A velha faca

A

Silvia C.S.P. Martinson

Era uma vila pequena encravada nas montanhas da Espanha. Chamavam-na Pueblo.
 
Suficientemente grande para seus moradores que se contavam por mais ou menos 650. Pequena para ser considerada como uma cidade, todavia mantinha seu espírito de isolamento e privacidade tão apreciado por seus habitantes.
 
No entanto, tinha lá os seus encantos e conforto e os habitantes consideravam-se felizes por morar ali.
 
Raramente vinha algum “forasteiro” que é como eles chamavam os visitantes que porventura viessem para conhecer a vila.
 
Havia nela um castelo muito antigo feito ainda sob a dominação árabe. E este é que fazia com que, apesar de estar em ruínas, atraísse a atenção de algum visitante.
 
Este povoado tinha lá suas comodidades tais como: padaria, mercearia, açougue e até um pequeno mercadinho que abastecia a população local.
 
Sem contar ainda que possuía uma igreja medieval aonde o cura vinha de fora a rezar a missa todos os domingos. A igreja era bem conservada. Consequentemente tinha também um cemitério para enterrar os que morressem ali, pois que trasladar o corpo para outras cidades, além de caro o acesso por estradas de terra tornava a empreitada mais difícil.
 
O hotel então existente era pequeno mas aprazível para receber os visitantes, a comida era boa e os quartos bem arejados e limpos.
 
Os moradores todos se conheciam, desde o dono do mercadinho até o açougueiro, este último proveniente de uma família tradicional no ramo de cortar de fornecer carne àquele povo.
 
A população local estava ficando cada vez mais velha e exígua. Os jovens não queriam mais viver ali e buscavam as grandes metrópoles para estudar, trabalhar e algumas vezes constituir família.
 
Os que ali permaneceram se condicionaram a casar com as poucas raparigas locais quando não o faziam dentro da própria família, casando primos com primos, sobrinhas com tios, etc.
 
Rafael de quem vamos tratar e que na intimidade da vila onde nasceu e se criou era por todos chamado de Rafa.
 
Descendia de uma família conhecida por seu ofício, o que sói acontecer muito na Europa. Eles eram por profissão e herança açougueiros.
 
Tinham no centro da vila um prédio que transformaram em açougue desde os tempos de seus bisavós.
 
Neste açougue eram expostos e também conservados os mais diversos tipos de carnes como: cordeiros e cabritos, que criados eram criados em larga escala nesta localidade, haja vista que a formação de pastos e a serra apropriava-se a tal criação. Havia também em menor escala a criação de galinhas poedeiras e para abate, bem como, gado leiteiro com que se abastecia de leite e carne a população.
 
Assim que Rafael se criou vendo e aprendendo a arte de cortar, desossar, separar as partes nobres das mais inferiores a fim de que, conforme o poder aquisitivo de cada um, tudo fosse vendido e consumido pela população.
 
Outra coisa que aprendeu foi manter o seu ambiente de trabalho impecavelmente limpo visando a não contaminação das carnes.
Igualmente, a arte de amolar facas também lhe foi transmitida, fazendo com que, bem afiadas, elas facilitassem seu trabalho.
 
Quando morreu seu pai entre os bens que recebeu como herança, por ser o primogênito da família, lhe foi passada a melhor e mais antiga faca do açougue.
 
Esta faca era tratada com carinho e respeito desde os seus ancestrais. Era considerada uma preciosidade dada a qualidade de seu aço, forjado na Alemanha, que apesar de ser afiada constantemente nunca perdeu sua forma original, tampouco sua capacidade de corte.
 
Esta faca passou de geração em geração sendo utilizada. Rafael pretendia passá-la a seu filho mais velho quando se aposentasse.
 
No entanto, o rapaz não quis seguir com a profissão do pai, preferindo ir à metrópole estudar e se tornar engenheiro.
 
Estando então Rafael já velho e cansado resolveu vender o açougue, mas não a faca.
Quando seu filho voltou para casa Rafael tentou lhe dar a faca ao que ele se recusou a recebê-la, dizendo que em sua profissão ela era absolutamente desnecessária.
 
Neste momento algo estranho aconteceu, o aço da faca brilhou intensamente, ouviu-se então um estalido e ela simplesmente partiu-se ao meio.
 
Rafael quedou-se profundamente perturbado, uma lágrima lhe rolou pelo rosto e com as duas metades na mão pediu que o dia em que morresse fosse com ele enterrada, em seu caixão, a faca.
 
E, alguns anos mais tarde, assim foi feito.
 

Sobre el autor/a

Silvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022)
Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

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