Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

Te amarei

T

Sílvia C.S.P. Martinson

Te amarei como as noites que são eternas.
Te amarei como o canto dos passarinhos em seu ninho.
Te amarei se supostamente me permites
em todos os dias de minha vida.
Te amarei como o sol quando amanhece,
inundando a escuridão, iluminando a vida.
Te amarei sobretudo quando me olhas
e de teu doce olhar, que me seduz,
me vás conduzir devagarinho
aos céus, ao infinito.
E levarei comigo toda luz,
toda a vida que hás mudado na caminhada
de minha peregrinação então ocorrida.
Caminharei ao teu lado sem mais sofrimento.
Andarei sem pressa...
Caminharei feliz, contente,
andando passo a passo
ao encontro de teu amor,
ao encontro de ti...Minha vida!

Raimundo Tío Mundo

R

Sílvia C.S.P. Martinson

Ele era velho. Muito velho.
Assim nos parecia.

Este homem velho era de uma simpatia e cultura incríveis.
Sua cultura provinha da muita leitura que fazia e dos livros que conseguia que lhe chegassem às mãos.
Todos os que o conheciam e apreciavam sua companhia o obsequiavam com livros, fossem novos ou velhos. Não importava.

Aos livros e aos parentes ele dedicava seu tempo depois de anos de trabalho na pesca, ou seja, na captura de peixes e sua posterior venda no mercado, onde, cedo da manhã, já se encontrava para a inspeção e seleção do pescado antes de sua venda ao público.

Ele residia em uma ilha próxima à cidade, onde mantinha, em um bom pedaço de terra, sua casa e sua família.
Era casado e tinha três filhos que o ajudavam na plantação de hortaliças e árvores frutíferas. A venda das verduras e frutas fazia com que o orçamento doméstico fosse razoavelmente suficiente para a manutenção e o bem-estar de todos.

Chamava-se Raimundo, todavia todos o conheciam por Tio Mundo.

Depois de muitos anos de trabalho, se aposentou.
O trabalho duro lhe deixou sequelas: tinha dores nos quadris e caminhava com certa dificuldade.

Tio Mundo costumava atravessar o rio de barca para, na cidade, consultar os médicos no Centro de Saúde e também visitar os parentes.
Seus primos e sobrinhos o conheciam e o apreciavam sobremaneira por sua natural afabilidade e pelas histórias que costumava contar a todos, especialmente às crianças da nova geração familiar.

Ele, diga-se de passagem, chegava às casas sem se anunciar, entrando e saindo delas como se fossem suas. Até os cachorros mais bravos se deitavam aos seus pés e lhe lambiam as mãos.
As crianças, quando o viam, corriam para abraçá-lo e, como sempre acontecia, ficavam pedindo que lhes contasse histórias.

Tio Mundo, com um grande sorriso no rosto, sentava-se em uma cadeira debaixo de uma árvore, se o tempo permitia, ou, no inverno, perto de um fogão à lenha, que naquela época havia em quase todas as casas. Então começava a contar coisas de seu passado que, para quem as ouvisse, pareciam tiradas de bons livros de histórias.

As crianças ao seu redor, embevecidas, o ouviam com atenção, sem dele desviar os olhos.

Uma vez, contou-lhes sobre uma cobra que se escondeu debaixo de um armário de sua casa. Não esqueçamos que ele morava no campo.

A cobra saía debaixo do armário à noite e ia beber o leite do prato do gato, que havia sido colocado ali para o bichano.
Com o tempo, o gato começou a ficar magro, mais arisco e triste, até que um dia se descobriu a verdadeira causa.

A cobra, que era bem grande, foi achada onde se escondia. Dali foi retirada e morta. Seu corpo foi pendurado num galho alto de uma árvore para que secasse e, posteriormente, sua pele, que era muito bonita, fosse aproveitada para a feitura de uma bolsa para mulheres.

As crianças, com os olhos arregalados, pediram outra história. Tio Mundo contou mais uma. Levantou a perna da calça até o joelho e mostrou uma cicatriz. Ali faltava boa parte do músculo.

Relatou que estava caçando um jacaré à beira do rio. Estava tão atento ao bicho que não percebeu que, próximo a ele, havia um ninho de jararacas, cobras muito venenosas e agressivas, que costumam atacar os homens que lhes parecem oferecer perigo.

Na ânsia de caçar o jacaré — cuja carne é saborosa e cuja pele é valiosa para a fabricação de calçados e bolsas —, Tio Mundo não viu a cobra.

