Um senhor cantor de tangos

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Alvaro de Almeida Leão

Uma sociedade beneficente e recreativa social de uma pequena cidade do interior está completando dez anos de bons serviços à comunidade. Nada mais justo do que comemorar com orgulho e satisfação essa tão auspiciosa data.

Além dos convites especiais para autoridades locais constituídas, foi elaborado um boletim da programação dos festejos, produzido e assinado pelo atual secretário-geral da entidade - sempre bem-vindo por ser repleto de inteligente e fino humor - dirigido para a digna e honrada casta de associados.

Entre assuntos sérios e outros nem tanto, registramos os seguintes constantes do boletim:
– Na parte da manhã, alvorecer com salva de vinte e um tiros de canhões; como não dispomos dessas armas, vamos mesmo de revólveres, garruchas, pistolas, espingardas, bacamartes e similares, desde que funcionem;
– Apetitoso café da manhã, estilo colonial, não faltando todas as melhores iguarias, que nem vou mencionar quais, para não provocar momentos de água na boca. Local: cada um na sua casa. Por decisão unânime da nossa diretoria, será sorteada uma casa de um dos nossos associados na manhã do aniversário, para que in loco o digno secretário-geral, que este subscreve, prestigie, com sua honrada e digna presença, tão incomparável desjejum;
– Missa campal ecumênica, às 10h00, ocasião em que iremos inaugurar as novas benfeitorias realizadas na nossa sede social; atividades culturais e esportivas constantes de apresentação do nosso coral, concurso de anedotas mais ou menos de salão (atenção mais para mais do que para menos), declamações de poesias, torneio de bochas e o tradicionalíssimo GRENAL, cujo vencedor será, evidentemente, o time deste nobre secretário-geral;
– Ainda sobre o GRENAL: o gol mais bonito e o mais perdido. Importante: atletas do futebol com planos de saúde e do SUS em dia. Motivo: as seguidas contusões durante o jogo, por conta das nossas reconhecidas ruindades no trato com a bola;
– Em seguida, eleições da rainha da festa e princesas;
– Ao meio-dia, após o almoço de confraternização, haverá a entrega de troféus e medalhas aos participantes vencedores. Proibida a entrada de pessoas no trago, porém sair borracho pode;
– À tarde, chá exclusivo para senhoras e senhoritas, com desfiles de modas e sorteio de brindes. Atenção: fofocas livres, porém, não vale malhar os namorados, noivos e maridos. No salão de festas, haverá sistema eletrônico de escuta “clandestina autorizada”. Todo cuidado é pouco!... Quem avisa amigo é;
– Às 20h00, apresentação no nosso auditório de um cantor ou cantora, que estamos contratando, através de anúncios em jornais, aliando qualidade e preço, para, com o nosso conjunto regional, proporcionar momento de verdadeiro deleite musical;
– A partir das 23h00, inesquecível baile de aniversário, com música ao vivo e com hora para começar. Para terminar, como sempre, somente quando o sol estiver a pino;
– Aos felizes participantes das nossas festividades solicita-se a espontânea doação de um quilo de alimento não perecível, por pessoa, a ser distribuído às famílias carentes do nosso município (observação por oportuna: maneirar quanto à quantidade de sal ofertada, na festa anterior foi além da conta, entenderam a mensagem?);
– Atenção, atenção, muita atenção! Se chover pela manhã, as comemorações serão realizadas em conjunto com as da tarde. Porém, se chover à tarde, todas as confraternizações serão pela manhã. Entenderam a última parte dessa comunicação? Não?!... Nem eu. Mas enfim, já escrevi isso e, com a devida vênia, permito-me não voltar atrás;
– Obrigado a todos e até o próximo glorioso e inesquecível primeiro sábado do mês vindouro, ocasião em que comemoraremos nossa magna data.

Entretanto, Adalberto Luvielmo (baita nome de cantor de tangos, não é mesmo?), morador de uma cidade do outro extremo do estado, toma ciência, através do jornal, do anúncio daquela sociedade beneficente e recreativa social.

