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Um dia diferente

U

Silvia C.S.P. Martinson

Caminhava pela rua quando e não sei bem porque, lembrei-me de um fato que ocorreu em minha infância.
 
Era dia 24 de dezembro. Dia de Natal.
Neste dia às 12 horas da noite o Papai Noel costumava deixar presentes debaixo da árvore de Natal. É o dia em que se comemora o nascimento de Jesus Cristo.
 
Em minha casa esta tradição sempre foi obedecida. E nas casas de meus vizinhos também.
 
Naquele tempo não havia lâmpadas próprias para enfeitar a árvore de Natal. Somente existiam bolas coloridas que eram de vidro ou cerâmica e se quebravam facilmente.
Várias vezes ao enfeitar a árvore com estas bolas as deixamos cair e se quebraram em mil pequenos pedaços.
 
Por muitos anos as tive guardadas como lembrança em minha casa.
 
As guirlandas de enfeite eram caras e feitas de papel alumínio quando prateadas, ou havia outras de papel tingido de verde e mais baratas.
 
Os enfeites luminosos se constituíam de pequenas velas de cera coloridas, que eram acesas com fósforos e se queimavam lentamente, proporcionando ao ambiente uma luminosidade bruxuleante que a todos encantava, apesar do perigo que ofereciam.
As ávores sempre eram pinheiros colhidos nas matas locais.
 
Nosso vizinho o senhor Osvaldo primava por fazer todos os anos uma bela árvore de Natal.
Pelo que me recordo, cada vizinho procurava fazer a sua mai8s bonita b que a dos outros, mais alta, mais iluminada, mais enfeitada e com um lindo presépio em sua base.
 
Este presépio constituía-se de imagens de cerâmica representando o nasciento do menino Jesus, sua família, o estábulo onde nascera, os reis magos e a paisagem ao seu derredor.
 
Havia entre os vizinhos e isto hoje me parece uma quase competição, não manifestada, porém evidente, de quem fazia a árvore mais bonita daquela rua. Até porque depois da meia noite tinham o hábito de visitar a casa de um e de outro para os devidos abraços e cumprimentos pela data natalícia, quando então admiravam e elogiavam, não sem um pouco de inveja, os trabalhos executados.
 
As árvores eram adquiridas em determinadas ruas onde ficavam expostas por vendedores que ali se postavam a fim de vendê-las.
Lembro-me que os preços variavam de acordo com o porte e beleza da árvore exposta.
Os homens da vizinhança saiam cedo para comprá-las.
 
As mulheres se detinham nas cozinhas a preparar a ceia de Natal, que normalmente se constituía de um peru assado acompanhado de saladas, arroz e frutas cristalizadas por aqueles que as podiam comprar.
 
A nós crianças, cabia-nos ajudar a enfeitar a árvore o que nos dava muita alegria quando solicitados a fazê-lo.
 
Pela tarde tomávamos banho e nos arrumávamos para a tão esperada ceia.
Esperada sim, porque depois dela éramos induzidos a sair para a Missa do Galo que se dava as 12 horas da noite.
 
E para “surpresa” de todas as crianças de minha época o Papai Noel já havia passado por nossas casas e deixado ao pé da árvore um presentinho que variava, hoje sei, de qualidade conforme as posses de cada família.
 
No entanto, lembro ainda, daquele Natal em especial em que o senhor Osvaldo preparou uma grande árvore e nela colocou muitas velas acesas a arder e foram cear na sala de janta. E ali estavam quando sentiram um forte cheiro de queimado.
 
Dirigiram-se à sala onde estava a dita árvore e esta simplesmente ardia em chamas já altas queimando quase tudo a sua volta.
A casa era de madeira, as chamas já alcançavam o teto que, felizmente, tinha um “pé direito” muito alto.
 
Com grande esforço toda família e vizinhos ajudaram a apagar o fogo.
 
O Natal se quedou triste para todos os amigos da vizinhança que de uma forma ou outra auxiliaram esta família pelo menos no conforto espiritual, já que os festejos para eles estavam acabados.
 
Eram meus amigos de infância, os pais trabalhavam muito e eram pessoas que se esforçavam para dar o sustento e educação aos seus filhos.
E como tudo na vida...
Assim se passou.
 

Dar un passeio

D

Pedro Rivera Jaro

Traducido al portugués por Silvia C.S.P. Martinson

Antes do início da guerra civil espanhola em julho de 1936, meu pai, Félix, tinha 13 anos de idade. Quando eu era criança ele me contava em segredo, porque naquela época todas as coisas relacionadas à República eram proibidas, como, à noite, as vans chegavam aos campos de trigo e cevada perto do Barrio de la Perla e Colonia Ferrando, no sul de Madri, que, naquela época, pertenciam à cidade de Villaverde, onde viviam, carregando as pessoas que iam executar, com um ou vários disparos. O que eles chamavam de "dar-lhes a carona".

Meu pai e seus amigos que moravam por perto, observavam tudo em silêncio, deitados no chão, escondidos para que não pudessem ser descobertos. Então, pela manhã, minha mãe, que tinha a mesma idade que meu pai e que vivia no vizinho Bairro de San José, ao lado da Colônia Popular Madrileña, que antes se chamava Colônia de Alfonso XIII, e que hoje é a Colônia de San Fermín, caminhava ao longo das calçadas dos campos à procura dos corpos daqueles que haviam sido baleados e que haviam ouvido à noite.


- Olhe, aqui está um, e ali vejo outro.
- Olha, eles puseram um punhado de espigas de milho em sua boca, como se ele fosse comê-las.

Foi outra humilhação, comparando uma pessoa a uma mula ou a um burro, por comer a mesma comida.