Em um bote certeiro, a peçonhenta lhe mordeu a perna e ficou grudada nela.

Tio Mundo, conhecedor das lides do campo e do perigo do veneno mortal da jararaca, não teve dúvidas. Sacou seu facão e, com um único golpe, cortou a cabeça da cobra, que ainda estava grudada em sua perna, levando junto um pedaço considerável de sua própria carne.

Como sempre fazia ao sair para caçar, além dos mantimentos, levava em seu barco um kit de primeiros socorros, com gazes, água oxigenada e esparadrapos para os curativos, caso fossem necessários. Foi assim que tratou o próprio ferimento.

Terminou a história para as crianças, que estavam extasiadas a ouvi-lo, dizendo que, naquele dia, retornou para casa e, por um bom tempo, não voltou a caçar.

Tio Mundo, depois dessa história, despediu-se de toda a família e abraçou as crianças, que gritavam:

— Conta mais, Tio Mundo! Conta mais!

A casa assombrada

A

Silvia C.S.P. Martinson

 

 Os conheci e certamente eram pessoas sérias, idôneas e não chegadas à mentiras ou invenções.

Na realidade sofreram muito e por muito tempo com o que lhes aconteceu.

Por motivo de trabalho em um novo negócio que o chefe da família começou, eles, foram obrigados a se mudar de uma cidade onde viviam, muito bem, lugar este aonde gozavam de conforto e onde tinham acesso a uma educação de nível superior se caso no futuro, viessem a precisar.

A família em questão era composta pelo pai e mãe jovens e uma menina com mais ou menos dois anos de idade.

Chegaram nesta nova cidade, que era bem grande e muito conhecida por seu porto, antiguidade e tradições, localizada na província de onde eram originados o casal. Estes nasceram na capital da província.

Continuando: chegaram nesta cidade com grandes projetos de progresso e melhoras financeiras, já que haviam colocado boa parte de suas economias neste novo investimento.

De antemão e por ajuda de amigos alugaram uma casa antiga em um bairro central, bem localizada e grande e confortável, apesar de velha. Ali chegados com sua mudança se instalaram.

O casal ficou no quarto maior da casa, a menina num outro contiguo ao deles um pouco menor e algo mais sombrio.

A casa era composta de um longo corredor do qual partiam lateralmente, desde a entrada, as demais peças que começavam: por um escritório e sala de recepção, seguida dos quartos do casal, da filha e de hóspedes se caso os houvesse.

Todas estas peças se localizavam à esquerda do dito corredor que dava acesso em seu caminho a um banheiro grande e confortável aonde, inclusive, havia uma enorme banheira de mármore para banhar-se.

Seguindo o corredor, até seu final, este desembocava em um vasto salão de estar onde além dos sofás e poltronas, e num outro espaço foram colocados a mesa de jantar e as cadeiras correspondentes para várias pessoas.

A sala em questão terminava em outra dependência que era a cozinha, na qual, além dos objetos inerentes a ela haviam duas janelas para iluminá-la e um fogão à lenha antigo que tampouco havia sido retirado da casa.

Na sala de estar havia uma porta que dava acesso ao jardim interno, à garagem adjacente e a uma, outra, dependência aos fundos do quintal que se encontrava cheia de móveis velhos, ferramentas e roupas gastas ali abandonadas.

As janelas nesta casa eram altas e se fechavam por dentro com grandes venezianas de madeira compostas de trincos de ferro duplos em cada uma, que não permitiam a entrada de luz ou de estranhos à casa.

Quando chegados à casa a família começou a colocar seus móveis e pertences em cada lugar que lhes pareceu melhor.

No quarto do casal eles encontraram na porta de entrada um par de chinelos de homem ainda relativamente novos.

Com cada coisa em seu devido lugar a senhora começou a trabalhar na limpeza da casa e do jardim interno colocando ali, depois de todo pasto arrancado, mudas de verduras e das flores que apreciava.

Com o tempo passando foram eles notando algumas coisas diferentes que aconteciam ali.
A menina não conseguia mais dormir a noite e continuamente chorava e falava.

O quarto em que ela dormia por mais aquecimento que ali se colocasse estava sempre, sempre gelado.

Os pais não tinham mais o descanso merecido a que estavam acostumados na antiga cidade onde viveram, uma vez que a criança chorava a noite e por incrível, se manifestava em outros idiomas desconhecidos até então a ela e aos pais.

