Autor/aSilvia Cristina Preissler Martinson

Nasceu em Porto Alegre, é advogada e reside atualmente no El Campello (Alicante, Espanha). Já publicou suas poesias em coletâneas: VOZES DO PARTENON LITERÁRIO lV (Editora Revolução Cultural Porto Alegre, 2012), publicação oficial da Sociedade Partenon Literário, associação a que pertence, em ESCRITOS IV, publicação oficial da Academia de Letras de Porto Alegre em parceria com o Clube Literário Jardim Ipiranga (coletânea) que reúne diversos autores; Escritos IV ( Edicões Caravela Porto Alegre, 2011); Escritos 5 (Editora IPSDP, 2013) y en español Versos en el Aire (Editora Diversidad Literaria, 2022) Participou de concursos nacionais de contos, bem como do GRUPO DE ARTISTAS E ESCRITORES DO GUARUJA — SP, onde teve seus poemas publicados na coletânea ARAUTOS DO ATLANTICO em encontros Culturais do Guarujá.

As avassalladoras

A

Silvia C.S.P. Martinson

Ela estava na praia por volta das 7,00 horas da manhã.
 
Na areia havia poucas pessoas.
 
O mar estava calmo, verde, águas límpidas, o sol surgia no horizonte clareando o dia, aquecendo as águas, a terra e aos homens de boa vontade e aos de má vontade também.
 
O Sol nasce para todos.
 
Havia motivos para chamar alguns de: homens de boa vontade. Isto se dá porque ao invés, há pessoas que amanhecem de mal consigo mesmas e por consequência com o mundo.
 
Que lástima!
 
Poderiam, estas, se sorrissem seriam mais felizes se não se preocupassem tanto com a vida alheia.
 
Após estas breves considerações sigamos com a nossa narrativa. E assim se passou. Eis como ela a quem conheci na praia me contou:
 
- Pois que assim que cheguei, carregada com a minha cadeira de praia, guarda-sol e uma bolsa contendo todos os objetos necessários para desfrutar de uma manhã preciosa na orla, ou seja: água para beber, toalha de banho, bronzeador, protetor solar, celular com carga completa para manter os devidos contatos com meu tradutor, ali me instalei.
 
Ali me instalei, diga-se de passagem, sem deixar de explicar -face às naturais dificuldades pertinentes à minha pessoa – que foi com algum esforço.
 
E assim sendo, fiquei à espera das amigas que sempre chegam um pouquinho mais tarde.
Foi o que se passou, continuou ela a narrar.
 
- Elas chegaram e se instalaram junto a mim, que lhes havia reservado um espaço um pouco maior. Éramos cinco mulheres.
 
Mais ou menos por volta das 10,30 horas da manhã chegaram outras pessoas, que por certo e por motivos particulares, resolveram vir mais tarde à praia.
 
Como me pareceu são moradoras antigas deste povoado e por serem muito velhas se julgam donas da praia e pensam que os melhores lugares, junto ao mar, devam-lhes serem reservados.
 
Em suas cabeças destituídas de bom senso, pequenez de cultura, urbanidade e vivência humana, devam ser-lhes guardados estes espaços por direito , o que só existe em seus pensamentos distorcidos.
 
¡Que pena!
 
E assim segue narrando:
 
- Então se acercaram a nós, liderados por uma velha, loira oxigenada, magra e mal vestida, que segundo algumas outras pessoas disseram, costuma ter atitudes desta natureza todos os veraneios apesar de residir em Madri, elas começaram em voz alta a dizer, a fim de que ouvíssemos que estávamos ocupando um espaço maior do que nos cabia. O que não era verdade.
 
Por falta de qualidade de comunicação e por serem pessoas que não têm maior capacidade intelectual de diálogo, ao invés de aproveitarem a bela manhã que se nos era brindada pela natureza, passaram todo o tempo a fazer comentários desairosos sobre nós e sobre os demais que ousavam lhes passar sob os olhos maldosos.
 