Em outra noite, quase anoitecendo, em uma terra onde os detritos estavam sendo descarregados e transformados em pilhas sucessivas, eles se esconderam quando notaram a aproximação de uma van. As pessoas na van pararam o veículo e cinco pessoas saíram da mesma. Três dessas pessoas estavam carregando pistolas em seus respectivos coldres. Haviam outros dois, um estava vestido de macacão escuro, e como o quinto estava desarmado. O homem de macacão escuro não parava de gritar, uma e outra vez:
- Só quero que me diga por que vai me matar?
Depois de perguntar várias vezes, um dos homens com uma arma lhe respondeu:
- Você se lembra da dança que fez em sua garagem no dia de San Isidro, e quando eu quis entrar, você não me deixou? O de macacão respondeu:
- Sim, eu me lembro.
E aquele que tinha a arma respondeu em voz alta:
- Bem, é por isso que vamos matá-lo agora.

Então aquele com o macacão escuro lhe deu um forte empurrão com as mãos e o jogou para trás e imediatamente começou a correr através das pilhas de terra e para longe dali, na direção do lugar onde meu pai e seus amigos estavam escondidos.

Os homens com as armas começaram a atirar na tentativa de abater o homem em fuga, sem sucesso, mas meu pai me disse que eles viram os flashes de cada tiro na escuridão da noite em avanço, e que eles ouviram as balas assobiando sobre suas cabeças e aterrorizados eles colaram seus corpos à terra e permaneceram imóveis.

Depois de um tempo, aqueles homens tinham saído na van e o silêncio caiu. Meu pai e seus amigos se levantaram, ainda assustados e partiram para casa. Pensei muitas vezes sobre a injustiça que eles queriam cometer contra aquele homem que conseguiu escapar. Também pensei que quando a guerra terminasse, aquele homem, se ainda estivesse vivo, buscaria vingança sobre aquele que o quisera matar?

A volta

A

Silvia C.S.P. Martinson

Quando estudava à noite na Universidade para tornar-me advogada, costumava voltar à casa bem tarde pois que as classes normalmente acabavam por volta das 10,30 ou 10,40horas.
 
Como tantos alunos também retornava à casa de ônibus, pois que a Universidade se localizava a mais ou menos 30 ou 40 km em uma cidade chamada São Leopoldo que distava da capital onde eu residia.
 
Saíamos juntos e lotávamos o último ônibus que ficava a esperar-nos ao lado da Faculdade.
 
Procurávamos sentar-nos juntos no coletivo aqueles que desceriam no mesmo ponto.
 
Como precisava ainda tomar outra condução para ir a minha casa isto me obrigava a descer no centro da capital e cruzar por ruas escuras, onde as prostitutas faziam seu “metier”, até chegar ao abrigo onde se encontrava o coletivo que me levaria ao meu destino.
 
Antonio a Vera eram sempre os companheiros de viagem. Quando não era um era o outro.
Antonio estava no último ano da faculdade assim como eu, porém ele na Economia e Vera juntamente comigo na de Direito. Éramos inseparáveis.
 
Ele um moreno carioca muito bonito e simpático já era casado, recém-casado com uma garota bonita, filha de pais portugueses e vinda do norte de nosso país.
 
Vera e eu éramos solteiras, porém já compromissadas com nossos futuros maridos.
Em uma dessas noites de retorno tivemos duas experiências inesquecíveis.
 
A primeira deu-se quando Antonio e eu chegamos ao centro da cidade e, como sempre, precisamos atravessar as ruas onde se localizavam os prostíbulos.
 
Caminhávamos rapidamente evitando as “senhoritas” que ali já se encontravam quando, uma delas seminua se adiantou e me empurrou contra uma parede dizendo-me que ali eu não poderia “trabalhar”, porque estava lhe fazendo concorrência desleal. Ao que de imediato se agarrou ao braço de Antonio tentando conduzi-lo para o seu “habitat”.
Antonio que era um enorme brincalhão começou a rir em alto e bom som e com agilidade desvencilhou-se dela, pegou a minha mão com força e começou a correr fugindo dali.
 
Chegamos à parada do ônibus que me cabia esbaforidos e ao mesmo tempo em que entre risos comentávamos o ocorrido. Após o que cada um seguiu seu caminho.
 
Hoje ele vive ao norte de nosso país, está velho. Mantemos a amizade de mais de trinta anos e penso que talvez ainda recorde o que se passou naquela noite.
 
O outro fato aconteceu com Vera e eu quando retornávamos uma noite pelo mesmo caminho. Não havia outro por onde pudéssemos cruzar para ir ao nosso destino.
Vera, era muito bonita e vistosa, de um gênio forte e sem peias na língua. Quando tinha que responder mal a uma pessoa que porventura ousasse lhe agredir verbalmente, o fazia de forma muito rápida e inteligente. Era incrível a versatilidade e criatividade dela.
 
Tornou-se uma grande advogada.
Bem, sem mais delongas vamos contar o que se passou em outra noite com nós duas.
Descemos do ônibus e dirigimo-nos às malfadadas ruas.
 
Uma “senhorita” nos interpelou, interrompendo nossa caminhada, porque estávamos ali?
 
Furiosa nos ameaçou com um punhal - penso que estava drogada – dizendo que as mulheres que poderiam estar ali eram as de sua “profissão” e que, portanto, nos ia apunhalar, ao que Vera rapidamente lhe dissuadiu dizendo que ela estava enganada.
 
Disse-lhe simplesmente – Não vês querida que não somos mulheres? Somos homens disfarçados procurando outros para fazer-nos companhia...
 
A prostituta surpreendida com tal resposta guardou o punhal e pôs-se a rir desmesuradamente.
 
Saímos rapidamente daquela rua rumo às conduções que nos levariam, depois de um dia árduo de trabalho e de uma noite de dedicação aos estudos às nossas casas e ao merecido descanso.
 
Até hoje me recordo com alegria daquele tempo e das boas e tantas experiências vividas.
De Vera nunca mais tive noticias.
A cidade mudou, bem como seus hábitos e costumes.
 
Os prostíbulos cerraram suas portas, as prostitutas de então se não morreram estão velhas e desgastadas.
 
As novas prostitutas já não circulam pelas ruas somente a noite, hoje fazem-no em dia claro e se comunicam, confortavelmente, por celular onde postam suas fotos mais sedutoras pela internet em páginas em que expõem a sua “profissão”.
 