As janelas internas de madeira da sala e da cozinha por mais aferrolhadas que estivessem à noite, pela manhã encontravam-se abertas dando passagem à luz.

Um dia o pai já desesperado tomou de um martelo e pregos enormes e pregou as janelas dizendo que agora elas não se poderiam mais abrir sozinhas.

Na manhã seguinte os pregos jaziam no chão e as janelas, todas, sem exceção, estavam abertas.

Os negócios começaram ir de mal a pior, inclusive na relação com os sócios que não eram tão honestos quanto pareceram no início.

Após algum tempo em contato com uma família vizinha que sempre os observava com certa curiosidade ficaram sabendo que aquela casa se encontrava a muitos anos desabitada, porque ali ninguém conseguia morar.

O último inquilino saiu correndo da casa, deixando ali seus pertences, roupas, móveis velhos e calçados. Saiu literalmente com a roupa do corpo em seu carro e nunca mais voltou.

Contaram ainda que nesta casa se passou, anos atrás, uma tragédia.

Na dependência onde se localizava o quarto da menina, ali, depois de uma grande discussão, por ciúmes, dos donos da casa o homem matou a mulher a punhaladas, deixando-a estirada no solo completamente ensanguentada e fugiu, desaparecendo completamente daquela cidade.

Os vizinhos com o mau cheiro do cadáver foram alertados e após algum tempo chamaram a policia ficando o fato devidamente esclarecido.

O casal, já aborrecido e impedido por circunstâncias financeiras, de continuar com os negócios naquela cidade mudaram-se novamente para a capital de onde haviam nascido e crescido.

Com o tempo e em contato com outras pessoas ficaram sabendo que nesta cidade antiga tais histórias e tais fatos não são incomuns. Cada casa velha onde habitaram e viveram muitas pessoas, isto há mais de 500 anos, as mesmas ali deixaram suas histórias marcadas em cada rua, em cada esquina em cada canto.
Dizem que é perigoso andar sozinho ali pela noite, é o que dizem...

Mistèrio

M

Sílvia C.S.P. Martinson

Os dois eram amigos inseparáveis desde que se conheceram quando ainda eram jovens.

Frequentavam os mesmos lugares tais como bailes e festas em sociedades onde podiam comprar seus ingressos e também, como a cidade em que moravam ainda não tinha o porte de uma metrópole conseguiam, com certa facilidade, penetrar nestes ambientes.

Pois foi em uma noite de baile, naquele tempo de então, quando as moças acompanhadas de seus pais ou no mínimo de suas mães iam dançar no clube. Estas sentavam as mesas já antecipadamente compradas para aquele evento.

Normalmente os bailes davam-se ao som de conjuntos musicais cujos artistas eram contratados para tocar quase toda a noite até a madrugada do dia seguinte, quando então as pessoas se recolhiam aos seus lares.

Nesses bailes as jovens costumavam ir bem vestidas e maquiadas e sentavam-se, entre sorrisos matreiros e sedutores, às mesas, aguardando que algum jovem mancebo as viesse convidar para uma dança.

Era considerado como uma grande grosseria uma jovem negar-se a dançar com um homem que lhe fizesse um convite ao qual se negasse aceitar.

O máximo que cabia à mulher então era dançar uma única música e pedir para ser levada à sua mesa, alegando, com delicadeza, estar com dor nos pés ou cansada.
Normalmente após isso era comum a dita jovem não ser convidada por mais nenhum homem naquela noite.

Os homens se comunicavam entre si narrando o ocorrido com eles e como uma forma de vingança, nenhum deles tirava mais a moça para dançar.

Bem continuando com a nossa história, os jovens mancebos de que falamos no início se chamavam respectivamente, André e Ricardo.
André e Ricardo foram, uma noite, a um baile em que se comemorava a entrada da primavera.

Vestiram-se à rigor e seguiram para o clube que se chamava Barroso.

Lá entre uma dança e outra conheceram duas jovens bastante bonitas que se encontravam, as duas, ne mesma mesa. Eram irmãs.
Com elas dançaram a noite toda, e as acompanharam juntamente com sua mãe, até a sua casa.

Deste baile e deste conhecimento resultou que ambas, Alice e Magda, vieram a se casar alguns anos depois com estes dois amigos.

