O descabeçado

O

Silvia C.S.P. Martinson 

Um lugar. Um planeta. Ano, 3.145.

As cidades são enormes, não há prédios altos, edifícios como os que conhecemos hoje. São casas de dois ou três pisos, adequadas às necessidades populacionais, que possuem luz própria e refulgem nos mais diferentes tons, quando, sobre elas, refletem os raios dos dois sóis que abastecem de energia este planeta gigantesco.

Tais casas são transparentes à visão interna podendo-se observar plenamente o que se passa em seu exterior sem que a privacidade de seus habitantes seja perturbada por olhares porventura curiosos.
Aliás, o povo deste planeta não é nem um pouco curioso.

Falemos agora, sobre o povo residente para, posteriormente, narrarmos a estória propriamente dita.

Povo estranho para nossas atuais concepções, tanto física quanto psiquicamente.
Seus corpos não se deterioram quando são deixados. E deixados, como veremos mais adiante, é literalmente o termo mais correto.

São criaturas fisicamente quase iguais. Mesma textura, mesma altura – por sinal, extremamente altos e belos – cabelos ou pretos ou louros, olhos castanhos ou azuis, pele de cor amorenada, segundo nossos atuais parâmetros de cor. Os homens têm o mesmo porte altivo e são sexualmente bem dotados. As mulheres, portadoras de fartas cabeleiras, têm seios avantajados e torso e nádegas e pernas bem torneados. Sexualmente, todas elas, especialmente atraentes

Nestas cidades tudo é programado. Como as criaturas não necessitam alimentar-se da forma tradicional, basta-lhes aspirar aos eflúvios vindos dos “alimentos” – oriundos das formas básicas milenares – processados e altamente energéticos. Não há produção e trabalho braçais. Não há campos a lavrar.

Portanto, os seres executam somente serviços de ordem intelectual, destinados a manutenção e conservação da governabilidade e da paz e isto acontece em pequenos períodos do dia, que dura, em média, 36 horas.

Todos os cidadãos obedecem à ordem programada; as segundas-feiras é o dia do afeto-sexual, as terças são dedicadas à alimentação, as quartas se encontram e confraternizam com os habitantes do mesmo bairro, as quintas reúnem-se em um grande anfiteatro da cidade para ouvir música e aumentarem seu “acervo de sons”, as sextas saem a caminhar, quando então, as calçadas e as ruas rolantes são paradas para tal mister. Aos sábados todos ficam em suas casas, tratando de suas roupas e utensílios, pondo-os em ordem. Neste dia circulam os únicos veículos, chamados RECOLHEDORES, pela cidade. Mais tarde falaremos especificamente sobre eles. Aos domingos todos dormem.
Como se vê são cidades super organizadas.
A propósito as criaturas, seus habitantes, são chamados e conhecidos por números e não por nomes.

Um Bilhão e Quinze Mil era o nome dele. Sua mulher chamava-se Um Bilhão e Vinte Mil. Intimamente apelidaram-se de Biquin ele e Bevin ela. Estavam acostumados.
É aqui que começa a nossa estória.
Biquin após ter dormido com sua mulher Bevin todo o domingo, acordou segunda-feira sentindo-se estranho, não estava como sempre tão disposto ao “afeto-sexual.”

Ela como sempre nestes dias (segundas-feiras) chegou-se a ele com os grandes e rijos seios semi a mostra, o corpo aquecido e úmido, as nádegas quase vibrantes e encostou-se, pressionou-se a ele, ao seu corpo, fazendo com que a sentisse inflamada e disposta ao coito.

Como lhe percebesse certa frieza, coisa até então nunca sentida, por parte dele, pegou sua mão e conduziu-a lentamente sobre seus seios fazendo-a deslocar-se até sua genitália, que nestas alturas já vibrava aquecida e umidificada, exalando o perfume que lá colocara antecipadamente. Semicerrou os olhos e entreabriu a boca para receber-lhe a língua poderosa.Ele cedeu. Um frêmito passou-lhe por todo o corpo acendendo seu desejo. Copularam o dia todo, das mais diferentes e ousadas maneiras.
É necessário que se diga: As mulheres destas cidades as segundas-feiras, sempre, sem exceção, recebiam e procuravam seus maridos seminuas, de olhos semicerrados e bocas entreabertas, corpo excessivamente quente, levemente molhado e perfumado.

Terça-feira – Dia da alimentação.
Biquin colocou as pílulas energizantes, dele e dela, em recipientes próprios e separados. Borrifou-os com um líquido especial. Imediatamente vapores começaram a sair daquelas, sendo aspirados individualmente por cada qual. Isto por várias horas. Ao fim do dia estavam energizados.