Não esquecendo que com a disseminação das drogas e o livre acesso dos traficantes a estas mulheres, a policia também se tornou mais atenta, inclusive às vezes tendo de usar mais energia do que é legalmente permitido para dispersar estes agrupamentos altamente perniciosos.

ANtes da guerra – Meu AVÔ Pedro

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Pedro Rivera Jaro

Traducido al portugués por Silvia C.S.P. Martinson

Meu avô Pedro, antes do início da Guerra Civil, tinha acabado de pagar o terceiro caminhão que havia comprado. Ele sofreu o inconveniente de uma falsa acusação de ser um fascista, até provar que não tinha nada a ver com política.  Ele era um homem que nunca soube ler ou escrever, mas que no entanto conhecia os papéis de cada um dos veículos pela cor e o padrão das letras escritas neles.
 
Minha mãe e meu primo Joselín, quando lhes perguntei, quando eu era criança, qual era a marca dos caminhões que o avô Pedro possuía, me diziam que um Chevrolet e um  Ford eram americanos e um Pierce, francês. 
 
Quando a guerra irrompeu, a República requisitou os três caminhões de meu avô, sem se preocuparem como minha família sobreviveria sem as ferramentas com as quais eles ganhavam a vida. 
 
O marido de minha tia Felisa, meu tio Juanito, conseguiu se alistar como motorista de um dos caminhões a fim de controlar para onde o levavam e que vida ele trazia com ele. Esse caminhão, o Chevrolet, foi o único que no final da guerra foi recuperado de um ferro-velho, em ruínas, e como meu tio Juanito sabia de mecânica, ajudado por meu primo Joselín, reconstruíram o caminhão, buscando peças de outros caminhões amontoados nos ferros-velhos, e assim puderam começar a ganhar a vida novamente, após três anos infelizes de morte, destruição e ruína para o povo espanhol, que como sempre acontece, sem culpa das decisões dos políticos, são os que pagam o preço da ruína.
 
Com o surgimento dos militares contra a Segunda República Espanhola, a região ao sul de Madri, que naqueles anos pertencia a Villaverde, onde a família de minha mãe vivia na Colonia Popular Madrileña, que havia sido a Colonia de Alfonso XIII durante a Monarquia e agora se chama Bairro de San Fermín, e a família de meu pai vivia na Colonia Ferrando, formou-se uma frente de guerra e seus habitantes foram evacuados para a rua  Serrano, perto de Goya e outras ruas no centro de Madri.
 
Uma velha vizinha de minha família, Sra. Emilia Arias, esposa do tio Rivera e mãe de Polo, Eugenio, María, Guille, Pepa, Pedro, Emilita e outra garota cujo nome não me lembro, que era muito bonita e casada com Helios, muito bom jogador de futebol, me disse que meu tio Perico corria ao redor dos telhados quebrando as telhas, porque disse que preferia quebrá-las ele mesmo do que tê-las quebradas por bombas.
 
Por volta de 1962 mais ou menos, quando eu era um menino de 12 anos, estava brincando com meus amigos, e de repente foi feito um buraco no chão na Rua Fitero, que acabou se tornando uma velha trincheira da época da guerra, cheia de cartuchos de fuzil. Outro dia nos pomares um pouco mais abaixo, perto do rio, uma concha apareceu um obus quando as videiras estavam sendo cavadas, a dupla da Guarda Civil e alguns especialistas em explosivos vieram imediatamente detoná-la para evitar ferimentos pessoais.
 
Meu primo Joselín me disse que logo após o fim da guerra, quando ele tinha cerca de 10 anos de idade, eles pegavam todo tipo de projéteis que estavam deitados nas trincheiras, faziam uma pilha deles, e tiravam a pólvora de algumas balas, faziam um rastro e, abrigando-se, acendiam-na. De repente, todos os projéteis explodiam e fariam um tremendo rugido. Era assim que aquelas crianças, dos anos da fome, se divertiram.
 
Outro dia eles encontraram enterrada uma arca contendo os objetos de culto da igreja de nosso bairro, o cálice, a patena, etc., que havia sido enterrada antes da guerra, e imediatamente informaram aos guardas que vieram e a levaram para o pároco.
 
Um dia, meus amigos e eu estávamos cavando um buraco para brincar como se fosse uma garagem, com aqueles pequenos carros de madeira e papelão que tínhamos dos Reis Magos e minha mãe veio correndo e repreendeu-nos, porque exatamente onde estávamos brincando, havia uma bateria de artilharia e ela tinha medo que um projétil pudesse estar enterrado ali.
 
Eu conhecia o filho de Dona Lola, que estava sem um olho e um braço devido a uma explosão inesperada enquanto ele e seus amigos brincavam.
 
Quando os habitantes de Madri do Sul (Villaverde) foram evacuados, foram levados para o bairro de Salamanca, onde os proprietários de muitas das casas haviam fugido por medo de represálias de grupos de republicanos descontrolados, cujas ações violentas ocorriam todos os dias contra propriedades e pessoas acusadas de serem de direita, fossem ou não realmente de direita. As casas eram espaçosas e distribuíam para cada núcleo familiar um número de quartos de acordo com o número de pessoas no núcleo familiar, e a cozinha e os banheiros eram para o uso comum de todos aqueles que viviam em cada casa.
 
As casas estavam com os os móveis dos proprietários e me lembro de meu pai me dizer como meu avô Apolonio guardou todos os móveis da casa que haviam sido adjudicados à família em um quarto, e os trancou com um cadeado, que nunca foi aberto, até que o proprietário retornasse no final da guerra, mas contarei a vocês sobre isso mais tarde.
 
Durante a guerra, as pessoas que não tinham como combater o frio no inverno faziam lascas de seus móveis e os queimavam. Muitas árvores foram derrubadas naquela época porque havia necessidades essenciais a serem atendidas, como cozinhar ou aquecer as casas, e eles não tiveram outra escolha senão fazer isso dessa maneira.
 
Por acaso, minha família paterna e minha família materna estavam alojadas em casas a poucas portas de distância na mesma rua, a rua de Serrano. Isto foi o que minha mãe e meu pai me disseram, cada um do seu lado e ambos coincidindo. 
 