Os dois amigos gostavam de ir pescar ou caçar juntos quando de preferencia longe de suas mulheres, quando então aproveitavam para tomar umas cervejas ou vinhos além da conta, ou seja, passar dos limites no consumo das bebidas e depois ficavam tão embriagados que não reconheciam nem a si mesmos.

Os anos passaram, tiveram filhos e netos. Também se aposentaram de seus trabalhos e começaram a desfrutar de um pouco mais de descanso.

O filho de um deles comprou uma casa no litoral para que a família, no verão, aproveitasse das férias junto ao mar, fugindo do calor da cidade que, havia crescido muito e se tornado uma grande e cansativa metrópole.

Em um desses verões enquanto os filhos e netos ainda não gozavam das férias, os dois amigos e cunhados dirigiram-se ao litoral e à casa do filho de André para, supostamente, prepará-la para a chegada da família, uma vez que a mesma estivera fechada por todo o período de inverno.

Grata liberdade tiveram os dois...

Foram no carro de um deles e lá chegando dirigiram-se a um bar e compraram além de comida, frutas, verduras, material de limpeza e várias garrafas de vinho e cervejas.
A noite prepararam seu jantar ao mesmo tempo em que consumiam os vinhos e mais alguma bebida alcóolica que encontraram na casa.

No dia seguinte quando a família chegou encontrou-os ajoelhados no chão da casa rezando e se benzendo.

Espantados todos os familiares lhes perguntaram o que tinha se passado, ao que eles disseram que a casa era “mal assombrada” por espíritos malignos, e por tanto, era necessário que rezassem e fizessem todos o sinal da cruz pedindo que os anjos limpassem aquele ambiente.

Arguiram que a noite toda ouviram ruídos e sons vindos dos quartos e do teto e de todas as peças da casa.

O filho de André, dono da casa, ao ouvir tal narração começou a rir sem parar sendo admoestado por seu pai que lhe disse: que com estas coisas não se brinca.

O filho que se chamava Vicente então parou de rir e contou que em verdade há muitos anos, habitavam o sótão da casa um casal de bichos e seus filhotes que somente saiam à noite para caçar morcegos e ratos e se alimentar haja vista que de dia esta raça costumava dormir.

Os dois velhos não acreditaram muito. Todavia depois de tanta bebida e de terem passado a noite rezando na “casa mal assombrada” foram enfim se deitar para dormir e se curar do susto e mais ainda da bebida pródigamente consumida.

A história se espalhou pela família e em sentido de pilhéria, cada vez que um ia ao litoral dizia:

- Vou para lá. A casa mal assombrada me espera!

Imaginaçao

I

Sílvia C.S.P. Martinson

Ela caminhava solitária pelas ruas.
O tempo passava lentamente, o dia mal começara, as luzes noturnas da cidade se apagavam e as ruas aos poucos se enchiam de pessoas. Pessoas estas que passavam por ela apressadamente, sem tomar conhecimento de sua presença.
 
A ela pouco importava a opinião ou atenção  de seus pares.
 
Caminhava imersa em seus pensamentos, todavia apreciando o belo amanhecer que se fazia então.
 
As árvores se cobrindo de folhas após o longo inverno, se bem que, ainda era frio, as flores orvalhadas nos jardins, as rosas vermelhas de que tanto gostava lhe extasiavam os olhos e a alma.
 
Os pensamentos lhe vinham e iam como passes de mágica e a cada passo que dava as coisas ao seu derredor se modificavam.
 
Em que pensava?
 
De que poderes era dona e senhora?
Seria uma bruxa ou uma fada?
Assim a si mesma também se observava e lhe encantava suas próprias atitudes quando as tomava.
 
Em uma avenida em que passou os homens se digladiavam com palavras ao mesmo tempo em que se agrediam fisicamente com armas, matando-se uns aos outros.
 
Ela parou, olhou-os por um momento, uma lágrima se lhe escapou dos olhos que ao cair no chão a tudo transformou.
 
A avenida se encheu de luz, da luz de um sol nunca visto, os canteiros ficaram repletos de flores e os homens extasiados diante de tanta beleza pararam de brigar, olharam-se profundamente uns aos outros, deram-se as mãos, abraçaram-se e seguiram, cada qual o seu caminho. As armas desapareceram.
 