Quarta-feira. Biquin ainda com uma impressão estranha de incompletude, como se algo estivesse a lhe escapar do controle, um sentimento vago e inquietante de ausência – coisa que nunca sentira desde que se dera conta de si, isso há tanto tempo que já não sabia mais precisar – dirigiu-se com sua mulher, meio-contrafeito, à reunião do bairro para conversar, trocar idéias com seus confrades, aos quais, no entanto, não expôs suas atuais sensações.
Na quinta-feira, como sempre, todo o povo dirigiu-se ao anfiteatro para ouvir música e aumentar o seu “acervo de sons”. Biquin e Bivin, inevitavelmente, também foram.
Sentados em confortáveis cadeiras, em silêncio, preparavam-se para a audição.
A música, que era transmitida por enormes e complexos aparelhos, se espalhou no ar. Era como sempre calmante. Acrescida, no entanto, de novos sons, que, paulatinamente, iam sendo registrados em seus cérebros, incorporando-se ao seu “acervo”.

Foi neste exato momento, mais propriamente naquele dia que Biquin começou a compreender o que lhe ocorria e então se fez algumas perguntas que não soube responder:
- Por que necessitamos de ouvir música e aumentar nossos “acervos”?
- Por que ouvir música se já a temos registrada em nossos cérebros?! Podendo ouvi-la intimamente sempre e quando quisermos.
- Por que todo o povo necessita reunir-se no anfiteatro?
Terminou o dia, a audição e todos retornaram aos seus lares.

Amanheceu, os sóis brilhavam, as casas resplandeciam. Era sexta-feira.

As perguntas feitas a si próprio, inquietantemente, continuavam a martelar na cabeça de Biquin.

As ruas e calçadas rolantes estavam paradas.
As criaturas andavam aos pares caminhando sem pressa por muitos quilômetros, circundando parques, ruas, avenidas. Era necessário movimentar-se, como se engrenagens novas, recentemente lubrificadas, fossem postas em ação para ajustar-se e melhor desempenharem suas funções. Era obrigatório o movimentar-se.

Biquin sentou-se em um banco de praça, estava inexplicavelmente cansado, nunca isto lhe ocorrera. Fez sinal a Bevin para que seguisse sozinha à caminhada obrigatória. Ela o olhou longamente, uma lágrima, uma única, correu-lhe pela face, disfarçou, disse-lhe adeus e seguiu.

O desânimo era grande demais nele. As perguntas não respondidas assomavam insistentemente ao seu cérebro. E aos poucos uma idéia estranha, inusitada, começou a envolvê-lo, obstinadamente, retirando-lhe toda lógica e entregando-o somente a um desejo violento de:
Desenroscar do corpo a cabeça. Seria isto possível?

Sozinho na praça, já entardecia, ele iniciou sua tentativa. Por incrível que pareça acreditou ser possível. E, lentamente, começou a desenroscar sua cabeça. No início ocorreram alguns estalos, como se as peças por falta de uso estivessem emperradas. Mas com um pouquinho mais de força e um estalo maior ela começou a mover-se. Primeiramente em ângulo de vinte e cinco graus, após quarenta e cinco, passou rapidamente aos cento e oitenta e finalmente aos trezentos e sessenta graus. Já não se surpreendia, ao contrário, uma grande sensação de alívio o acometeu. Só faltava, agora, retirá-la do pescoço.
Foi o que fez. Colocou-a delicadamente ao seu lado no banco. Já não sabia se era corpo ou se era cabeça. Mas o que importava agora?!
Ao seu redor as coisas, as imagens, os sons foram se desvanecendo e desapareceram por completo.

Só restou um corpo e uma cabeça que, naquele planeta, não se deterioravam.
Por sua vez Bivin, em seu lar, sentou em um sofá e desligou-se de todos os seus sentidos. Para sempre.

Na sala de Controle de População do grande complexo governamental, onde se decidiam da criação ou extinção de “criaturas programadas”, na frente de uma enorme tela televisiva Tresbieum (Três bilhões e um milhão) diz a Tresbiedois (Três bilhões e dois milhões), esses eram seus nomes:
- Finalmente desligados Biquin e ela! Tudo ocorreu como o programado. Estavam velhos e obsoletos, só ocupavam espaço. Sua tecnologia estava ultrapassada, não havia conserto nem reparos a serem feitos. As peças não existem mais.
Agora haverá um lar a mais para os futuros pares.
- Realmente, mas você Trisbieum há de concordar comigo em alguma coisa, já que somos tão diferentes...
Como eram bonitos e perfeitos, para a época em que foram criados, os nossos pais, você não acha?
- Sim, nossos pais!

Mas isto já não importa, amanhã é sábado e os caminhões RECOLHEDORES os levarão para a reciclagem de materiais. É sempre assim...
- Ainda bem que domingo dormiremos.

É necessário, ainda, que se explique que neste planeta quando um dos cônjuges era desativado o outro, inevitavelmente, o seguia em sua sina.

Sobre el autor/a

Silvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022)
Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

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