Os meninos que tinham idade suficiente para entrar nas fileiras foram enviados para lutar com o exército da República desde o primeiro momento, e aqueles que ainda eram muito jovens foram incorporados mais tarde, nas quintas que eram chamadas de Biberón e Chupete. Meu tio Perico, irmão de minha mãe, e meu tio Emeterio, irmão de meu pai que foi levado para as Montanhas Universais para lutar, se juntaram a eles. 
 
Meu tio Perico, que havia começado a tourear antes da guerra e que havia lutado duas touradas com o nome de Pedro Jaro El Arenerito, porque  trabalhava com o caminhão do meu avô, tirando areia do rio Manzanares e levando-a para os canteiros de obras, terminou sua carreira nas praças de touros e, de acordo com o que ouvi, ele era motorista do General Miaja. Claro que também ouvi dizer que ele estava lutando em Gandesa, mas não tenho certeza sobre isto ou sobre o General, porque eles não queriam falar sobre estas coisas, especialmente porque passaram por grande sofrimento após o fim da guerra, quando falsas acusações acusavam meu avô Pedro, ao irmão mais velho de minha mãe meu tio Lorenzo e ao meu tio Perico, de pertencer ao Socorro Rojo.
 
Minha mãe me disse que Lorenzo ficou doente do estômago por causa das pancadas que recebeu durante os interrogatórios, e que ele tinha fortes hemoragias, sangrando muito.
 
Quanto ao meu tio Perico, minha mãe também disse que durante muito tempo suas costas estavam cheias das marcas das chicotadas que ele recebeu durante os interrogatórios, quando lhe disseram para confessar onde ele havia escondido os Vermelhos, e ele respondeu: "Você pode me bater até a morte, mas eu não posso lhe dizer algo que eu não sei".   Minha mãe também me disse que suas costas eram como as do protagonista do filme "JUSTIÇA CORSA", um filme de 1941 dirigido por Gregory Ratoff e estrelado por Douglas Fairbanks, Ruth Warrick e Akim Tamiroff, baseado na peça escrita por Alexandre Dumas, Os Irmãos Corsos. Eles foram salvos graças à intervenção de um comissário de polícia, cujo nome não vou mencionar aqui, que era amigo de meu tio Lorenzo e conseguiu, com seu apoio pessoal, que e os deixassem em paz. Entretanto, meu tio Perico, após três anos de guerra, teve que cumprir mais seis anos de serviço militar. Naquela época, era obrigatório.
           
Quero escrever uma canção que costumava ouvir meu tio Perico cantar, quando ele não percebia que eu podia ouvi-lo, e dizia assim: Se você quer escrever // você sabe meu paradeiro // Se você quer escrever // você sabe meu paradeiro // Na frente Gandesa // na linha de frente de fogo // na frente Gandesa // na linha de frente de fogo.
 
Durante os dois primeiros anos da guerra, Madri suportou os bombardeios da força aérea nacional.
 
Meu pai costumava me dizer que quando as sirenes de advertência soavam eles tinham que correr para a estação do metrô de Goya, e se refugiavam nos túneis até que o bombardeio parasse e pudessem voltar para suas casas. Meu pai também me disse que quando meu tio Luis estave de licença da frente e voltou para casa para passar com sua família, soou o alarme para avisá-los que o LAS PAVAS estavam chegando, pois assim chamavam os bombardeiros que lançavam as bombas de 500 quilos.
 
Meu tio Luis, por mais que minha tia Lucía lhe puxasse o braço para levá-lo a correr para o abrigo do metrô, recusou-se a sair da cama. Finalmente, minha tia conseguiu fazê-lo e eles foram se abrigar no túnel. Quando o bombardeio passou e voltaram para casa na cama onde meu tio Luis estava dormindo, havia um pedaço de estilhaço que tinha entrado pela janela do quarto.
 
No final do outono de 1938, restavam apenas alguns meses antes do fim da chamada Guerra Civil Espanhola. A comida era escassa em Madri e até mesmo o pão, que era escuro, feito de centeio ao invés de trigo, era racionado. Este pão racionado era reservado para a criança, meu primo Joselín que devia ter uns 9 anos de idade, para comer.
 
Minha avó Saturnina tinha acabado de morrer e minha mãe e meu primo viviam com meu avô Pedro e tinham muita dificuldade para comer. Isto, junto com os bombardeios e a falta de aquecimento, encorajou meu avô Pedro a seguir os conselhos de minha tia Visitación - que era a esposa de meu tio Lorenzo, que era natural de La Alberca, na província de Murcia - para ir morar em seu vilarejo próximo à capital de murciana, à casa de sua família, ao meu avô com minha mãe e a criança, porque não bombardearam ali os aviões com bombas e os pomares de Murcia já estavam em plena produção de laranjas, que, como agora, eram um alimento maravilhoso.
 
Eles seguiram seu conselho e foram para Murcia, onde minha querida mãe me disse como aquela terra era bela, que meu avô comprava laranjas a meio saco, nos mesmos pomares, e que  saciaram sua fome até o fim da guerra no dia 1º de abril. 
 
Minha mãe sempre se lembrou com carinho de Murcia, de seus pomares e de suas laranjeiras.
Lembro que minha mãe gostava tanto de comer uma laranja quanto as crianças gostam de chupar um pirulito, e ela o fez até sua morte, em 2017, aos 94 anos de idade.
 
No final do conflito fratricida, meu avô tinha acabado de vir a Madri para cuidar de seus negócios e telefonou para minha mãe e meu primo voltarem a Madri de trem. Eles pegaram um trem de mercadorias meio vencidas, que levou quase dois dias para chegar a Madri, e no caminho você pode imaginar de que eles se alimentavam... De fato: laranjas à vontade.
 
Agora o período do pós-guerra os esperava, cujos primeiros anos foram aterrorizantes para o povo humilde da Espanha.
 
Para começar, quando voltaram para suas casas no sul de Madri, em Villaverde, suas casas estavam destruídas pelo efeito das  bombas, já que esses bairros haviam constituído uma frente de guerra. A Colônia Popular Madrilenha também foi destruída.
 