Em outra rua pela qual passou as mulheres preocupadas com sua beleza e aparência pessoal estravam nas lojas a comprar e adquirir belas roupas, sapatos, perfumes, bijuterias e mil outras coisas que lhes pareciam importantes e quando saiam desses recintos, não notavam as outras senhoras que se encontravam famintas junto aos seus filhos a estenderem as mãos num pedido pungente de socorro, de ajuda, para que pudessem aplacar a fome e o frio que lhes consumia.
 
Ela ao observar tudo isto novamente se emocionou e de seus olhos outra lágrima verteu. Lágrima esta que ao cair ao solo tudo transformou.
 
O frio cessou, o sol brilhou novamente, as ricas e poderosas mulheres deram-se conta das outras miseráveis e as passaram a ajudar substituindo seus trapos por roupas decentes, dando-lhes inclusive e aos seus filhos comida e abrigo.
 
E neste caminhar dirigiu-se, então, à beira do mar que circundava esta cidade margeada com belas praias de areias brancas, onde a água de um verde cristalino nelas se derramava lentamente, como o tempo, como a eternidade.
 
O bando de pássaros que pousados na água estavam a vê-la enfim a sorrir ente tanto esplendor e beleza, alçaram voo e em seu caminho a tomaram pelos braços e com ela voaram ao infinito.
 
Amanheceu o dia, ela acordou com a imagem vívida do que enquanto dormia havia sonhado e pensou:
 
Teria sido tudo imaginação sua?
 
Seria ela uma fada mesmo?
E assim pensando e sonhando acordada ficou a sorrir para si mesma, mais uma vez.

 

 
 

Memórias

M

Silvia C.S.P. Martinson

O velho caminhava pela rua como todos os dias o fazia. No entanto, nesta manhã de um céu azul e sol radiante, quando as pessoas que como ele, ali andavam também, lhe pareciam mais alegres e felizes.

Ele não havia percebido que enquanto andava as memórias de tempos idos lhe assomavam ininterruptamente. Eram lembranças de seu tempo de criança, quando inocente e feliz vivia na casa de seus pais. Casa esta que se localizava no bairro mais afastado daquela cidade.

O bonde, a condução para as pessoas que não tinham carros – e eram poucas as que os possuíam – ia até uns quilômetros antes de sua casa. O resto do caminho tinha que ser feito a pé, caminhando seja com sol, dias sombrios ou com chuva e frio.

Esta situação com o crescimento e expansão da cidade com os anos mudou.

Hoje a população ali cresceu, bem como os meios de locomoção e comunicação se tornaram acessíveis à maioria das pessoas.
Também com o progresso e isto o velho observava, vieram alguns inconvenientes, tais como: a marginalidade de pessoas e a criminalidade aumentaram, não permitindo, como antes, às pessoas andarem despreocupadamente pelas ruas.

E, assim, andando a este homem ressomaram novas lembranças como aquelas de que quando ainda era criança.

Lembrou-se da casa em que morava e que tinha um terreno que ia de uma quadra à outra, com quase 100 metros de extensão.
Terreno este donde se encontravam já adultas e grandes árvores de frutas, tais como: pereiras de diversas qualidades, caqueiros cujas frutas além de muito doces também quando seu sumo caia em uma roupa a qual se não era imediatamente lavada esta se manteria manchada por uma cor ferruginosa pelo resto de sua existência.

Havia ali, ainda, parreiras de uvas brancas, rosas e negras com as quais, no verão, sua mãe preparava sucos e saborosas sobremesas.
Mamoneiros, laranjeiras, limoeiros e vergamoteiras ali também davam seus frutos.
Recordou que as verduras e as flores mais diversas eram plantadas e cuidadas por seus pais.

Outra lembrança foi do galinheiro que havia ao fundo do quintal onde eram criadas galinhas e um galo cantador, o qual lhe despertava todas as manhãs. Dali seu pai colhia todos os dias vários ovos que eram acondicionados em uma cesta de palha na cozinha para futuro consumo.

Não havia àquela época chuveiros elétricos e a água do banho era aquecida, no frio inverno de então, em um grande fogão à lenha onde em enormes panelas e chaleira era deixada até o ponto de ebulição.

Havia em sua casa, ele lembrou-se, de grandes bacias de alumínio, onde cabiam ele e seu irmão e que serviam unicamente de banheira e que se encontravam penduradas em ganchos no banheiro da casa, que, sem dúvida, sua mãe mantinha impecavelmente sempre limpo.
A casa era simples, de madeira, todavia acolhedora. Era composta de dois quartos, uma sala de entrada, outra maior de estar, a cozinha ampla e o banheiro.