Para que saibas, nos mantivemos caladas e as ignoramos por completo, sem dirigir-lhes um olhar ou uma palavra sequer. Não valia a pena desgastar-mo-nos por tão pouco. Estávamos felizes.
 
Ela então, assim, encerrou sua narrativa:
- A manhã apesar de tudo nos brindou com muita alegria pelo encontro com os amigos, pelo banho em um mar deslumbrante e um sol de verão abrasador, que nos acariciou sobremaneira com seus raios.
 
Tudo o que se passou nos permitiu que novas ideias nos ocorressem e pudéssemos contar a você, escritor, este fato, a fim de que narre a seus leitores, através de seus escritos, mais uma história.
 
Eu lhe agradeci e parti na esperança de encontrar em meu caminho outras pessoas, outros episódios, quem sabe, para contar.

Cordas

C

Silvia C.S.P. Martinson

No lamento da guitarra
chora a alma do poeta
o Olé do amor perdido,
que no picadeiro da vida
caminhou em outro sentido.
E nas cordas gemendo
dedilha a dor da alma,
no “ pasodoble” das horas
a falta da mulher amada.
Para ela, que não retorna,
chora a dolente canção
dele que, espera
e jamais a alcança.
E na tourada do tempo
perde o homem a espada
e ao beijo, carinho não dado,
ganha a morte, da sorte,
a carta mal lançada.
As cordas num acorde
pungente choram,
pela última vez, agora.

A velha faca

A

Silvia C.S.P. Martinson

Era uma vila pequena encravada nas montanhas da Espanha. Chamavam-na Pueblo.
 
Suficientemente grande para seus moradores que se contavam por mais ou menos 650. Pequena para ser considerada como uma cidade, todavia mantinha seu espírito de isolamento e privacidade tão apreciado por seus habitantes.
 
No entanto, tinha lá os seus encantos e conforto e os habitantes consideravam-se felizes por morar ali.
 
Raramente vinha algum “forasteiro” que é como eles chamavam os visitantes que porventura viessem para conhecer a vila.
 
Havia nela um castelo muito antigo feito ainda sob a dominação árabe. E este é que fazia com que, apesar de estar em ruínas, atraísse a atenção de algum visitante.
 
Este povoado tinha lá suas comodidades tais como: padaria, mercearia, açougue e até um pequeno mercadinho que abastecia a população local.
 
Sem contar ainda que possuía uma igreja medieval aonde o cura vinha de fora a rezar a missa todos os domingos. A igreja era bem conservada. Consequentemente tinha também um cemitério para enterrar os que morressem ali, pois que trasladar o corpo para outras cidades, além de caro o acesso por estradas de terra tornava a empreitada mais difícil.
 
O hotel então existente era pequeno mas aprazível para receber os visitantes, a comida era boa e os quartos bem arejados e limpos.
 
Os moradores todos se conheciam, desde o dono do mercadinho até o açougueiro, este último proveniente de uma família tradicional no ramo de cortar de fornecer carne àquele povo.
 
A população local estava ficando cada vez mais velha e exígua. Os jovens não queriam mais viver ali e buscavam as grandes metrópoles para estudar, trabalhar e algumas vezes constituir família.
 
Os que ali permaneceram se condicionaram a casar com as poucas raparigas locais quando não o faziam dentro da própria família, casando primos com primos, sobrinhas com tios, etc.
 
Rafael de quem vamos tratar e que na intimidade da vila onde nasceu e se criou era por todos chamado de Rafa.
 
Descendia de uma família conhecida por seu ofício, o que sói acontecer muito na Europa. Eles eram por profissão e herança açougueiros.
 
Tinham no centro da vila um prédio que transformaram em açougue desde os tempos de seus bisavós.
 