Primeiro eles tiveram que começar a reconstruir as casas onde poderiam se refugiar. É curioso como os seres humanos buscam os caminhos mais escondidos para resolver suas necessidades. 
 
Quando as pessoas foram evacuadas, em algumas casas com jardins havia gaiolas com coelhos, coelhos que não podiam levar para as acomodações que iam receber, então soltaram os animais e os deixaram ir em liberdade. Quando voltaram após três anos, esses coelhos deixaram seus descendentes entre as ruínas das casas da colônia que passou a ser chamada de San Fermín. 
 
Joselín me contou que o pai de um amigo meu, cujo sobrenome era Rico, se tornou um hábil caçador e todos os dias apanhava coelhos para seu sustento, usando as armadilhas que ele colocava nas passagens entre as ruínas.
 
Teremos que falar sobre tudo o que conhecemos como estropiar, que nada mais era que a necessidade de sobrevivência de um povo inteiro, diante da fome que assolava o território espanhol, e assim veremos provas de engenhosidade.
 
É por isso que meu pai costumava dizer que: um homem faminto estuda mais de cem advogados.

O gringo

O

Silvia C.S.P. Martinson

 O conheci quando era eu ainda muito jovem.
Era vizinho de meus tios e primos.
Viviam em, casas situadas uma ao lado da outra e somente separadas por uma cerca que isolava os jardins contidos em cada uma delas.
O bairro era simples porém muito habitado e bem localizado dentro da cidade então, até hoje, a capital do Estado do Rio Grande do Sul – Brasil. A cidade chamava-se e ainda se chama Porto Alegre.
 
Pois bem, nesta rua e numa destas casas nasceram meus primos Pedro e Margarida. Eram seus pais, minha tia Luiza e seu marido Oscar.
 
Pedro e Margarida, que era a menor dos dois, ali creceram, se educaram e casaram.
Já o vizinho ao lado que se chamava Genaro, de origem italiana, como bem o demonstra seu nome, era uma pessoa muito extrovertida.
 
Como todo italiano, até aonde se sabe, tinha uma voz potente e quando estava em casa de volta de seu trabalho, no verão, ficava de bermudas e uma camiseta sem mangas que mostrava toda sua enorme barriga pois que, geralmente, como todos de sua raça, gostava de comer boas e suculentas comidas.
 
Pois assim era Genaro naqueles tempos.
Ele ia ao quintal de sua casa e ali ficava, em alta voz, a cantar as músicas de que gostava em italiano.
 
A mulher de Genaro chamava-se Yolanda e como ele, também, era de origem italiana. Os dois tinham duas filhas, muito educadas que, com o passar dos anos e o estudo, se tornaram professoras, o que para a época significava, para as mulheres, quase o máximo de educação que poderiam alcançar as filhas de operários se não se tornassem dependentes de maridos e mães de família.
 
Estas senhoritas chamavam-se respectivamente Andréa e Sofia. Nasceram, cresceram e casaram-se naquela rua.
Junto com meus primos passaram toda a infância ali, brincando, brigando e discutindo, todavia apoiando-se mutuamente quando necessário.
 
E assim a vida seguiu seu ritmo normal até a adolescência e maioridade deles, quando então, cada um de acordo com sua vocação foi trabalhar.
 
Voltemos então a Genaro.
Genaro era um homem muito alegre e um grande contador de histórias e anedotas a que todos os vizinhos gostavam de ouvir e rir muito quando ele assim as narrava, o que acontecia frequentemente.
 
Outra mania que se conhecia de Genaro era de que aos domingos ele se arrumava com suas melhores roupas e ia ao Prado para apostar nos cavalos de corrida.
 
Quando perguntado aonde ia tão elegante ele, entre risos e chacotas, dizia que ia visitar sua amante favorita. E ante a sua maneira de ser todos ficavam a rir de sua forma jocosa de falar dos cavalos. Inclusive sua mulher e filhas.
E assim os anos se passaram saindo Genaro todos os domingos à tarde para ir ao Prado, sempre sozinho.
 
Acontece que por ser muito comilão e já ter uma idade mais ou menos avançada, em um fim de semana, mais precisamente em um domingo, ao final da tarde, depois de voltar do “Prado”, Genaro sofreu um infarto fulminante e morreu.
 
Minha família foi avisada e compareceu ao féretro. No dia do enterro, mais precisamente no velório, na capela, quando ali se encontrava o morto, a família e os amigos, chegou uma senhora acompanhada de três filhos a quem ninguém conhecia.
 
Ela se aproximou do caixão, chorava muito e exclamava: Genaro! Genaro! Amor de minha vida! Aqui estou com nossos filhos para dar-te a despedida! Porque te vais e deixas a mim tua Prado? Sim, tua Prado! A mulher de toda tua vida!
 
Os amigos se benzeram, o padre suspendeu as orações pelo morto, as filhas ficaram perplexas se estarrecidas.
 
A viúva Iolanda arregalou os olhos, foi ao caixão, fechou a tampa com um estrondo e caiu, ao chão, desfalecida.
 
Os amigos e a família se retiraram e somente restou ao lado do morto Genaro sua sempre e querida Prado.

A palavra de honra

A

Pedro Rivera Jaro

Traducido al portugués por Silvia C.S.P. Martinson

A palavra de um homem tem que valer tanto como uma escritura pública firmada ante um notário.

Assim me ensinou meu pai que por sua vez o aprendeu com meu avô. Não suportava que um homem desse sua palavra e depois não a cumprisse. E isto era aplicável e valia para todas as atividades da vida, ou fosse um negócio ou bem um encontro com os amigos.

Eu recordo, sendo um menino, ao final da década dos cinquenta, que meu pai havia adquirido um segundo caminhão Basculante, marca Chevrolet, para trabalhar na construção e havendo chegado à conclusão de que, por vários motivos, não lhe resultava interessante, decidiu pô-lo a venda.

Um industrial amigo dele se ofereceu para comprá-lo. Falaram ambos e de palavra cerraram o trato em 95.000 pesetas e deixaram para documentar a venda e escriturar na próxima semana.