Fora da casa ainda tinha um galpão grande onde estavam guardadas uma geladeira de gelo comprado ao vendedor que ali passava semanalmente, como também o leite adquirido ao homem chamado leiteiro, que, todos os dia ia vendê-lo no portão de sua casa. Afora tudo isso havia ali guardadas as ferramentas de seu pai.

E assim caminhando lembrou ainda do vendedor de peixes que passava todos os dias, bem cedo, frente a sua casa gritando:
- Peixe Pin!!! Peixe Pintado! Bagres e Dourados! Peixe fresquinho! Comprem para comer ao domingo!!!

E com estas lembranças assomando a sua mente o velho voltou, caminhando lentamente, ao final daquela bela manhã à sua casa, pensando talvez se ao dia seguinte novas memórias lhe voltariam a acontecer, trazendo-lhe a alegria de recordar tempos e fatos tão agradáveis que lhe haviam sucedido.
Pensou ainda:
A vida é longa e inesperada, o que se passará amanhã tampouco o sabemos, portanto, vou ser feliz agora...

Laverca

L

Silvia C.S.P. Martinson

Todos os dias ela ia a sua janela e cantava uma música para ele acordar, isto pela manhã. Ao entardecer, quando a noite se aproximava fazia o mesmo, a fim de que o dormir dele fosse suave e cheio de encantamento.
 
Ela tinha belíssima voz e a cada dia trazia consigo novas maneiras e nuances em seu cantar.
 
Eles se conheciam de há muito e muito tempo.
Em verdade, por muitos anos ela inexoravelmente fazia a mesma coisa todos os dias.
 
Ele a salvara de morrer e desde então esta lhe tinha enorme carinho e profundo amor. Da mesma forma ele a queria e respeitava.
 
Assim que foram os dois crescendo, cada um a sua maneira, amadurecendo e desfrutando da vida e da beleza de viver cada dia com novas experiências.
 
Ele tornou-se um homem bonito, culto e elegante, sempre cortejado por belas mulheres.
 
Ela o observava e admirava enquanto este a acolhia e protegia sempre de todos os males.
Um dia, então, ele viajou para bem longe e ficou por um longo tempo afastado.
 
Ela, no entanto, em sua simplicidade e inocência, não deixou sequer um dia de visitar sua janela como sempre o fazia.
 
Enfim, depois de algum tempo, ele retornou e ela feliz foi cantar na janela pela manhã esperando vê-lo, como sempre ocorrera, todavia teve uma surpresa.
 
Estava ele acompanhado de uma bonita mulher que ao vê-la cantar sorriu e fechou a janela. Esta não apreciava o seu canto.
 
Ela, então, enciumada arrancou de seu corpo, com o bico, uma pena colorida que ali depositou como lembrança.
Subiu aos céus, voou ao alto, muito alto e nunca mais voltou.
 
O homem sentindo a ausência de Laverca o canto e a melodia que lhe embalava os sonhos e das tristezas do mundo as escondia, ele simplesmente, sem consolo, chorou até morrer.
 
As manhãs e as tardes ficaram silenciosas, tristes e vazias sem o belo canto de Laverca ou Cotovia.

A técnica e o homem

A

Silvia C.S.P. Martinson

Um diálogo baseado na discussão, em 22.08.1968, de 2 IBM (Computadores Eletrônicos) que chegaram, após longo debate, a triste conclusão de que não são máquinas, mas sim, gênios.

Ó homem triste!
Triste homem...
Que andas a perambular,
no tempo
a vagar...
Dentro de tua civilização
deslocado,
estás só em ti
não te entendem,
os outros, os “homens”,
não te querem.
Por que perguntas do início?
Por que queres criar?
Tudo está feito!
Hoje, não mais és tu,
hoje, és massa!
Volve teu olhar!
E te integra,
no nada.

Todo entorpecente em pequenas doses é um sedativo, da mesma forma que a máquina para o homem.

A máquina para o homem assemelha-se aos entorpecentes, pois ambos ministrados em pequenas doses funcionam como terapêutica física e mental. Isto porque os entorpecentes quando aplicados em grandes quantidades proporcionam sensações que jamais seriam sentidas em estado natural, tal como as máquinas que em número e perfeição exageradamente grandes tolhem o homem de suas realizações anteriores, provindas de seu então poder criativo e que lhe causavam alegria e satisfação, fazendo-o sentir-se um ser superior.