Neste açougue eram expostos e também conservados os mais diversos tipos de carnes como: cordeiros e cabritos, que criados eram criados em larga escala nesta localidade, haja vista que a formação de pastos e a serra apropriava-se a tal criação. Havia também em menor escala a criação de galinhas poedeiras e para abate, bem como, gado leiteiro com que se abastecia de leite e carne a população.
 
Assim que Rafael se criou vendo e aprendendo a arte de cortar, desossar, separar as partes nobres das mais inferiores a fim de que, conforme o poder aquisitivo de cada um, tudo fosse vendido e consumido pela população.
 
Outra coisa que aprendeu foi manter o seu ambiente de trabalho impecavelmente limpo visando a não contaminação das carnes.
Igualmente, a arte de amolar facas também lhe foi transmitida, fazendo com que, bem afiadas, elas facilitassem seu trabalho.
 
Quando morreu seu pai entre os bens que recebeu como herança, por ser o primogênito da família, lhe foi passada a melhor e mais antiga faca do açougue.
 
Esta faca era tratada com carinho e respeito desde os seus ancestrais. Era considerada uma preciosidade dada a qualidade de seu aço, forjado na Alemanha, que apesar de ser afiada constantemente nunca perdeu sua forma original, tampouco sua capacidade de corte.
 
Esta faca passou de geração em geração sendo utilizada. Rafael pretendia passá-la a seu filho mais velho quando se aposentasse.
 
No entanto, o rapaz não quis seguir com a profissão do pai, preferindo ir à metrópole estudar e se tornar engenheiro.
 
Estando então Rafael já velho e cansado resolveu vender o açougue, mas não a faca.
Quando seu filho voltou para casa Rafael tentou lhe dar a faca ao que ele se recusou a recebê-la, dizendo que em sua profissão ela era absolutamente desnecessária.
 
Neste momento algo estranho aconteceu, o aço da faca brilhou intensamente, ouviu-se então um estalido e ela simplesmente partiu-se ao meio.
 
Rafael quedou-se profundamente perturbado, uma lágrima lhe rolou pelo rosto e com as duas metades na mão pediu que o dia em que morresse fosse com ele enterrada, em seu caixão, a faca.
 
E, alguns anos mais tarde, assim foi feito.
 

Andrajos de Pátria

A

Silvia C.S.P. Martinson

Nos grilhões
da tirania,
da desonra,
não vibra meu povo
nem clama,
nem grita.
No ostracismo da vontade,
no império da força,
na imprensa muda,
vende-se o homem
e seus ideais maiores
jazem na terra batida,
sem marcas,
sem lágrimas,
rendidos ao tacão
da bota cruel.
Arrasta-se o povo, meu povo sedento
de paz e de amor,
impelido aos extremos
sem armas, sem pão
e sem fé.
Não vibra meu povo,
Não há esperanças.
Não ouve a voz
do jovem protesto
que se eleva da turba
e nela se afoga
ao grito maior
da granada e do algoz.
O mártir não convence
e é injuriado.
O bom se corrompe
e mau se faz.
Potentado à custa
da Pátria oprimida.
Meu povo onde estás?
Teu grito é agora,
necessário se faz!
E nós outros queremos,
somente, únicamente,
a Paz

Sombras

S

Silvia C.S.P. Martinson

Eram dois.
 
As árvores já apresentavam nova brotação, as roseiras já floreciam.
 
O ar era leve e o perfume das flores se espalhava trazendo mais frescor ao mesmo tempo em que as abelhas, em profusão, voavam em busca do néctar tão precioso. Era primavera.
 
O céu de azul intenso confundia-se com o verde das árvores, atraindo aos olhos dos passantes um multicolorido sui generis.
 
Eles caminhavam lentamente.
 
Observavam tudo com atenção enquanto ele explicava a ela a história daquele parque, por quem e porque fora criado, detendo-se em cada lugar onde o tempo e os fatos deixaram suas marcas.
 
Ela ouvia, atentamente, porque com ele conseguia viajar no tempo.
 