Uma hora mais tarde, meu pai foi a barbearia de Miguel El Peluca para que o barbeassem (então estavam começando a popularizar-se os primeiros barbeadores elétricos, porém a barbearia era um lugar de atividade social e centro de contato público).

Ali na barbearia outro transportador conhecido de meu pai, que havia se inteirado de que vendia o Chevrolet, lhe fez uma oferta de 125.000 pesetas ao que meu pai lhe respondeu que sentia muito, porém que já havia empenhado sua palavra.

Era uma diferença importante de dinheiro, 30.000 pesetas, que era, mais ou menos, o que custava um piso na zona sul de Madri naqueles anos, porém a palavra para meu pai valia muito mais. Essa quantidade era aproximadamente o que ganhava um trabalhador em dois anos de trabalho.

Muitos anos mais tarde, quando eu era estudante de Ciências Econômicas e Empresariais, tinha um assunto que, era Banca e Bolsa. Nela fazíamos práticas na Bolsa de Madri e durante as mesmas aprendemos que os Agentes de Cambio e Bolsa em suas operações de compra e venda de títulos no mercado de ações, quando operavam nos distintos Círculos, comprando e vendendo, davam sua palavra aceitando uma operação, que logo se refletia por escrito, porém em princípio “Pego ou Vendo” nas distintas cotizações que iam circulando pelos Círculos eram respeitadas sempre. A palavra dada pelos agentes se respeitava 100 por 100, porque se algum deles houvera voltado atrás, do trato aceitado, seria afastado da atividade.

Porém, atualmente, observamos como pessoas que deveriam ser o paradigma da honradez e da honorabilidade, pelos altos cargos públicos que desempenham, mudam de opinião sem a menor indigestão, demonstrando com seus atos, tudo ao contrário do que haviam prometido muito pouco tempo antes.
Este comportamento deveria ser causa suficiente para que, de tais cargos públicos fossem banidos de tais postos, conseguidos a base de mentir aos que os puseram, votando-lhes.

A besta assassina (Viva a morte)

A

Pedro Rivera Jaro

Traducido al portugués por Silvia C.S.P. Martinson

 O Pardo é uma vila nos arredores de Madri, aonde os reis da Espanha, dada a riqueza cinegética, construíram um palácio, onde gostavam de passar suas jornadas de caça. Ali pastavam veados, javalis, coelhos e perdizes em abundância. Ao seu final corria o rio Manzanares, aonde se podiam pescar barbos e outros peixes de água doce como as bogas por exemplo. Tinham aldeias de azinheiras que produziam enormes quantidades de bolotas que serviam sobretudo para alimentar os animais selvagens citados. Se foram construindo ali vários quartéis para a proteção do Palacio Real e das pessoas pertencentes a realeza e a corte dos nobres.

Ao acabar a guerra civil, no ano de 1939, o General Franco, chamado Generalíssimo dos exércitos, passou a habitar o palácio por estar este suficientemente protegido ante possíveis e eventuais ataques, ao mesmo tempo que se fortaleciam as guarnições militares que ali existiam.

O rio Manzanares possuía grandes depósitos de areia limpa que se utilizava e segue se utilizando a construção de edifícios. Em princípios dos anos cinquenta, meu pai, Felix Rivera González, com um pequeno caminhão , transportava areia a varias construções, como por exemplo, recordo, das colônias

Experimentais de San Vicente Paul, próximas a Glorieta Elíptica ou de Fernández Ladreda, que é conhecida por ambos os nomes. Naquela época a Espanha vivia em autarquia absoluta, provocada pelo isolamento a que foi submetida pelas denominadas democracias europeias, como França e Grã Bretanha , até que no ano de 1959 o presidente dos Estados Unidos da America, Eisenhower, visitou nosso país e deu sinal para que começassem a abrirem-se as portas da Espanha aos avanços existentes na Europa, incluindo ao medicamentos como a penicilina para curar infecções. Para castigar ao General Franco faziam padecer todo tipo de penúrias e escassez ao povo espanhol. Como sempre o povo simples pagava todas as faturas do que não havia consumido.

Isto se explica porque então não existiam máquinas escavadoras para carregar os caminhões com areia, cascalho com tijolos, etc. Tudo era feito à força do suor dos trabalhadores, como meu pai e seu ajudante Vicente Rosel, o Chato.

Tinham que tirar primeiro a areia do leito do rio com enxadas grandes com cabo longo que puxavam a areia até beira do rio.

Depois de tirar a areia até a beira do rio, com pás se carregava até a caixa do caminhão até que estivesse cheia.para conduzir o mesmo carregado até as obras em construção. Isto era feito uma e outra vez enquanto durava o dia, com outro agravante, pois tinham as rodas racionadas e necessariamente há viam de trabalhar com rodas velhas e remendadas que necessitavam serem reparadas constantemente porque rebentavam com frequência, máxime que tenhamos em conta que as estradas eram estreitas e cheias de buracos, inclusive as vezes no havia asfalto, nem pavimento, senão eram simples caminhos de terra e cascalho no melhor dos casos.

Pessoas como meu pai e toda sua geração trabalharam até o esgotamento para levantar aquela Espanha de miséria e escassez. Nunca poderemos agradecer bastante àquelas pessoas por seu esforço e dedicação na busca de conseguir tocar adiante a minha geração e as seguintes.

Pois bem, em um daqueles dias em que meu pai havia carregado o caminhão e se dirigia por aquele estreito caminho até a estrada geral, escutou uma buzina que soava insistentemente e pelo espelho retrovisor pode ver um automóvel que chamavam Haiga pedindo passagem. Meu pai imediatamente buscou onde poder estacionar e permitir a passagem, porém não encontrava aonde até que passadas uma centena de metros aí pode encontrar onde estacionar.

O luxuoso automóvel se adiantou e parou a frente, baixou um senhor de uniforme muito furioso que sacando de uma pistola da cartucheira começou a proferir insultos e ameaças contra meu pai, que totalmente assustado e aterrorizado solo conseguia pedir desculpas e dizer que não havia podido estacionar antes.