Obtém maiores detalhes pelo site da sociedade: cachê de pequeno valor, em virtude das diminutas possibilidades financeiras da sociedade; o cantor ou cantora deverá chegar próximo da hora de se apresentar e voltar no mesmo dia, pois não será franqueada hospedagem; após a apresentação, será servido um PF (o conhecido prato feito) no capricho, acompanhado de uma ceva geladinha.
Mesmo sem perspectiva de boa grana, Adalberto Luvielmo nem precisou pensar duas vezes, candidatou-se afirmando com todas as letras maiúsculas ser UM SENHOR CANTOR DE TANGOS. Ganhou, digamos assim, a concorrência artística.

Também pudera, escreveu só garganteando fanfarrices (entendam-se inverdades): que se apresentou em terras portenhas como cantor de tangos; não disse que esse fato se deu no ônibus que faz a linha Brasil-Argentina com um coro de vozes de umas trinta pessoas, seus colegas de excursão; que só não mandava um CD que gravara por ter-se esgotado em uma semana; que está em negociação com gravadoras, e que, à melhor proposta que receber, fechará contrato na hora.

Para impressionar, e foi o que realmente aconteceu, afirmou que irá extasiar a seleta plateia com sua maviosa voz, ao interpretar os famosos tangos: El dia que me quieras, A media luz, Palomita Blanca, Garufa, Volver, Adios muchachos, Caminito, Por una cabeza, Aquel tapado de armiño, La cumparsita, Mano a mano, Soledad, Esta noche me emborracho, Silencio, Cuesta abajo e Mi Buenos Aires querido.

Seu preço era lá em baixo simplesmente por amor à arte. Desde jovem, Adalberto Luvielmo é vidrado em tangos. Possui filmes, jornais, revistas e livros que envolvem o tema tangos, além de todos os discos que foram lançados desde os de vinil aos posteriores CDs e DVDs dos atuais e dos mais famosos intérpretes de tangos de todos os tempos.

Adalberto Luvielmo é um cantor assumido de banheiro, nada além. Suas tentativas de ser cantor de tangos, inicialmente em programas de calouros e depois contratando professores, não deram resultados. Faltam-lhe todas as condições. Deveria aceitar que não dá para cantor.

São 18h00 do dia do aniversário da sociedade. Um dos assuntos principais até o momento era a parte jocosa do boletim da programação.

Até agora, só alegria: alvorecer, café colonial, missa campal, atividades culturais e esportivas, almoço, chá da tarde. O time de futebol do secretário-geral nem perdeu nem ganhou; o resultado do GRENAL foi quatro a quatro.

Próximo da chegada do cantor de tangos contratado, o Adalberto Luvielmo, é que mora o perigo de alguns dissabores acontecerem.
Às 18h30min desembarca na cidade no ônibus de linha, o Adalberto Luvielmo. Boa viagem, ótima recepção, reportagem da rádio local, entrevista ao jornal, fotos, tapinhas nas costas e até alguns autógrafos.

Questionado se gostaria de ensaiar antes com o conjunto, respondeu que não é necessário. Ao saber que o conjunto já está de posse da relação e ordem de apresentação dos tangos, só resta aguardar a fantástica apresentação e partir para os braços da galera.

Casa cheia, é chegado o dia “D”, a hora “H”.
Primeiro número: aquele enorme fracasso, como não poderia ser diferente. O conjunto acelerando, para chegar junto, outras ao contrário sem sucesso. Adalberto Luvielmo desafinado e fora de ritmo que dá gosto.

Os músicos meneavam suas cabeças em negativa, reprovando assim tão malfadado acontecimento. Estavam envergonhados. Após o término da primeira agonia, assim a classifiquemos, mais da metade da plateia se manda dali aos palavrões e fula da vida. Entre eles, o ecônomo da sociedade, afirmando que o PF regado a geladinha já era. O maldito que vá reclamar a quem quiser.

Adalberto Luvielmo, sentindo e estava na cara que nem um pouco agradara, vai até a presença do conjunto musical e segreda:
– Passemos para a quinta música.

Em seguida a esse novo martírio, todos se retiram menos um. Adalberto Luvielmo ainda dá um tempo, para ver se o cara também se manda e... nada.

Faz sinal para o conjunto que irá cantar (cantar?) o último número. E assim começa a mil, sem dar tempo a ele próprio e ao conjunto de respirarem direito.