Ele lhe descrevia os detalhes, as nuances e os fatos ocorridos em cada sitio. O fazia de forma tão natural como se ali estivera e vivivenciara tudo em seus mínimos detalhes.
 
Ao mesmo tempo os dois embevecidos usufruíam da presença mútua um do outro.
 
Era um momento de intensa ternura e encantamento e que os fazia sorrir ante tanto envolvimento.
 
Havia como um que de lembranças aflorando às suas mentes.
 
Caminhavam lentamente.
 
Ao aproximarem-se de um portal que dava acesso ao parque depararam com uma placa que há via no solo.
 
O sol agora estava forte.
 
O passeio tão ansiado, programado e permitido estava no fim. Eles o sentiam e anteviam a dor da separação sem, no entanto, comunicá-la um ao outro.
 
Caminhavam lentamente.
 
Dirigiram-se até a placa, olharam a data nela inserta. A memória se lhes aclarou, entenderam enfim que retornavam ao lugar onde sempre se encontravam quando queriam estar juntos, isso a muito e muito tempo.
 
Por sobre a placa beijaram-se e concluíram o que se passava finalmente.
 
Eram tão somente... Duas sombras do passado.

A revolucão

A

Silvia C.S.P. Martinson

Isto se passou em 1964.
 
Havia em Porto Alegre então um cinema que se chamava Imperial. Bom cinema aquele. Era o mais luxuoso da capital. Ali vimos muitos filmes que ficaram em nossas lembranças e até hoje são famosos tanto por suas histórias ali contadas como por seus diretores e atores que neles atuaram. Sempre que íamos às aulas de piano de minha irmã por ali passávamos.
 
A época como todo jovem inexperiente, idealista e confiante nas teorias políticas e nos políticos, eu era aficionada das ideias socialistas, daquelas que pregam igualdade entre os homens, bem estar e educação à toda população.
 
Havia então uma grande manifestação no centro de Porto Alegre a favor do presidente da república, que, diga-se de passagem, era um homem rico, dono de fazendas de gado, e outras propriedades, chamado João Goulart.
Esta manifestação visava dar-lhe apoio para que se mantivesse no poder, uma vez que os militares o queriam destituir. O que finalmente veio a ocorrer.
 
Ignorávamos, no entanto, que apesar de o povo estar lhe apoiando nesta manifestação, o mesmo já havia fugido do país e se exilado em uma de suas fazendas no vizinho Uruguai.
 
Naquela tarde retornávamos da aula de piano em pleno centro da cidade, mais precisamente na “rua da Praia” comumente chamada assim a rua dos Andradas, quando em frente ao cinema Imperial formos surpreendidas pela tal manifestação popular.
 
As pessoas portavam cartazes, bandeiras e se manifestavam pelos megafones então existentes. Ali paramos e ficamos extasiadas observando tudo, na maior inocência e sem nos darmos conta do perigo que corriámos.
 
Tudo aconteceu muito rapidamente. Surgiram então militares montados em cavalos que à força de baionetas e outros aparatos, dispersavam a população, impulsionados por seus animais que iam a galope.
 
Minha irmã e eu , quando um desses militares vinha em grande velocidade em nossa direção, fomos agarradas pelos braços e puxadas para dentro de um prédio ao lado do cinema.
Desses braços fortes que nos salvaram até hoje me lembro.
 
Eram de um senhor de cuja fisionomia não me recordo face ao terror que nos assaltou naquele momento. Ele nos puxou para dentro do edifício e imediatamente trancou a porta da entrada e nos disse que ali permanecêssemos até que as coisas se acalmassem.
 
Ouvíamos os gritos na rua e pelas vidraças da porta, que eram grossas, viamos as pessoas correndo em várias direções, sendo pisoteadas pelos cavalos ou sendo presas.
 
Permanecemos naquele prédio, todos em absoluto silêncio, até que a noite chegou e com ela os distúrbios cessaram.
Saímos dali com todo cuidado e nos dirigimos ao ônibus que nos levaria à nossa casa.
 