Aquele senhor que ameaçava com descerrar tiros na cabeça de meu pai, tinha um braço cortado e lhe faltava um olho. Tratava-se nem mais nem menos que o fundador da Legião Millán Astray. Eu sempre admirei e admiro os valentes legionários por seus heroicos comportamentos em combate. Ao conhecer esta historia, anos depois de haver sucedido, pelos lábios de meu progenitor senti uma profunda pena e um furioso rancor por aquele senhor, que naqueles momentos poderia ter-me deixado órfão de pai sem um maior motivo que um estalido de soberba.

Depois de muitos anos entendi o significado do grito de Don Miguel Unamuno: VIVA A VIDA, em contraposição daquele outro proclamado por Millán Astray: VIVA A MORTE

O pão nosso de cada dia

O

SIlvia C.S.P. Martinson 

“Como cresce uma rosa entre paralelepípedos.
Como floresce um cacto no deserto.
Assim resiste a alegria entre explosões.
Assim triunfa a vida entre os mortos.”
 
Caminhando pela manhã, como normalmente faço, observando a Natureza e os homens e mulheres que passam, muitas vezes alheios a tanta beleza que nos envolve, fiquei a ver e a pensar...
 
O Sol brilha intensamente refletindo na água seus raios, sua luz.
 
Luz esta que nos aquece, envolve e permite que a vida se manifeste em todo seu esplendor.
As gaivotas pousadas nas águas tranquilas, buscam nelas seu sustento, não se apuram, pacificamente aguardam o que a natureza lhes possa ofertar. Após o que, alçam o voo e no céu azul perdem-se em bandos, rumo a outras paragens, talvez seus ninhos, certamente seu lar.
 
Vêm-se no horizonte os barcos que seguem seu destino e nele e desaparecem. O que carregam, o que buscam? Tampouco o sabemos.
 
Pessoas caminham pela calçada que circunda a praia.
 
Praia esta onde as ondas se derramam suavemente na placidez desta manhã, emitindo sons que nos fazem sentir como que embalados nos braços de nossas mães.
 
E as pessoas continuam andando, algumas juntas outras solitárias.
 
As observo e ouço, de algumas, suas vozes, suas conversas, suas histórias.
Falam de suas vidas, de seus anseios, de suas dores, de sua saúde e de seus amores.
 
Outras seguem solitárias em seu caminhar e me pergunto: o que estarão a pensar?
 
A algumas, ainda, as vejo e as ouço a falar mal da vida e de outras pessoas, a cuidar do que estão a conversar e alheias, sem perceberem, a intenção destas  que querem envolver-se em problemas que não lhes dizem respeito.
 
Há uma grande quantidade de gente, percebo, envolvida com seus celulares (telefones) sem prestar a mínima atenção ao que se passa ao seu derredor.
 
Veio-me à cabeça a tão famosa frase: ...”O pão nosso de cada dia ganharás com o suor de teu rosto.” 
 
Todos os homens em sua grande maioria, em que lugar da Terra que se encontrem, observam o princípio acima mencionado.
Infelizmente apesar de muitas vezes o conseguirem, os homens, por incrível, através de guerras e destruição de lares, cidades e populações, causam miséria e fome. 
 
Em realidade ainda somos muito primários no conceito do que é amar.
 
Por que não levantamos o olhar para encarar frente a frente às benesses que recebemos de poder viver, experienciar e apreciar a beleza em todas as suas formas em que nos é ofertada, em cada dia que nasce e em cada dia que anoitece, quando o céu se tolda cheio de estrelas e eventualmente a Lua se mostra em seu máximo esplendor?
 
Ou quem sabe visualizar nas tormentas, que inundam as terras ressequidas, a oportunidade de voltarem plantas a renascer e florescer em toda sua magnificência?
 
Este é o pão nosso de cada dia que recebemos e muitas vezes não vemos e não sabemos agradecer.
 
E assim caminhando lentamente e pensando volto a minha casa, ao meu lar, ao meu mundo.
 
Lentamente. Lentamente...

Odiosos abusos

O

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

Na cidade mais bonita a oeste de Madri ao sopé da serra de Gredos, na mesma cidade onde nasceram e se criaram meus avós maternos, Pedro e Saturnina, passei uma parte muito importante de minha infância e juventude. Esta cidade não é outra senão Las Rosas de Puerto Real, na qual meus pais fizeram construir um pequeno chalezinho em 1959.

Neste chalezinho passávamos meus irmãos e eu, junto com nossa querida mãe, a maior parte do verão, uma vez que haviam acabado as classes escolares.

Meu pai ficava em Madri trabalhando com seu caminhão durante a semana e no sábado pela tarde chegava à cidade no Ford do primo Luis, porque então em casa não tínhamos, todavia automóvel de passeio, até que em 1969 meus pais compraram um automóvel de marca SEAT, modelo 1500, dois faróis, de cor branca, muito elegante para a época na Espanha.

Passava a noite de sábado e domingo até a última hora da tarde na qual voltavam a Madri para, na segunda-feira, começar a trabalhar numa nova semana. Antes de sair de volta a Madri me deixava assinaladas as tarefas para a semana que eu teria que fazer para quando ele voltasse no sábado seguinte.

Não obstante as tarefas, todavia, tinha muito tempo para desfrutar durante todo o resto do dia. Pela manhã costumava, eu, a acompanhar meu amigo Antonio (Pastillas), quando levava as vacas aos prados onde pastavam.

No caminho com estilingues tentávamos caçar pássaros pelas árvores e amoreiras, coisa que Pastilla conseguia seguidamente e eu raras vezes.

Quando voltávamos à cidade pegávamos os maiôs e subíamos à piscina para dar-nos um banho e nadar um pouco.

Depois nos sentávamos ao redor de uma mesa para quatro e ali aprendíamos com os anciões o brilhante e ao tute.

As 2 do meio dia tinha que estar em casa para comer e depois disto mamãe nos obrigava a dormir uma sesta.

Pela tarde havia trabalhos no jardim da casa. Quando já caia a tarde subíamos de novo à piscina a jogar cartas. Ainda que fossemos, todavia, muito crianças, na pista de baile aprendíamos a dançar com as meninas, abaixo do atento de suas mães e avós que estavam sentadas em um banco que existia ao redor do tronco de uma grande árvore.