Missão cumprida, Adalberto Luvielmo vai ao encontro do seu único espectador, a fim de agradecer tanta consideração.
– Eu sou o Adalberto Luvielmo, muito prazer. Com quem eu falo?
– Delegado Aldo Leão.
– Pô, seu delegado, o senhor gosta de tangos pra caramba!
– De tangos, eu realmente gosto.
– Agradeço ao senhor por ter me prestigiado, ficando até o final do recital.
– Não tem nada que agradecer. Aqui cheguei emocionado por amor à nobre arte do tango. Porém, agora, no final, permaneci por estrito dever de ofício.
– Desculpe, mas o senhor é delegado da UBC, da SBAT?
– Não.
– Da SBACEM, do INCP?
– Também não. Ainda não foi dessa vez.
– Delegado de que então?
– De polícia e, a pedido do presidente da nossa sociedade, que irá registrar uma queixa contra o senhor, convido-o para irmos nós três até o plantão policial a fim de que o senhor, que abusou de todos nós e gosta tanto de empregar siglas, assine um TC.
– TC?... O que vem a ser isso, seu delegado?
– Termo circunstanciado. Queira nos acompanhar para aprender a nunca mais tentar enganar os outros. Positivo?
– E tem outro jeito?
– Não.
– Por falta de conselhos é que não foi. Confesso: sempre fui um egocêntrico. Errei em não me utilizar da autocrítica. Fazer o quê? Não deu, não deu. Peço desculpas pelos transtornos. Aprendi a lição. Não acontecerá outra vez. Prometo.
– É louvável que o senhor tenha percebido o seu erro e até esteja pedindo desculpas. Reconhecer um erro é o princípio da evolução pessoal. Que não fique só na promessa.
– Com toda a certeza, não. E mais, como sabemos, o fato de não reconhecermos um erro nos impede de crescer e amadurecer. Não é mesmo?
– Claro que sim. Mas, está ficando tarde, vamos então?
– Antes, podemos ir até a rodoviária? Preciso comprar minha passagem de volta.
– Certamente. Posso lhe alcançar “alguns” para despesas?
– Não, muito obrigado, não preciso.
– Eu sinto, independente do que aprontou aqui, que o senhor é uma boa pessoa. Espero que de agora em diante tenha juízo o suficiente para nunca mais cair numa roubada dessas.
– Ah, quanto a isso, não tenha a menor dúvida. Errar é humano, continuar errando é burrice. Mancada igual a essa, nunca mais, nunca mais mesmo!

Sobre el autor/a

Álvaro de Almeida Leão

Nascido em Campina Grande - Paraiba; Gaúcho por adoção. Aposentado do Banrisul. Formado em Administração de Empresas e em Ciências Contábeis pela UFRGS. Autor dos livros "Ensaios" e " Humor Para o Mau Humor " Participou do Jornal RSletras , orgão oficial do Instituto Cultural Português . Faz parte de Antologias de Entidades Culturais do Estado. Sócio efetivo da Sociedade Partenon Literário e de que faz parte da sua Diretoria; Sócio do Instituto Cultural Português; da Casa do Poeta Rio-Grandense e da Casa do Artista Caponense de Capão da Canoa RS;. Acadêmico da Academia Internacional de Artes Letras e Ciências de Cruz Alta RS, da Academia de Letras do Brasil Seccional do RGSul e da Academia Luso-Brasileira de Letras do RGSUL. Honrarias: Diploma Honra ao Mérito; Medalhas; Troféu Aldo Coimbra outorgado pela Associação dos Funcionarios Aposentados do Banrisul - Escolhido pela Editora Revolução Cultural, como o Escritor Homenageado do Ano da Feira do Livro de Porto Alegre RS em 2019 ; Comendas Caldre e Fiao do Partenon Literário e Comenda Personalidade Internacional 2023 da Academia Internacional de Artes, Letras Ciências de Cruz Alta RS; Participa anualmente do Concurso Literário da FECI CAPOLAT da Confreira Marinês Bonacina. Atualmente é bi campão do Concurso FECI CAPOLAT, Ouro em 2022 e Troféu em 2023.

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