sedentos, em um dia muito quente, havia esgotado seu suprimento de água potável, restando apenas uma cabaça cheia de vinho doce que São Pedro carregava, meio escondida, e da qual este último bebia meio secretamente.

Jesus olhou para ele e lhe perguntou: O que você está bebendo, Simão? (pois esse era seu nome antes de Jesus o chamar de Pedro)

- É vinho Senhor, você gostaria de prová-lo?

São Pedro lhe entregou a cabaça do vinho doce, e o Senhor, sedento como estava, e com o doce sabor daquele pequeno vinho, bebeu-o com grande prazer até esvaziá-lo. Depois de um tempo Jesus caiu em uma grande sonolência e deitou-se para dormir na sombra próxima.

São Pedro temia que Jesus tivesse ficado bêbado e adormecido como resultou. E pensou que ele iria punir, com seu poder milagroso, aquele líquido que o havia deixado sonolento e, em consequência, começou a pensar de que maneira ele amaldiçoaria aquela bebida que tanto amava e os vinhedos que produziam as uvas a partir das quais ela era obtida.

Quando Jesus acordou, perguntou a São Pedro de onde vinha o líquido que ele chamava de vinho, ao que ele respondeu que era obtido do fruto de uma árvore chamada figueira. Então Jesus surpreendentemente lhe disse com grande solenidade: "Feliz aquela árvore, que dá dois frutos por ano". E desde aquele dia a figueira nos deu os “breves” (figos) como o primeiro fruto e os demais figos como o segundo fruto.

Não sé quer a lenda seja verdadeira ou não, o que não podemos negar é que ela é muito bonita. Nunca a esqueci, e agora me dá grande satisfação contá-la a todos vocês, ao mesmo tempo em que me lembro daquela velha mulher que eu tanto amava, minha tia Cruz.

Meu lugar sonhado

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SIlvia C.S.P. Martinson 

Estranho pensei: “MEU LUGAR SONHADO” é este o título que me foi proposto. Nunca havia imaginado em toda minha vida projetar para mim um final em algum lugar definido.
 
Depois de tudo o que vivi, trabalhei, estudei, formei minha família, morei em diversos lugares e viajei, me parece estranho ficar definitivamente em um lugar.
 
A vida transcorreu tão rapidamente e transcorre que não me dei conta que de certa forma envelhecemos.
 
Somente agora com a proposta interessante de escrever um texto sobre “Mi Lugar Soñado” é que parei para pensar qual seria este lugar para mim.
 
Na infância tive a felicidade de ter uma família constituída por pai, mãe e irmã, que naturalmente preencheram as minhas necessidades materiais e acima de tudo, através do carinho e atenção de meus pais recebi os ensinamentos sobre moralidade, amizade, religiosidade e respeito ao ser humano. Enfim um lar. 
 
O que eu gostava em criança era quando meus pais saiam de férias para a praia, íamos em uma camioneta Ford cujos bancos de trás eram de madeira e à frente meu pai conduzia e minha mãe e ele iam cantando músicas o tempo todo. Aos meus pais  encantava-lhes cantar. Nosso mundo era mágico então.
 
Já mais velha casei e constituí família, exercendo neste novo lar a função de mãe, esposa e companheira nas decisões que a vida nos obrigava a tomar. Nem sempre as mais acertadas, porém as que nos pareceram à época as mais adequadas e corretas à situação que se apresentava.
 
Assim que naqueles anos, naqueles momentos e lugares onde vivi eles me instigaram a supor que eram: “Mi Lugar Soñado”.
 
O tempo passa, a filha cresce, casa-se e segue seu caminho. A morte também nos bate à porta por sua exigência natural e carrega consigo nossos entes queridos, ao que tivemos inevitavelmente que aceitar.
 
Então o lar se desmorona, restando o vazio com o qual convivemos e as lembranças que nos atordoam às vezes, recordando-nos de momentos felizes, dos êxitos alcançados daquilo que foi “Mi Lugar Soñado”.
 
Agora, neste momento, em que vivo longe de meu país, porém feliz, vou passar a imaginar o que gostaria de ter finalmente como um lugar que poderia chamar de “Mi Lugar Soñado”.
 
Vivi tanto em várias cidades pequenas e grandes que neste exato instante, se não for viajar do que gosto muito, minha mente se transporta a uma montanha.
 
Uma montanha verdejante, cheia de bosques e corredeiras de água límpida, onde eu me banharia todos os dias de calor e onde sob a sombra das árvores ficaria a compor meus versos e a sonhar.
 