Naquela época não existiam celulares e não tínhamos como nos comunicar com nossos pais.
 
Quando chegamos à casa minha mãe e meu pai nos abraçaram e choraram muito de alegria, porque estávamos enfim a salvo, haja vista que tomaram conhecimento do que se passara através das noticias dadas pelas rádios locais.
 
Meu pai nos deixou presas em casa por vários dias, inclusive sem ir à escola, por algum tempo, porque os distúrbios ainda se davam com frequência e havia muito perigo nas ruas.
Agradeço aquele homem, mentalmente, até hoje por haver-nos salvo a vida.
 
Éramos duas crianças a mercê de contendores que não mediam forças para impor aos demais suas filosofias políticas que, ao fim e ao cabo, até hoje, perduram sem que o povo veja realmente os benefícios que ambas propugnam.
 
A luta pelo poder ainda hoje continua e os políticos continuam a prometerem o que na verdade não costumam cumprir, usando de falácias, tudo em nome do povo.

Um dia diferente

U

Silvia C.S.P. Martinson

Caminhava pela rua quando e não sei bem porque, lembrei-me de um fato que ocorreu em minha infância.
 
Era dia 24 de dezembro. Dia de Natal.
Neste dia às 12 horas da noite o Papai Noel costumava deixar presentes debaixo da árvore de Natal. É o dia em que se comemora o nascimento de Jesus Cristo.
 
Em minha casa esta tradição sempre foi obedecida. E nas casas de meus vizinhos também.
 
Naquele tempo não havia lâmpadas próprias para enfeitar a árvore de Natal. Somente existiam bolas coloridas que eram de vidro ou cerâmica e se quebravam facilmente.
Várias vezes ao enfeitar a árvore com estas bolas as deixamos cair e se quebraram em mil pequenos pedaços.
 
Por muitos anos as tive guardadas como lembrança em minha casa.
 
As guirlandas de enfeite eram caras e feitas de papel alumínio quando prateadas, ou havia outras de papel tingido de verde e mais baratas.
 
Os enfeites luminosos se constituíam de pequenas velas de cera coloridas, que eram acesas com fósforos e se queimavam lentamente, proporcionando ao ambiente uma luminosidade bruxuleante que a todos encantava, apesar do perigo que ofereciam.
As ávores sempre eram pinheiros colhidos nas matas locais.
 
Nosso vizinho o senhor Osvaldo primava por fazer todos os anos uma bela árvore de Natal.
Pelo que me recordo, cada vizinho procurava fazer a sua mai8s bonita b que a dos outros, mais alta, mais iluminada, mais enfeitada e com um lindo presépio em sua base.
 
Este presépio constituía-se de imagens de cerâmica representando o nasciento do menino Jesus, sua família, o estábulo onde nascera, os reis magos e a paisagem ao seu derredor.
 
Havia entre os vizinhos e isto hoje me parece uma quase competição, não manifestada, porém evidente, de quem fazia a árvore mais bonita daquela rua. Até porque depois da meia noite tinham o hábito de visitar a casa de um e de outro para os devidos abraços e cumprimentos pela data natalícia, quando então admiravam e elogiavam, não sem um pouco de inveja, os trabalhos executados.
 
As árvores eram adquiridas em determinadas ruas onde ficavam expostas por vendedores que ali se postavam a fim de vendê-las.
Lembro-me que os preços variavam de acordo com o porte e beleza da árvore exposta.
Os homens da vizinhança saiam cedo para comprá-las.
 
As mulheres se detinham nas cozinhas a preparar a ceia de Natal, que normalmente se constituía de um peru assado acompanhado de saladas, arroz e frutas cristalizadas por aqueles que as podiam comprar.
 
A nós crianças, cabia-nos ajudar a enfeitar a árvore o que nos dava muita alegria quando solicitados a fazê-lo.
 