Também passou vários verões conosco minha prima Luisinha, depois de que faleceu sua mamãe, minha tia Fernanda.

O pai de minha prima, meu tio Luis, vinha cada domingo em um ônibus de linha e todos nós baixávamos a estrada velha de EL CHORRILLO, ao cruzamento de Cinco Castaños para esperá-lo.

Pela tarde costumava voltar a Madri com o primo Luis  com meu pai no carro do primo, ou senão no ônibus.

Houve um verão em que minha prima Rosita o passou conosco e recordo algumas anedotas que nos ocorriam, porque éramos garotos da cidade e nos assustava por exemplo cruzar-nos com as vacas que baixavam soltas a beber água do poste que havia no Matadouro Municipal e frente a lavanderia pública.

Prontamente aprendemos que aquelas vacas eram mansas e que não ofereciam nenhum perigo para nossa integridade física.

Num verão, podia ser no ano de 1963, veio a viver na cidade uma família da cidade vizinha de Casillas.

A família se compunha do casal e três filhos homens e a todos eles se denominava, os Castanheiros.

O homem era construtor. E de construtor esteve trabalhando construindo uma casa. O filho mais velho ajudava o pai preparando os baldes de massa e chegando-os ao ponto do trabalho de seu pai.

O filho do meio e eu nos fizemos amigos e andávamos muito tempo juntos.

Uma segunda-feira o fui buscar em sua casa, junto a praça da cidade, no beco da casa de tia Beatriz e quando depois de chamar a porta a abriu sua mãe, vi com grande assombro que tinha a cara, a zona por debaixo dos olhos e bochechas completamente machucada.

Quando saiu seu filho e nos afastamos da casa, lhe perguntei o que havia acontecido a sua mãe.

            Ele se entristeceu e me contou que seu pai, que habitualmente parecia um bom homem, porém, nos fins de semana bebia e se embebedava. E uma vez que estava bêbado golpeava sua esposa. Disse-me que o fazia seguidamente e que no dia seguinte com a embriaguez já passada lhe pedia perdão de joelhos, prometendo que nunca mais voltaria a fazê-lo.

            Eu, desde aquele dia, tomei uma raiva tremenda ao pai de meu amigo por seu malvado comportamento com sua esposa e mãe de seus filhos. Nunca mais troquei uma palavra com ele pensando no sofrimento daquela boa mulher.

            Lembrou-me, esta história a um taxista, alcoólico, que era o pai de Torres um companheiro de meu Colégio de São Pedro, que batia em sua mulher, a mamãe de Torres. Aquela senhora ia ao quartel de Guarda Civil com a cara cheia de machucados e contusões para por uma queixa e o guarda de plantão lhe dizia que essas eram coisas de casamento que haviam de ser resolvidas em casa e que não podia escrever a denuncia.

            Estavámos nos primeiros sessenta. As pessoas de minha geração, igualmente mulheres e homens, lutamos para alcançar a maior idade, para que aquela situação tão injusta mudasse inescapavelmente mediante as mudanças pertinentes nas leis.

            Quero aproveitar para citar igualmente aqui as mudanças ocorridas no que se refere aos grupos integrados no coletivo LGTBI, que durante muitíssimos anos sofreram perseguições e discriminações, tudo motivado pelo incrível delito de suas preferencias sexuais.

Dois presentes de Natal

D

Pedro Rivera Jaro 

Traduzido ao portugués por Silvia C.S.P. Martinson

Escutei uma preciosa história. E é tão preciosa que está prenhe de amor e sacrifício.
Poucas vezes me toca uma história estrangeira tão dentro de meu coração e comove tanto ao meu eu interior.

Escutei-a em uma emissora de rádio e imediatamente senti a necessidade de contar a todos.

Protagonizam-na duas pessoas que se amam. Uma mulher jovem, Cristina e um homem igualmente jovem, Manuel. Ambos vivem casados e suas disponibilidades econômicas são bem escassas.

Têm o costume, aprendido de seus antepassados, de presentear ao seu consorte no Natal, porém levam algum tempo sem obter renda, ou conseguindo renda muito reduzida, por uma grande crise econômica sobrevinda em seu país.

Cristina se deu conta de que não dispõe de poupança para comprar um presente para seu Manuel. Dá um repasso em sua casa e se dá conta de que não tem nada de valor que pudesse vender ou empenhar. A seguir limpando-se frente ao espelho repara em sua preciosa, longa e ondulada cabeleira que cai desde sua cabeça até mais abaixo de sua cintura.

Sem duvidar, um momento sai à rua e se dirige a uma loja onde vendem e confeccionam, com cabelos naturais, perucas. Em tal loja lhe oferecem em dinheiro o que necessita para poder comprar o presente que deseja obsequiar a Manuel e que consiste em uma grossa corrente de prata para o relógio de bolso, que presenteou a Manuel seu pai, quando ainda vivia, e ao qual Manuel lhe tem grande estima e do qual tem necessidade.
Ali mesmo lhe cortam o cabelo.

Aproxima-se de uma joalheria compra a corrente e pede que a envolvam para presente.

Quando Manuel chegou à casa naquele entardecer e entrou nela se surpreendeu ao encontrar a Cristina com o cabelo cortado, porém somente fez uma observação: “te hás cortado o cabelo.”

Sentaram-se à mesa para jantar e Manuel entregou a ela um pacote envolto em papel de presente, ao tempo em que ela entregava o seu.

Cristina abriu seu presente e viu que consistia em um broche grande de Carey para sujeitar sua bonita e inexistente cabeleira. Ao mesmo tempo Manuel havia aberto seu presente e viu a preciosa corrente de prata e a guardou no bolso.

Cristina lhe disse que não a guardasse e sim a pusesse em seu relógio e a pendurasse nos botões de seu casaco. Manuel com um sorriso respondeu a sua amada que havia vendido o relógio para poder comprar-lhe o presente.

¿Pode haver maior sacrifício por amor que renunciar as mais apreciadas posses para tentar fazer feliz a pessoa amada?

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