Desta montanha, não muito alta, eu poderia divisar, sob o céu muito azul, os vales e as pequenas casas lá existentes.
 
Quase ao topo deste cerro eu teria lá minha casinha de pedras naturais, pintada de branco, muito simples, com uma sala conjugada à cozinha onde prepararia a comida, o chá ou café para receber os amigos. Um quarto para hóspedes, outro para mim, dois banheiros, uma lareira de lenha na sala para aquecer nos dias frios. Janelas adornadas com cortinas brancas e gerânios  e ainda coloridos no exterior.
 
Um jardim com rosas e outras flores adornariam a entrada da casa que não teria cercas para limitar a entrada. Na porta a esperando-me com uma taça de vinho branco, quando chego pela tarde ou à noite, o homem de quem gosto e que me seduz todos os días. 
Um galinheiro de onde colheria os ovos
Um pomar com muitas árvores frutíferas.
Uma horta onde cultivaria hortaliças diversas.
 
Os animais silvestres correriam soltos pelo entorno, sem medo de serem capturados.
Ao final do terreno faria construir um jazigo simples que seria usado após a minha morte e nele estaria escrito em uma placa o seguinte:
 
"Aqui jaz uma mulher que viveu intensamente e morreu feliz dizendo:
 
Eis aqui onde vivi até agora MEU LUGAR SONHADO”.

O rastro dos sessenta

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Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

Desde o primeiro dia em que o meu pai me levou a conhecer El Rastro, quando eu tinha cerca de 10 anos, senti-me atraído por este Grande Mercado Callejero a tal ponto que, a partir dali, juntava-me com os meus amigos ou às vezes, com o meu primo Polo e íamos até ali para, curiosos, percorrer todas aquelas ruas onde se podia encontrar qualquer coisa que buscassem, um cinto de couro, um relógio, um disco de música, uma bicicleta, uma camiseta, um par de calças, qualquer ferramenta para um mecânico, um pedreiro, um carpinteiro, um eletricista ou qualquer outro ofício.

Então como agora, havia lojas estabelecidas e muitas outras que se estendiam em bancas de lona com estrutura metálica, montadas ao longo das calçadas na Ribera de Curtidores, Mira el Río, Plaza de Cascorro, Ronda de Toledo, Plaza de Vara del Rey, Carlos Arniches, Plaza del Campillo del Mundo Nuevo, etc.

Lembro-me de um domingo em que acompanhei a minha mãe até ali e compramos duas bicicletas usadas de segunda mão, uma de menina, sem barra superior entre o selim e o guidão, de cor rosa que era para a minha irmã Maribel e outra mais pequena de cor azul para os meus dois irmãos mais pequenos, por metade do que teria custado uma só se houvera sido nova.

Entre os dois, as levamos no ônibus da Colónia Agrícola, que nos levou até à esquina dos Talleres Recuero, no cruzamento da estrada de Carabanchel Alto com a de Villaverde Alto. A partir dali, as baixamos rodando, sobre suas rodas, até a rua de San Fortunato, onde ficava a nossa casa.

A minha querida mãe foi desfrutando ao longo do caminho, pensando em quanto gozariam meus irmãos, como assim o foi desde o momento em que lhes puseram os olhos nelas.

A minha mãe foi difícil discutir com meu pai, porque o dinheiro naquela época era sempre escasso, porém ao final meu pai teve que reconhecer que havia feito uma boa compra, acima de ver desfrutar aos meus três irmãos aprendendo a montar em bicicleta no enorme pátio da nossa casa, ajudados por mim, a fim de evitar que caissem ao chão.

Entre todas as ruas de El Rastro, havia uma que tinha uma atração especial para mim. Chamávamos-lhe Rua dos Pássaros, embora o seu verdadeiro nome fosse Fray Ceferino González.

Nessa rua vendia-se tudo o que era necessário para criar todo o tipo de aves, tais como galinhas, pombos, pintassilgos, canários, misturados, papagaios, araras e jacintos. Gaiolas, ração, redes de captura, molas de folha ou costelas, liga para apanhar pássaros vivos. Cães, gatos, coelhos, furões para caçar em tocas, capuzes para colocar nas bocas das tocas e evitar que fugissem, etc.

Uma vez comprei uma pomba e juntei-a a outras que tínhamos num pombal em casa. A pomba fugiu e quando voltei a vê-la estava na mesma banca onde a tinha comprado na semana anterior.