Pela tarde tomávamos banho e nos arrumávamos para a tão esperada ceia.
Esperada sim, porque depois dela éramos induzidos a sair para a Missa do Galo que se dava as 12 horas da noite.
 
E para “surpresa” de todas as crianças de minha época o Papai Noel já havia passado por nossas casas e deixado ao pé da árvore um presentinho que variava, hoje sei, de qualidade conforme as posses de cada família.
 
No entanto, lembro ainda, daquele Natal em especial em que o senhor Osvaldo preparou uma grande árvore e nela colocou muitas velas acesas a arder e foram cear na sala de janta. E ali estavam quando sentiram um forte cheiro de queimado.
 
Dirigiram-se à sala onde estava a dita árvore e esta simplesmente ardia em chamas já altas queimando quase tudo a sua volta.
A casa era de madeira, as chamas já alcançavam o teto que, felizmente, tinha um “pé direito” muito alto.
 
Com grande esforço toda família e vizinhos ajudaram a apagar o fogo.
 
O Natal se quedou triste para todos os amigos da vizinhança que de uma forma ou outra auxiliaram esta família pelo menos no conforto espiritual, já que os festejos para eles estavam acabados.
 
Eram meus amigos de infância, os pais trabalhavam muito e eram pessoas que se esforçavam para dar o sustento e educação aos seus filhos.
E como tudo na vida...
Assim se passou.
 

A volta

A

Silvia C.S.P. Martinson

Quando estudava à noite na Universidade para tornar-me advogada, costumava voltar à casa bem tarde pois que as classes normalmente acabavam por volta das 10,30 ou 10,40horas.
 
Como tantos alunos também retornava à casa de ônibus, pois que a Universidade se localizava a mais ou menos 30 ou 40 km em uma cidade chamada São Leopoldo que distava da capital onde eu residia.
 
Saíamos juntos e lotávamos o último ônibus que ficava a esperar-nos ao lado da Faculdade.
 
Procurávamos sentar-nos juntos no coletivo aqueles que desceriam no mesmo ponto.
 
Como precisava ainda tomar outra condução para ir a minha casa isto me obrigava a descer no centro da capital e cruzar por ruas escuras, onde as prostitutas faziam seu “metier”, até chegar ao abrigo onde se encontrava o coletivo que me levaria ao meu destino.
 
Antonio a Vera eram sempre os companheiros de viagem. Quando não era um era o outro.
Antonio estava no último ano da faculdade assim como eu, porém ele na Economia e Vera juntamente comigo na de Direito. Éramos inseparáveis.
 
Ele um moreno carioca muito bonito e simpático já era casado, recém-casado com uma garota bonita, filha de pais portugueses e vinda do norte de nosso país.
 
Vera e eu éramos solteiras, porém já compromissadas com nossos futuros maridos.
Em uma dessas noites de retorno tivemos duas experiências inesquecíveis.
 
A primeira deu-se quando Antonio e eu chegamos ao centro da cidade e, como sempre, precisamos atravessar as ruas onde se localizavam os prostíbulos.
 
Caminhávamos rapidamente evitando as “senhoritas” que ali já se encontravam quando, uma delas seminua se adiantou e me empurrou contra uma parede dizendo-me que ali eu não poderia “trabalhar”, porque estava lhe fazendo concorrência desleal. Ao que de imediato se agarrou ao braço de Antonio tentando conduzi-lo para o seu “habitat”.
Antonio que era um enorme brincalhão começou a rir em alto e bom som e com agilidade desvencilhou-se dela, pegou a minha mão com força e começou a correr fugindo dali.
 
Chegamos à parada do ônibus que me cabia esbaforidos e ao mesmo tempo em que entre risos comentávamos o ocorrido. Após o que cada um seguiu seu caminho.
 
Hoje ele vive ao norte de nosso país, está velho. Mantemos a amizade de mais de trinta anos e penso que talvez ainda recorde o que se passou naquela noite.
 
