O ovo

O

Silvia C.S.P. Martinson

 
Há coisas que por incrível que pareça às vezes voltam à memória e não tens ideia do por que.
Estava conversando outro dia com um amigo escritor, que me narrava fatos de sua infância os quais me pareciam importantes e dignos de serem contados em uma estória e foi o que lhe sugeri.
E, eis que, não sei por que voltaram a mim lembranças de fatos que aconteceram quando eu era muito pequena e talvez na hora em que ocorreram deixaram em meu cérebro marcas tão profundas, que sem dar-me conta lá permaneceram adormecidas até aquele momento. Provavelmente eu teria três ou quatro anos quando aconteceu.
 
Fato este que ficou registrado nos anais da família em uma foto que, depois de tantos anos, ainda guardo.
 
Vou contá-lo, agora, conforme presenciei e vivenciei então.
 
Não sei porquê, nem como, meus pais compraram uma rifa de um ovo de chocolate que seria sorteado na Páscoa.
Pois das poucas coisas que em sorteio meus pais ganharam na vida, a não ser o que adquiriram com seu trabalho, foi este ovo de Páscoa.
 
Ele foi confeccionada à época pela grande e conhecida, em minha cidade, fábrica de doces, balas e chocolates Neugebauer, fundada por imigrantes europeus em 1891 chamados: Franz Neugebauer, Max Neugebauer e Fritz Gerhardt com o nome de Neugebauer Brothers & Gerard Company . A primeira fábrica de chocolates no Brasil.
 
Conheci essa indústria quando estudava e cursava o 2º grau na escola Cãndido José de Godói localizada no bairro então denominado de 4º Distrito.
 
A fábrica era imensa e nela trabalhavam muitíssimos empregados, inclusive vizinhos de nossa família e amigos de meu pai.
 
Lembro ainda que, por muitos anos, desses amigos recebíamos, seguidamente, balas e chocolates que eram distribuídos aos empregados por estarem um pouco avariados, o que impossibilitava sua venda no varejo.
 
Bem, voltando a história do ovo, por incrível que pareça, meus pais foram sorteados com o prêmio e o receberam em casa numa grande caixa de papelão embrulhada em papel celofane que permitia ver seu conteúdo.
 
Para nós era grande, era enorme, era bonito!
Um amigo de meu pai e seu compadre que considerávamos como tio e o chamávamos assim, tirou a foto para nós e para a posteridade, onde estamos minha irmã, o ovo e eu.
 
Pois bem, na Páscoa, minha mãe partiu o ovo, lembro que a casca do chocolate era muito grossa e tinha que ser cortada em pequenos pedaços para que pudesse ser comida.
O ovo era totalmente recheado de bombons e balas de diversos sabores.
 
Nossos olhos de crianças arregalaram-se face a tantas guloseimas oferecidas.
 
Não lembro o quanto comi. Deve ter sido muito, porque fiquei doente e acamada, penso, por alguns dias.
 
Só lembro de que, deitada na cama, pedi a minha mãe mais chocolate ao que ela me alcançou um pedaço não muito grande e disse:
- Não tem mais chocolate! O ovo acabou! Terminou! Hoje verificando a foto concluo que não era verdade a sua afirmativa. Ela o fez para que não ficássemos doentes de tanto comer doces.
 
Entretanto, creio, minha mãe e meu pai devem ter comido por muito tempo ainda e escondidos de nós o famoso e indescritível...
Ovo de Páscoa.
 
Agora, depois de tantos anos, aquele último e inolvidável pedaço de chocolate me sabe na boca, ainda, ao gosto de ausências e de tempos que não voltam mais.

Sobre el autor/a

Silvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022)
Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

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