Esta rua estava cheia de gente todos os domingos, tanto que era quase impossível caminhar por ela.

Na sociedade espanhola daquela época eram bem vistos muitos costumes, que hoje em dia são impensáveis e que a lei persegue.

Hoje caminhei por essa rua e já não há nenhuma tenda de animais. Em contrapartida, há vários bares, uma pizzaria, um Hostel, um Centro Comunitário para idosos LGTBI, um lugar de pilates com um treinador pessoal, um lugar de prática de Yoga, uma Escola de Circo e um Estúdio de Arquitetura.

Nada a ver com a minha adolescência e reflexo da variação da nossa sociedade.

Na esquina com a Ribera de Curtidores, existe hoje uma loja de roupa, calçados e de esportes de sky mountain, muito boa por certo, mas no mesmo local existia uma das melhores tendas de música, onde adolescentes buscávamos e encontrávamos os discos mais modernos do momento, de 45, ou Longplays, os cartazes dos conjuntos mais conhecidos: Rolling Stones, The Beatles, Los Platters, Los Mustangs, The Shadows, Paul Anka, Nat King Cole, Frank Sinatra, etc... Aquela tenda era o máximo em modernidade musical.

E recordei de tudo isto dando um passeio, caminhando muito devagarzinho, acima e abaixo de minha recordada rua de LOS PÁJAROS.

Chorão

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Silvia C.S.P. Martinson 

Quando trabalhava como advogada na cidade em que vivia, observei muitos fatos interessantes que ocorreram nos corredores do Forum .
 
Um deles me marcou fortemente por sua peculiaridade.
 
As pessoas que ali se encontravam principalmente os funcionários dos cartórios, acostumados a ver o sofrimento alheio, seja por ausência de um atendimento judiciário justo ou por dramas familiares muito comuns a nós seres humanos, ficaram estarrecidos ao que assistiram.
 
Bem vamos aos fatos propriamente ditos a fim de que não nos estendamos demais e causemos com isto tédio ao leitor. Aconteceu assim:
 
Todos os dias pela tarde, quando se realizavam as audiências e os juízes estavam assoberbados de trabalho, consequentemente os funcionários também a prepararem os expedientes normais a cada caso a ser analisado pelo magistrado designado à questão, se passou o seguinte no corredor em que as partes esperavam a sua vez de serem ouvidas.
 
Havia um senhor – que não me recordo o nome o que também não vem ao caso – que se sentava em um banco a chorar lamentando-se em alto e bom som.
 
Inquirido sobre o que se passava narrou, entre soluços, que a mulher lhe batera e expulsara àquela hora de casa.
 
Todos ali presentes se apiedaram dele.
Acontece que este fato passou a tornar-se cotidiano no recinto do Forum ocasionando então a chamar mais a atenção dos juízes e funcionários.
 
Um dia o juiz apiedado lhe chamou a seu gabinete e lhe perguntou o motivo pelo qual continuava isto a acontecer e porque ele não dava queixa à policia ou à Promotoria Pública do que estava acontecendo, a fim de que fossem tomadas as devidas providencias judiciais.
 
Entre choro e soluços pungentes ele declarou ao juiz que amava a mulher e que à noite na cama sempre se reconciliavam e ainda que no Forum, ele encontrava o ambiente propício a desabafar a sua dor, haja vista que na rua chamaria muita atenção.
 
O juiz ficou boquiaberto com tal atitude inusitada e ao que profundamente aborrecido pela ousadia e também por ter perdido seu precioso tempo de trabalho, o expulsou de seu gabinete dizendo-lhe que resolvesse seus problemas em sua casa e não voltasse a pisar no corredor do poder judiciário com iniquidades.
 
Tempos depois se soube a verdade, como sempre esta tarda porém sempre aparece.
A mulher lhe batia porque ele não queria ir trabalhar apesar de ter saúde.
 
E acima de tudo ficava com o dinheiro da casa, que ela ganhava fazendo faxinas, e ia gastá-lo nas casas de apostas e jogos de cartas e em corridas de cavalos.
 
E aí, então, nos perguntamos: Onde estava realmente a justiça ou injustiça neste caso?