O outro fato aconteceu com Vera e eu quando retornávamos uma noite pelo mesmo caminho. Não havia outro por onde pudéssemos cruzar para ir ao nosso destino.
Vera, era muito bonita e vistosa, de um gênio forte e sem peias na língua. Quando tinha que responder mal a uma pessoa que porventura ousasse lhe agredir verbalmente, o fazia de forma muito rápida e inteligente. Era incrível a versatilidade e criatividade dela.
 
Tornou-se uma grande advogada.
Bem, sem mais delongas vamos contar o que se passou em outra noite com nós duas.
Descemos do ônibus e dirigimo-nos às malfadadas ruas.
 
Uma “senhorita” nos interpelou, interrompendo nossa caminhada, porque estávamos ali?
 
Furiosa nos ameaçou com um punhal - penso que estava drogada – dizendo que as mulheres que poderiam estar ali eram as de sua “profissão” e que, portanto, nos ia apunhalar, ao que Vera rapidamente lhe dissuadiu dizendo que ela estava enganada.
 
Disse-lhe simplesmente – Não vês querida que não somos mulheres? Somos homens disfarçados procurando outros para fazer-nos companhia...
 
A prostituta surpreendida com tal resposta guardou o punhal e pôs-se a rir desmesuradamente.
 
Saímos rapidamente daquela rua rumo às conduções que nos levariam, depois de um dia árduo de trabalho e de uma noite de dedicação aos estudos às nossas casas e ao merecido descanso.
 
Até hoje me recordo com alegria daquele tempo e das boas e tantas experiências vividas.
De Vera nunca mais tive noticias.
A cidade mudou, bem como seus hábitos e costumes.
 
Os prostíbulos cerraram suas portas, as prostitutas de então se não morreram estão velhas e desgastadas.
 
As novas prostitutas já não circulam pelas ruas somente a noite, hoje fazem-no em dia claro e se comunicam, confortavelmente, por celular onde postam suas fotos mais sedutoras pela internet em páginas em que expõem a sua “profissão”.
 
Não esquecendo que com a disseminação das drogas e o livre acesso dos traficantes a estas mulheres, a policia também se tornou mais atenta, inclusive às vezes tendo de usar mais energia do que é legalmente permitido para dispersar estes agrupamentos altamente perniciosos.

O poeta

O

Silvia C.S.P. Martinson

Era um domingo de sol intenso. O céu de um azul profundo não albergava nuvens brancas ou negras que ousassem toldar na beleza daquele momento.
 
A beira mar as pessoas caminhavam alheias ao que acontecia à sua volta e estavam imersas em seus pensamentos, ânsias, desejos ou talvez, até, frustrações.
 
E assim caminhando e pensando em como resolveria todos os problemas que tinha em sua vida, cansado, ele sentou-se na cálida areia.
 
Ali sentado permaneceu por um longo tempo relaxando o corpo, descontraindo e ao mesmo tempo usufruindo das benesses que lhe ofertavam ao físico e à visão, as ondas do mar, onde as gaivotas pousadas procuravam seu alimento, bem como, o calor reconfortante do sol que lhe banhava com sua luz, fazendo com que seu pensamento voasse a outras paragens que não às tensões do dia a dia.
 
Nestes momentos esqueceu-se da família, de seu desamor para com ele, de quanto eles o julgavam insignificante e sem valor e o tinham, junto a si, somente para que provesse às necessidades constantes de todos eles.
A indiferença de todos às suas necessidades e aos seus sentimentos lhe doíam profundamente.
 
Muitas vezes pensou em suicidar-se, porém sua educação e respeito pela vida lhe tolheram atos mais drásticos neste sentido.
 
Tão ensimesmado se encontrava na observação e contemplação deste momento junto à natureza que só agora percebeu a presença de um homem bem próximo a si. Este o observava atentamente. Trazia nas mãos um caderno e uma caneta com a qual fazia algumas anotações.
 