Perguntamos então: deverá o homem cessar o avanço técnico e científico? Poderá ele consegui-lo atualmente? E se este avanço fosse empregado em benefício de uma maioria ao invés de para uma nação ou apenas um continente?

Aproximadamente há em nosso globo 3 bilhões de habitantes, dos quais mais de 50% são analfabetos e desnutridos devido a sua não participação dos bens e dos confortos que a técnica proporciona àqueles que feliz ou infelizmente têm acesso à mesma.

O homem moderno, através de sua ciência penetra no cosmos, atravessa as barreiras das ligações atômicas em busca de um objetivo maior e mais profundo que é o conhecimento e identificação de sua causa. Porém o que mais lhe deveria interessar seria a comunicação e compreensão de seus semelhantes, o que a técnica não permite pois que ela individualiza a substitui ao mesmo tempo o homem, fazendo com que onde se pudesse colocar um grupo humano para realizar determinada tarefa, que favoreceria ao mesmo tempo as relações entre os mesmos, coloca-se uma máquina que é fria, indiferente, mais eficiente, rápida e mais precisa pois a sua margem de erros é mínima.
E baseando-se neste fato, fácil será de se supor, que, máquinas irão criar máquinas, que substituirão gradativamente o mundo dos homens por um mundo mecânico, no qual a extensão dos cálculos fugirá ao domínio humano.

 

 

Extranha

E

Silvia C.S.P. Martinson

 

Quando caminhou sozinha e por seus passos lentos, todavia seguros empreendeu novos rumos na busca de objetivos mais palpáveis, evidenciou sem dúvida a grande capacidade que tinha de criar e ser reconhecida.

Por muitos anos viveu insegura e dependente da opinião de amigos e parentes, consequência de uma educação limitadora e decadente.
Limitadora porque não lhe permitia ser livre em seu meio para expressar seus sentimentos, desejos e dúvidas.

Assim que, hoje livre de tabus e restrições ela conversa com nós outros, seus amigos, e nos conta, gentilmente, uma história antiga.
Tudo se passou em um fim de ano, quase noite de Natal.

Ela estava em casa de sua mãe, pois que ainda era muito jovem e não trabalhava em nenhuma empresa.

Seus afazeres se restringiam a ajudar a mãe nas lides caseiras, tal como: varrer o pátio, aguar as plantas, sua mãe as tinha e muitas rosas, eram as suas preferidas, as possuía sem seu jardim, de múltiplas cores todas elas.

Ajudava também a por ordem na casa todos os dias. Quando ao levantar-se era sua obrigação, antes de ir para a escola, deixar sua cama arrumada e seu quarto sem ordem sem roupas ou sapatos atirados ao solo, como costumava fazê-lo antes de dormir à noite.

Sua mãe era costureira. Confeccionava vestidos de alta qualidade para as mulheres da sociedade local.

Este trabalho de costurar à época de fim de ano, quando os festejos se acumulam juntamente com bailes e formaturas, sejam em universidades ou escolas militares, lhe proporcionava excelentes ganhos financeiros, tal a qualidade do serviço que prestava e à clientela que acorria à ela.

Então contou-nos que em um Natal assim sua mãe, assoberbada, tampouco pode sair para comprar os tradicionais presentes de natalinos para os filhos.

As crianças com a ajuda do pai, que também trabalhava fora, no comércio, em uma noite próxima ao Natal enfeitaram a árvore, um pinheiro, com o presépio e todos os seus componentes, as bolas coloridas de vidro e as luzes próprias usadas para iluminar e alegrar o lar, como faziam todos os anos.

A mãe por sua vez, no dia de Natal, passou a entregar às clientes os seus vestidos de festa e a receber o pagamento do trabalho por ela executado.

Ela conseguiu ainda, pela tarde, neste dia de Natal assar em seu fogão a lenha o peru que de antemão já haviam comprado.

Era hábito em sua casa na noite de Natal a família reunir-se e jantar um peru recheado e saladas e doces diversos, estes que a mãe durante o mês ia fazendo e acondicionando em potes de vidro apropriados à tal mister.

No entanto não haviam presentes a serem entregues pelo “Papai Noel” e os filhos entristecidos aprontaram-se para a ceia.

Quando as 12 horas da noite já estavam a jantar eis que toca a campainha da casa.
Era uma mulher muito rica atualmente, por ser dona de uma casa onde se realizavam grandes festas da sociedade local.