 

Justiça catala

J

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

Por volta de 1920, meu avô Pedro comprou um terreno na parte sul de Madri, que naqueles anos pertencia ao vilarejo  de Villaverde Alto e que, em meados do século XX, passou a fazer parte de Madri, no distrito de Arganzuela-Villaverde, onde ele queria onstruir sua casa e a casa de seus filhos adultos, que já eram casados. A primeira pessoa a construir uma casa ali foi um homem chamado Aurelio, apelidado de El Loco, aludindo ao estado que uma pessoa deve ter tido na cabeça para ousar ir morar ali, naquelas áreas lamacentas no meio dos campos de cereais. Um bairro de rua chamado Barrio de Los Locos foi formado ali, onde vários parentes de meu avô se estabeleceram, por exemplo: tia Marcelina, sua irmã mais velha com seu marido e suas filhas.

A Prefeitura de Madri nomeou a rua Barrio de San José, e este nome foi mantido até os anos 60, quando foi mudado para rua de San Fortunato, o nome que ainda hoje leva.

Minha mãe Victoria nasceu na casa do meu avô Pedro em 1923 e eu nasci em 1950. Mais tarde, em 1952, minha irmã Maribel nasceu, em 1955 meu irmão Felix e o mais novo dos quatro, Javi, veio ao mundo em 1958.

Com o passar do anos, todos esses campos de trabalho se tornaram povoados de edifícios.

 Na década de 1920 foi construída a Colônia Alfonso XIII que com o advento da Segunda República ficou conhecida como a Colônia Popular Madrilenha, e a partir de 1939 foi reconstruída sobre os restos causados pelos bombardeios da Gerra Civil ( ou melhor, da Guerra Incivil), porque toda a vizinhança era uma frente de guerra. Esta colônia construída sobre as ruínas se chamou Colonia de San Fermin, e todas suas ruas têm nomes que nos lembram Navarra, a Avenida de lós Fueros, as ruas Zalacain, Oteiza, Lofosa, Navascués, Amaya, e de fato as festividades de 7 de julho, o dia de San Firmin, trouxe à celebração de festivais ao nosso bairro.

Em 1959 o Assentamento San Firmin foi construído em continuação da referida Colônia, sob os auspícios da Obra Sindical del Hogar, do Ministério da Habitação. E do lado oposto, ou seja, a área norte, que era a mais próxima do bairro das Carolinas, San Mario, a Colônia de Andalucia, as Torres de Carabelos, etc. foram construídas. Os prédios margeados ao leste pelo Caminho de Perales, uma antiga estrada de terra, ao longo da qual os rebanhos de gado chegavam ao Matadouro Municipal de Madri, em Legazpi, para serem abatidos.

Lembro que em algumas ocasiões, quando eu era criança, se um touro feroz escapava os vizinhos avisavam imediatamente as pessoas para ficarem dentro de casa até que o perigo tivesse passado.       

A casa de meu avô Pedro, em 1972 e parte de 73, foi  demolida e dois blocos de apartamentos foram construídos em seu lugar. Meus pais, meus irmãos e eu morávamos em uma dessas novas casas, na 2ª D do número 24 da rua San Fortunato.

Em dezembro de 1973, meu pai morreu subitamente, como resultado de um derrame cerebral, aos 50 anos de idade. Minha mãe tinha a mesma idade que meu pai, ficou viúva e muito abalada.

O único consolo de minha mãe era o orgulho de ter a nós,  seus quatro filhos. E todos os dias quando saíamos para nossos respectivos empregos, ela ficava no terraço da casa, nos observando até que desaparecêssemos de sua vista.

Um dia minha mãe estava observando minha irmã Maribel em seu Seat 600 branco, descendo a rua em direção ao Camino Perales, que até então havia se tornado uma rua perfeitamente asfaltada. Quando ela estava a poucos metros da rua, um caminhão de entrega de bebidas (cervejas, refrigerantes, etc.) surgiu na entrada da San Fortunato, cuja largura impedia que qualquer outro veículo seguisse na direção oposta, forçando minha irmã a fazer marcha à ré, enquanto ele buzinava alto, para que o caminhão pudesse chegar para descarregar na loja de bebidas, que ficava cerca de 50 metros mais adiante. O entregador poderia ter facilitado a saída do Seat 600, que ficava a dois metros da saída para a outra rua, mas em gesto altivo e arrogante ele forçou minha irmã a fazer marcha à ré na rua.