A curiosidade dele se apoderou e também começou a observar aquele homem.
Aquele escrevia rápido e com alguma sofreguidão.
 
A curiosidade foi mais forte que a discrição e aproveitando um intervalo de tempo em que o outro não escrevia lhe perguntou o que fazia com tanto empenho e obstinadamente.
 
O outro trazendo ao rosto um sorriso amigo lhe respondeu que era escritor, mais precisamente um poeta.
 
Luiz, pois que assim se chamava o caminhante, perguntou então ao poeta, não contendo mais sua curiosidade, se poderia ler aquilo que estava escrevendo, ao que o interpelado lhe respondeu que sim, porém que o poema ainda necessitava ser burilado e por certo ainda estava inacabado.
 
Em ato seguinte lhe estendeu o caderno onde estava escrito o mencionado poema:
EXALTAÇÃO
 
Autor:.....
Traduzido por:....
 
Mil cores a água cristalina espelha
Nas ondas a espraiarem-se.
É o Sol que nos brinda
no céu azul deste dia.
A alma alegre exulta
e na beleza intensa se extasia,
se funde em tudo e nesta magia
voa com os pássaros e em alegria
ao infinito se alça e paira...
Despede-se do que a angustia,
vibra, dança, canta e em hosanas,
agradece o pão nosso à Vida.
 
Luiz emocionado e com lágrimas nos olhos agradeceu ao estranho poeta, de quem nem o nome sabia, por lhe haver permitido ler e trazer, naquele momento, à sua vida uma nova visão.
 
O poeta lhe sorriu e lhe estendeu a mão em despedida e lhe disse que aquele poema era para ele, o caminhante, uma vez que lhe sentiu a dor ao vê-lo sentar-se ali.
Luiz levantou-se, olhou mais uma vez ao poeta, ao mar e às gaivotas que agora levantavam voo.
 
Emocionado ainda, seguiu lentamente a caminhar deixando as marcas de seus pés na areia úmida da praia.

A gaivota encantada

A

SIlvia C.S.P. Martinson 

O mar se agitava tranquilamente ao impulso de suave brisa.
 
O bando pousou nas águas verdes e transparentes com a suavidade com que sempre voava, planando no ar, girando, estendendo as asas, cerrando-as e submergindo.
 
Mergulhar depois de observar o lugar onde havia mais peixes para alimentá-los.
 
Levavam muito tempo voando juntos, um tempo que ninguém contava.
 
Todos estavam encantados, por diferentes razões, a natureza assim o determinara.
Porém entre eles, os pássaros, estava aquela que tinha mais dons, era uma velha bruxa que se havia convertido em gaivota.
 
As gaivotas a chamavam de Zaida, A Eleita.
Por fim posaram na água que estava cheia de peixes apetitosos e começaram sua tarefa de buscar alimento para suas crias.
 
No entanto Zaida, com sua poderosa visão, viu o príncipe, de sua velha recordação, caminhando na praia.
 
Havia sido encantada durante tanto tempo pelo velho feiticeiro que a desejava, e a quem ousara desprezar por amar ao príncipe.
Seu olhar seguiu então o seu antigo amor até sua casa.
 
O bando saciado empreendeu regresso ao lago, porém Zaida não os acompanhou. Seguiu o príncipe até a casa e cada manhã, para surpresa deste, ano após ano, depositava um peixe dourado em sua janela.
 
Passaram-se as estações, os dias, alheia ao bando ali permaneceu, da terra ao mar, do mar a terra.
 
Sempre pousava na mesma janela até o dia em que só ali restaram suas plumas brancas, soltas ao vento.
 
O príncipe alheio, a tudo ignorou.
 
O tempo passou e o encanto cessou.

O mar segue sendo verde e as gaivotas encantadas a ele retornam suavemente.
Dirigem seu olhar perscrutador às profundezas em busca de seus antigos amores, sempre com a esperança de que para elas o encanto se dissolva, um dia, nas verdes águas marinhas.

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