No entanto se sabia ter sido ela uma mulher muito pobre em sua infância e não ter tido a felicidade de no Natal receber qualquer presente ou brinquedo para lhe alegrar a vida.
Pois esta senhora que havia conhecido a miséria e sabedora das dificuldades daquela mãe se apiedou das crianças e chegou na casa com os braços carregados de brinquedos.
Grandes ursos de pele, brinquedos diversos e perfumes para os pais mais ainda tecidos para que confeccionassem as roupas deles.

Dentre tantas clientes ricas, aquela foi a única que se lembrou de uma família pobre e trabalhadora.

Nossa amiga, com lágrimas nos olhos, nos contou esta história.

Emocionada disse que passados tanto tempo ainda se lembra daquela senhora e que todos os anos, na noite de Natal, eleva seu pensamento a Deus em agradecimento pela vida boa que tem hoje junto a seus queridos, mas, também pede, em oração, que proteja e abençoe aquela mulher, seja lá onde ela se encontre.

Sobreviveu

S

Silvia C.S.P. Martinson

 
Ele caminhava lentamente pela estrada deixando na areia, marcadas, as suas pisadas.
Nada o atingia e tampouco lhe importava as opiniões dos raros passantes que, de esguelha, lhe observavam. Ia absorto em seus pensamentos, envolto em suas lembranças. Recordava os dias e anos passados quando então dia a dia lutava para sobreviver e elevar-se acima do caos que se formara.
 
Suas roupas velhas e surradas eram somente o que lhe sobrara de material. O resto... Pouco, agora, lhe chamava a atenção.
 
Não se esquecera dos anos, dos meses e das datas. Agora era Natal e ele sozinho somente caminhava.
As lembranças assomaram à sua mente e fizeram com que retornasse a tempos já tão idos.
 
Lembrou-se de quando era criança e da árvore de Natal que seu pai cuidadosamente escolhia e comprava todos os anos para que ele e seu filho, juntos, cada dia, nela colocassem o enfeites até que na noite natalina punham a última bola colorida. Quando o presépio já estava montado, a estrela dourada então era fixada ao alto, na ponta do pinheiro.
 
No presépio além do estábulo de palha onde ficava o menino Jesus na manjedoura, cercado por sua família e alguns animais domésticos, os campos circundantes eram povoados de bichos variados, de pastores e dos reis magos que, lentamente, se aproximavam cada dia mais daquele local a fim de prestar homenagens ao recém nascido. Estas figuras feitas de gesso e coloridas eram diariamente movimentadas por este homem enquanto menino. Havia ali também um pedaço de espelho que servia para se parecer a um lago onde patos nadavam tranquilamente.
 
Recordou ainda da noite de Natal onde previamente a mãe havia preparado a ceia. Ceia esta que era consumida e apreciada por um tempo bastante longo até chegar às 12 horas da noite, quando o então relógio antigo da sala batia as doze badaladas.
 
Na época ele supostamente não entendia porque seu pai ou a sua mãe se ausentavam da mesa por alguns instantes, inexplicavelmente.
 
Terminada a ceia todos se aproximavam à sala contígua para junto a árvore prestar, através de uma oração, agradecimento ao menino Jesus por sua vinda ao mundo para ensinar e exemplificar aos homens o poder da oração, da bondade, do amor e do perdão.
 
Feita a oração ele então notava que a árvores estava cercada de presentes que luziam em seus pacotes de papel colorido. Era uma hora de extrema felicidade constatar que as coisas, algumas, com que havia sonhado o ano inteiro, estavam ali depositadas e seriam suas de agora em diante.
 
Este homem enquanto caminhava solitário por aquela estrada poeirenta recordou-se porque ali se encontrava em um estado tão deprimente. Seu país e o mundo estavam em guerras contínuas.
Os homens haviam se esquecido do que significava o amor e o perdão. Haviam mortos e casas abandonadas pelos caminhos.
 
Lembrou-se de que sua casa fora destruída pelas bombas e a sua família, mulher e filhos haviam sido mortos pelos soldados inimigos.
Quanta dor, quanta desolação. Ele então ao dar-se conta de tudo isto uma grande dor lhe apunhalou a alma.
 
E ali, naquele momento, sentou-se ao chão, na terra poeirenta, colocou as mãos no rosto e enfim, em sua absoluta e total solidão, naquele mundo tão cruel e insano, copiosamente, simplesmente chorou.

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