Mas para sua desgraça, minha mãe que tinha observado as manobras de seu observatório no terraço, desceu as escadas correndo e correu pelo meio da rua, obrigando minha irmã a parar e continuou correndo até chegar onde o motorista do caminhão estava descarregando caixas de refrigerantes. Ele era um homem de cerca de 35 anos, com uma aparência física forte. Minha mãe ficou diante dele e o esbofeteou duas vezes com força e sonoramente alto, nas duas bochechas, ao mesmo tempo gritando: “VOCÊ É UMA PESSOA ABUSADA E CANALHA”. Agora você entra no caminhão e volta, assim como fez com minha filha  que sairá pela rua antes que voltes a entrar.

O repartidor atônito, meio surpreendido, meio assustado, subiu na cabine do seu caminhão e deu marcha a ré. Em seguida minha irmã saiu da rua com seu utilitário, enquanto minha mãe largando chispas pelos olhos regressou à casa presa de descarga de adrenalina e furiosa pelo abuso daquele homem.

Minha mãe que era uma pessoa extraordinariamente carinhosa e   boa teve naquela ocasião uma irada reação contra o que considerou um insuportável abuso contra uma jovenzinha condutora, ademais por ser sua filha.

Tudo o que anteriormente os contei, hoje é em homenagem a minha querida mãe no quinto aniversário  de seu falecimento, quando contava 94 anos de idade.

O sonho interminável

O

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

    A cidade de Ocaña, na província de Toledo, é uma pequena cidade cheia de história, refletida em sua praça principal  com pórticos, suas igrejas e conventos monumentais, suas casas ancestrais e seus luxuosos palácios antigos. Maria, minha falecida sogra, que descanse em paz, nasceu e foi criada nesta cidade. Ela era uma mulher com uma grande inteligência natural, e com grande graça quando se tratava de contar as experiências de sua juventude, como a história da criança inquieta que dormiu tranquila por 24 horas seguidas.

  O menino teria cerca de 5 anos de idade na época. Ele era o mais jovem de 4 irmãos de uma família de Ocaña bem estabelecida financeiramente, e cuidado como seus irmãos e irmãs haviam sido antes, pela Sra. Carmen.

O nome do menino era Angel, mas na realidade ele não era um grande anjo. Hoje diríamos que ele era uma criança hiperativa, mas em sua época costumavam dizer que ele era uma "cauda de lagarto", aludindo que gira e se move em todas as direções, o apêndice do réptil, quando ele é separado de seu corpo. Carmen, que trabalhou como interna na mansão, foi a que mais sofreu com a hiperatividade do garotinho.

O garoto fazia todo tipo de travessuras que você possa imaginar. Um dia ele misturava sal no pote de açúcar, outro dia ele adicionava água ao pote de vinho sobre a mesa, no dia seguinte era no leite que ele despejava a água. Um dia ele esmagou algumas das pimentas mais fortes e as adicionou à panela onde o cozido estava sendo feito. O anjinho era imperdível.

   Para completar, à noite ele dormia no quarto de Carmen, enquanto seus pais dormiam pacificamente em outro quarto. Angel não dormia nem mesmo à noite, porque acordava chorando e, é claro, também não deixava Carmen dormir, que se encontrava exausta com suas muitas tarefas diárias de cuidar da casa e das quatro crianças.

  Um dia, surpreendentemente, a criança não acordou pela manhã.    Aparentemente, a criança estava bem, só parecia estranho que estivesse dormindo tanto. Quando chegou o meio-dia e Angelito ainda dormia tranquilamente, seus pais perguntaram a Carmen por que a criança não se sentava para comer com todos à mesa da família. Ela lhes disse que ele ainda estava dormindo e que havia dormido a manhã toda. Os pais ficaram surpresos, conhecendo o caráter da criança. Imediatamente chamaram Don Amancio, o médico de família, para vir até a casa com urgência e examinar a criança. O médico o fez, e não encontrou sintomas de doença na mesma. Ele recomendou que a criança fosse deixada para dormir e que se veria quando acordasse à tarde.

  Eles o fizeram, embora com receio. Mas aconteceu que por volta das 20 horas, a criança ainda estava dormindo profundamente e os pais ficaram muito alarmados e começaram a preparar uma viagem no carro da casa, com a criança, para levá-la ao Hospital em Madri.

  Naquele momento, Carmen, que de outra forma adorava a criança, confessou que com o leite de chocolate que ela havia preparado antes de colocá-lo na cama, havia misturado um pouco de pó de semente de papoula, para ver se ela conseguiria descansar naquela noite, e agora ela chorava de medo de que "meu filho", como ela o chamava, não acordasse.

  Mas, enquanto estavam nisso, ouviram as vozes que Angelito começou a proferir, proclamando que estava muito faminto. E aqui temos a todos correndo para que a criança coma e satisfaça sua fome.

  Nota: Os frades dominicanos do Convento de Santo Domingo de Ocaña eram missionários no continente asiático e de lá, trouxeram para usos medicinais, a semente de papoula, que minha sogra, Sra. Maria, chamou de papoula real, e que produziam lindas flores brancas e quando perdiam suas pétalas, suas cabeças permaneciam nas pontas dos caules,  dentro dos quais se  continha o látex branco de onde o ópio está incluído.

 Por muitos anos, eu não sabia o que realmente eram essas plantas, mas as tive plantadas nas jardineiras das janelas do meu terraço em Zarzaquemada, Leganés, por causa das belas flores que produziam.

 

O ovo

O

Silvia C.S.P. Martinson

 
Há coisas que por incrível que pareça às vezes voltam à memória e não tens ideia do por que.
Estava conversando outro dia com um amigo escritor, que me narrava fatos de sua infância os quais me pareciam importantes e dignos de serem contados em uma estória e foi o que lhe sugeri.
E, eis que, não sei por que voltaram a mim lembranças de fatos que aconteceram quando eu era muito pequena e talvez na hora em que ocorreram deixaram em meu cérebro marcas tão profundas, que sem dar-me conta lá permaneceram adormecidas até aquele momento. Provavelmente eu teria três ou quatro anos quando aconteceu.
 
Fato este que ficou registrado nos anais da família em uma foto que, depois de tantos anos, ainda guardo.
 
Vou contá-lo, agora, conforme presenciei e vivenciei então.
 
Não sei porquê, nem como, meus pais compraram uma rifa de um ovo de chocolate que seria sorteado na Páscoa.
Pois das poucas coisas que em sorteio meus pais ganharam na vida, a não ser o que adquiriram com seu trabalho, foi este ovo de Páscoa.
 
Ele foi confeccionada à época pela grande e conhecida, em minha cidade, fábrica de doces, balas e chocolates Neugebauer, fundada por imigrantes europeus em 1891 chamados: Franz Neugebauer, Max Neugebauer e Fritz Gerhardt com o nome de Neugebauer Brothers & Gerard Company . A primeira fábrica de chocolates no Brasil.
 
Conheci essa indústria quando estudava e cursava o 2º grau na escola Cãndido José de Godói localizada no bairro então denominado de 4º Distrito.
 
A fábrica era imensa e nela trabalhavam muitíssimos empregados, inclusive vizinhos de nossa família e amigos de meu pai.
 
Lembro ainda que, por muitos anos, desses amigos recebíamos, seguidamente, balas e chocolates que eram distribuídos aos empregados por estarem um pouco avariados, o que impossibilitava sua venda no varejo.
 
Bem, voltando a história do ovo, por incrível que pareça, meus pais foram sorteados com o prêmio e o receberam em casa numa grande caixa de papelão embrulhada em papel celofane que permitia ver seu conteúdo.
 
Para nós era grande, era enorme, era bonito!
Um amigo de meu pai e seu compadre que considerávamos como tio e o chamávamos assim, tirou a foto para nós e para a posteridade, onde estamos minha irmã, o ovo e eu.
 
Pois bem, na Páscoa, minha mãe partiu o ovo, lembro que a casca do chocolate era muito grossa e tinha que ser cortada em pequenos pedaços para que pudesse ser comida.
O ovo era totalmente recheado de bombons e balas de diversos sabores.
 
Nossos olhos de crianças arregalaram-se face a tantas guloseimas oferecidas.
 
Não lembro o quanto comi. Deve ter sido muito, porque fiquei doente e acamada, penso, por alguns dias.
 
Só lembro de que, deitada na cama, pedi a minha mãe mais chocolate ao que ela me alcançou um pedaço não muito grande e disse:
- Não tem mais chocolate! O ovo acabou! Terminou! Hoje verificando a foto concluo que não era verdade a sua afirmativa. Ela o fez para que não ficássemos doentes de tanto comer doces.
 
Entretanto, creio, minha mãe e meu pai devem ter comido por muito tempo ainda e escondidos de nós o famoso e indescritível...
Ovo de Páscoa.
 
Agora, depois de tantos anos, aquele último e inolvidável pedaço de chocolate me sabe na boca, ainda, ao gosto de ausências e de tempos que não voltam mais.

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